O abandono do moinho
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
À porta da
azenha estava o macho intonso, preso pelo cabresto a uma argola da parede.
Enquanto o não carregavam voltava melancolicamente a cabeça para o lado, estendia o pescoço lanudo, e ia tosando uma moita de silvas, que murava o atalho.
Enquanto o não carregavam voltava melancolicamente a cabeça para o lado, estendia o pescoço lanudo, e ia tosando uma moita de silvas, que murava o atalho.
De entre o
ruído trêmulo da mó e o marulho da levada, caindo do cubo nas penas do rodízio,
embaixo, ouvia-se gritar lá dentro:
— Anda daí,
que são horas. Avia-te.
Depois,
apareceu à porta o moleiro, com o chapéu enfarinhado caído para o ombro
esquerdo, segurando no ombro direito o taleigo da fornada. Vinha ainda a
gritar:
— Despacha-te,
rapariga. Mexe-te, filha.
E atirou com
o fole para cima da besta. A moça veio depois, e carregou-a com um fole do
outro lado. Atiraram-lhe em seguida a cilha para cima; e o moleiro com o joelho
fincado na barriga do macho, principiou a apertar a carga, torneando o arrocho
com esforço.
— Pronto!
Põe-te já a caminho, que eu não me delato, Terezinha.
Apenas se
julgou fora do alcance da vista do pai, que se deixou ficar à porta, com uma
perna cruzada sobre a outra, o chapéu braguês derrubado para os olhos, a vê-la
subir a encosta, a rapariga saltou para cima do macho, ajeitou-se no meio dos
taleigos, e continuou pelo atalho acima, a cantar:
Ao passar hoje no rio
Vi nas águas o teu rosto;
Cuidei que ias na levada…
Ai! coração que desgosto!
E ao ver o teu rosto ali
(O que são coisas do mundo!)
Cuidei logo que uma estrela
Tivesse caído ao fundo.
(O que são coisas do mundo!)
Cuidei logo que uma estrela
Tivesse caído ao fundo.
O moleiro
voltou para dentro, a prover a moega de grão; enfiou depois a jaqueta de cotim
axadrezado, calçou as sapatas ferradas, que tinha a um canto, fechou por fora a
porta da azenha, arrecadou a chave, e abalou na piugada da filha.
Assim que
chegou a meio do atalho, cortou à esquerda por uma quelha pedregosa, atravessou
por um carreiro, que costeava uma bouça; e, fincando as mãos no muro tosco de
rebos, saltou de um pulo para o meio da estrada.
Corriam os
primeiros dias de março.
Como tinha
descampado, havia pouco tempo, os caminhos estavam lamacentos, sulcados pelas
rodas dos carros; e nas terras baixas viam-se ainda as águas da chuva empoçadas
e cobertas de limo. O céu era de um azul cristalino, a atmosfera muito límpida;
e, ao meio dia, quando o sol caia de alto nos prados, até parece que as roxas
previncas, as flores amarelas do trevo e as margaridas, retraíam as corolas ao
peso abafadiço do calor! Nos ramos folhudos dos carvalhos e dos pessegueiros,
que já floresciam, os melros assobiavam alegres, e no fundo azul do firmamento
destacavam-se duas borboletas brancas que voavam dentre os silvados, subindo,
subindo sempre, a tremer, num raio de sol doirado! Oh! era encantador!
O moleiro
apenas escalou o muro tosco da bouça, parou um instante, colocando a mão sobre
os olhos, como uma pala, para ver se lobrigava a filha. A distância de trinta
metros a estrada volteava para a direita. Uma copada deveza de sobreiros, ao
fundo, não o deixava enxergar para além. Por isso, foi continuando por ali
fora, apertando mais o passo, com os braços bamboleantes e a esbofar de calor.
De um lado e
de outro, nos campos, fazia-se a lavoura. Duas juntas de bois castanhos,
aguilhoados pelo lavrador, tiravam lentamente o arado, que ia levantando e
revolvendo a leiva. Aquém e além, no declive do monte, dentre a verdura tenra
da infesta, alvejavam as frontarias caiadas de alguns casalejos, batidos do sol
do meio dia. Era um calor de rachar!
De um
atalho, que ia dar à igreja, surgiu o Sr. Abade montado na sua égua, oh! uma
boa égua de Abade, gorda, pacífica e mansa que nem uma ovelha. Sua reverência
vinha abrigado por um enorme guarda-sol de paninho azul, e o seu ventre redondo
e farto oscilava pachorrentamente ao chouto pesado da cavalgadura.
— Ó José
moleiro, — chamou ele com voz de papo. — Eh! homem! Tu vais à cata dos
franceses?
O moleiro
descobriu-se respeitosamente, e, enxugando o suor da testa à manga da vestia,
respondeu-lhe:
— Vou ver se
topo a minha Tereza, que foi levar a fornada da outra banda, a casa da morgada.
