O Anacreonte de Candemil
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Ao declinar do dia, pela tortuosa vereda que ia dar à estrada,
seguia vagarosamente o tio Ambrósio, que voltava dos campos, com a enxada ao
ombro. Como àquela hora silenciosa estava o caminho deserto, ouvia-se-lhe de
longe o bater compassado e sonoro dos tamancos nas pedras da calçada.
Logo adiante do carvalhal, e antes de chegar ao cruzeiro
confinante ao adro, ficava a taberna. Eminente sobre a porta estava pendente o
ramalho verde de loureiro, que a viração fresca da tarde agitava, raspando-o
pelo cunhal da ombreira. Da frincha das portas mal cerradas saía para a
penumbra crepuscular exterior uma réstia de luz amarela, que se estendia pela
estrada até ao talude saibrento, que murava o caminho do outro lado.
O tio Ambrósio endireitou com a taberna, impeliu uma das portas, e
entrou.
Dentro, abancados em torno da mesa, estavam já os parceiros da
bisca. A taberneira, matrona de papeira, seio farto e braços arremangados,
assistia à conversa, sentada a um canto, com os cotovelos fincados no balcão.
Junto dela dormia pachorrentamente um gato maltês, zebrado, encolhido sobre as
patas, como um novelo. À entrada de Ambrósio o gato ergueu repentinamente a
cabeça e abriu os olhos espantados; mas, depois, como a visita lhe não fosse
estranha, foi deixando, pouco a pouco, descair a cabeça, fechou os olhos, e
permaneceu na mesma posição, a ressonar.
Ao lado de cada freguês havia um copo de vinho; e a luz da
candeia, pendurada em cima, refrangendo-se na superfície do vidro, projetava,
em torno de cada copo, um círculo sanguíneo.
***
O tio Ambrósio de Candemil levava a vida airada a cantar e a
beber! Tinha já sessenta anos, cabelos brancos que nem uma estriga carada, voz
trêmula, nariz rubro e verrugoso; mas que lhe saísse a desafio a cachopa mais
palreira, que ele saltava logo:
Não sei que mal deu agora
Nas uvas do parreiral;
Faz-me cantar toda a noite,
Como os melros do olival.
E depois, com a jaqueta lançada ao ombro, o chapéu derrubado para
a nuca, ainda o Ambrósio cantava e foliava, como um rapagão de vinte anos.
Em idade tenra e menos canseirosa, arraial em que ele não aparecesse,
era como se faltasse o pregador em festa de romaria! Esperava-se por ele até ao
fim. Espreitava um daqui, outro de acolá; e, quando na azinhaga aparecia o
chapéu de sol de paninho escarlate, era logo uma gritaria:
— Aí chega o tio Ambrósio.
— Olha que tal ele vem!
E o guarda-sol oscilava de um e de outro lado, roçando pelos
silvedos, como a vela de um navio que bordeja à toa, perdido o rumo!
***
O tio Ambrósio entrara silencioso na taberna, acendeu um cigarro
ao pavio da candeia, e encostou-se a ver jogar. Um dos fregueses falou-lhe em
sentar-se.
— Hoje não — opôs ele peremptoriamente.
— Só uma bisca, tio Ambrósio.
— Já disse — insistia ele, chupando o cigarro. — Nada; que eu bem
sei como o jogo é. Uma comparação: é como quando um homem trepa acima de uma
cerejeira, que, em tirando por uma cereja, vem logo uma mão cheia delas.
Os outros, que já lhe sabiam a balda, calavam-se. O silêncio
contrariava-o. Precisava que insistissem, para assim desculpar a consciência.
Ao cabo de dez minutos, atirava fora com a ponta do cigarro, e dizia:
— Com'assim vá lá. Mas só três jogos, e arrumou.
Espevitava-se o morrão da candeia, cedia-se o lugar respectivo, e
então é que era ver a partida.
O jogo corria silencioso até quase ao fim; mas, depois, o tio
Ambrósio, com as cartas abertas em leque na mão esquerda, e com uma carta
levantada na outra mão, olhava de soslaio o adversário da direita, e
principiava:
— Ora ponha-me aqui a bisca, ainda que lhe custe.