O Abade, do
alto da égua, continuou:
— Vi-a
ontem; e olha que está fera e bonita.
—
Escorreitinha é ela, graças a Deus, — disse o José, seguindo ao lado o passo da
cavalgadura.
— E é moça
de tino, — prosseguiu o padre circunspectamente, — mas tem-me cuidado nela, que
olha o demo, José, quando as arma, escolhe sempre do melhor, ouviste?
Mais
adiante, ao passarem por um quinchoso, a cujo muro estava debruçada uma rapariga
esguedelhada, com os braços pendentes para fora, perguntou-lhe o Abade:
— Que é de
teu pai, ó cachopa?
— Está a
trabalhar nas obras do rio, Sr. Abade, — respondeu ela corando.
O Abade
esporeou a égua, e disse para si:
— Ele é bem
melhor ganhar o pão ao pé da porta, lá isso não tem dúvida.
— Pois
quant'é! — concordou o moleiro, acenando afirmativamente a cabeça.
E
continuaram ambos pela estrada, até a uma cangosta, por onde o Abade meteu,
deixando só o José moleiro.
O caminho
agora descia, até ao rio, onde andavam as obras da ponte nova.
Já de longe se avistavam os trabalhadores.
Havia ali um
grande movimento de gente. Por entre o tronco nu dos salgueiros, viam-se já as
primeiras pedras do arco, subindo pelo simples de
madeira, que se levantava de uma à outra margem.
Uma fileira
de mulheres e crianças passavam constantemente da draga do areal com cestos
carregados à cabeça. Antes de chegar ao rio, a estrada aparecia toda coberta de
cascalho, que reluzia à luz intensa do meio-dia.
Como as
águas tinham diminuído, uma barca com linguetas levadiças à proa e à popa, que
servia de transporte, como uma jangada, no inverno, estava da outra banda,
preza por amarras aos troncos de dois amieiros. As pessoas que tinham de
atravessar o rio iam pelas alpondras desanegadas; mas quando acontecia aparecer
uma cavalgadura, então era preciso que os trabalhadores lançassem sobre as
pedras duas pranchas largas, que serviam de passadiço.
Quando a
filha do moleiro chegou ao rio e ia a meter o macho na água, um dos homens, que
ali estava, gritou-lhe:
— Não metas
o burro à água, rapariga; olha que te afogas e mais ele.
Espera que eu lá vou.
A rapariga
sofreou o macho e esperou.
Ao
aproximar-se o homem com a prancha de pinho levantada ao alto, o macho
espantou-se, empinou as orelhas, recuou de súbito e, de um salto, atirou
consigo e com a rapariga ao rio.
O
trabalhador, que viu aquilo, principiou a gritar por socorro. Acudiram os
outros; mas, quando chegaram, o macho tinha seguido para o meio, onde a
corrente do rio era mais impetuosa e fazia redemoinho. A filha do moleiro caiu
para o lado, estonteada do sobressalto e da sensação do frio; e os homens que
lhe gritaram de terra viam-na seguir a cavalgadura com a mão preza na
extremidade do cabresto.
Nesse
momento, um homem que corria, muito aflito, pela vereda abaixo, logo que chegou
à margem, atirou com o chapéu para a banda, e lançou-se de repente ao rio; mas
apenas a água lhe bateu pelo tronco, estremeceu todo, bracejou um instante e
apareceu estirado à flor da água, a boiar, com as faces roxas da congestão.
***
Quando ia
ver as obras do rio — era esse o meu divertimento — façam ideia como eu fiquei!
Sobre uma
escada de mão, trazida como uma padiola por quatro robustos trabalhadores do
rio, vinha estendido de costas o pobre José moleiro, com a boca entreaberta, os
olhos vidrados e os lábios roxos.
Mais
adiante, a dez passos, no meio da aglomeração curiosa de homens, de mulheres e
de crianças, que comentavam e lamentavam o caso, descobri a desgraçada
Terezinha, morta, deitada sobre a terra, com a saia de chita colada ao corpo
pelo peso da água, deixando ver o contorno juvenil dos seus membros
inteiriçados.
Ao lado, o
macho, a escorrer, com a cabeça pendida e os grandes olhos fitos no chão,
estava naquele doloroso abatimento, em que deve precisamente ficar um homem,
depois de se lhe ter disparado a espingarda contra o peito de um amigo!
E até parece
que, diante daquele quadro fúnebre, os salgueiros do rio, debruçando-se
melancólicos sobre as águas, entoavam, balouçados pela aragem, uma vaga
lamentação de tristeza!
***
Ao passar,
alta noite, pelo atalho da azenha, ouvia-se lá dentro o ruído trêmulo da mó, o
marulho triste da levada; e, como fazia um luar de primavera, vi destacar-se
claramente no fundo azul do céu, agachada sobre o esgalho nodoso de uma
figueira, que ficava ao lado — em vez do alegre rouxinol, que ali cantava todas
as noites — uma coruja muito grande, a piar, a piar…
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...