E batia com a carta sobre a mesa de um modo triunfante.
O do lado jogava uma carta de trunfo. E o tio Ambrósio a tremer,
irritado, com o punho cerrado suspenso sobre as cartas, suplicava ao jogador,
que tinha defronte:
— Recorte, parceiro, recorte.
— Recorte — repetia o outro por entre dentes, — recorte o quê?
olhe.
E jogava a bisca.
O Ambrósio, então bebia de um trago meio copo de vinho, e
exclamava desesperado:
— As cartas tem o demo!
No fim perdia o jogo; e, como os adversários renovavam o vinho, e
ele enchia o copo que lhe pertencia, perdia o juízo.
Havia já muito tempo que lhe era difícil topar na terra um
parceiro amigo para a sueca.
— Adeus! — diziam-lhe eles, encolhendo os ombros. — Quando você
pega num baralho, até parece que lhe dá o trangulomangulo. Coisa assim!…
O vício da jogatina passou-lhe ao cabo destes repelões; mas, por
desgraça, foi procurando no copo a distração que lhe faltava no baralho. Daí em
diante, diga-se em abono da verdade, o tio Ambrósio só cantava e bebia.
Canta que
logo bebes, diz o rifão.
Com o tio Ambrósio, porém, mudava o caso de figura. Bebia
primeiro, bebia depois, bebia no fim; e desatava a cantar que nem um rouxinol.
Ora, depois disto, em que tenho a glória de ser o Plutarco deste
herói, vejam se andei mal, chamando-lhe Anacreonte de Candemil.
A distância que vai de Ambrósio a Anacreonte mede-se pela que vai
do tamanco transmontano à sandália grega, das cepas tortas de Amarante aos
vinhais racimosos de Chios, das faldas agrestes do Marão às formosas marinhas
da Jônia, província das violetas.
***
Pelos
primeiros dias de maio, antes das festas do Espírito Santo, o céu estava sereno
e azul, as árvores frondentes, e na ramaria dos bosques gorjeavam os melros.
Havia flores nos prados, flores nas encostas, flores por toda a parte. A
natureza enfeitava-se como noiva graciosa que se prepara alegre para o festim
dos esponsais.
Pois, quando
havia tanta luz, tanta vida, tanto amor, gorjeios pelos ninhos e rosas pelos
silvados, era triste pensar que alguém estava para deixar a vida!
Logo de
madrugada o Sr. Abade atravessou da residência para o adro, antes da primeira
missa do dia. O sino principiou a dar o sinal do Senhor fora.
E Daí por
alguns minutos, o Viático seguia por um atalho, ao canto plangente do Bendito,
entoado em coro pelas mulheres, que caminhavam atrás, acompanhando o Sagrado.
O palio parou
à porta da casa em que morava o tio Ambrósio de Candemil.
Dentro,
sobre uma arca de castanho, revestida com toalha de linho, estava um crucifixo
ladeado de duas tocheiras de chumbo. A um canto da sala, o velho Ambrósio
agonizava reclinado no espaldar do leito. Não tinha na face a alegria expansiva
dos últimos dias, em que cantarolava na taberna. Estava pálido, os olhos
amortecidos, as faces descarnadas, a boca enviesada de paralitico.
Foi
confessado e sacramentado.
O Abade
abeirou-se lentamente do enfermo, com o cibório nas mãos.
Preparou-o solenemente para o trespasse.
Preparou-o solenemente para o trespasse.
Quando lhe
ungia os lábios com os santos óleos, murmurando as palavras do ritual: — Per istam unctiouem indulgent tibi Dominus
quid quid delinquisti per gustum, o Ambrósio fincou os punhos na enxerga,
ergueu-se com esforço e ânsia, volveu os olhos em torno do leito, como quem
desperta de um sonho, e inclinando-se para o Abade, perguntou-lhe com voz débil
e convulsa:
— É vinho?
E descaiu
lentamente para trás, com um sorriso de bem-aventurado a radiar-lhe a fronte —
como um justo que morre na esperança de encontrar na vida d'além-túmulo as
adegas bem providas de Amarante!
Talis vita, finis ita.
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