10/26/2017

Na beirada do Taimbé (Conto), de Valdomiro Silveira


Na beirada do Taimbé

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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— Venha cá, nhá Candota: perciso de conversar com você como quem percisa de água pra matar uma bruta sede. Faz muitos dias que a gente se vê só de longe, e acho eu que o perto é melhor e de mais fácil acomodação pra se entenderem duas pessoas da nossa qualidade. Escuite bem escuitado o que lhe vou dizer e me dê sua reposta já, ou logo, ou no vagar que quiser.

De tal jeito, com palavras maneirosas e voz sossegada, o Zé Missia estava fazendo chão para uma planta que era o seu lindo sonho de anos e anos. Anos e anos! Resoluto e constante, afinal topara em nhá Candota, quando não tinha mais o direito de se gabar de moço, a beleza, a graça e as melhores qualidades de uma boa companheira diante dos homens e de Deus. E cubiçava-a para si...

Quarentão, mas desempenado, de tamanho do meio, mas carnudo e enxuto, firme no andar e nas ações, costumava afirmar a quem o ouvia:

— Minha verdade é que nem a cana do meu punho – uma só. Hão de custar a trocer o meu braço, a minha verdade é que ninguém será capaz de trocer!

Não exagerava nada: sempre foi forçudo e verdadeiro. Quase menino ainda, socou centenas e centenas de taipa, a cruzado por metro. Crescendo na idade e na sustância, torou e rachou muito pau no mato, fez muita cerca de madeira e muito cocho, em roças e invernadas. Desde que perdeu a voz de frango e mereceu mais atenção e respeito, começou a empreitar serviços de todas as cores e qualidades: o feitio de uma casa de pau-a-pique, derrubada de tantos ou tantos alqueires, queimadas, destocamentos, plantações e colheitas. Antes de chegar aos trinta anos, já tinha uma caixa de couro com fechadura de segredo e, dentro da caixa, um pacotão de notas graúdas. Lá veio dia em que pegou nas tais notas, comprou o sítio de fulano Borge por pouco mais de nada, criação de pelo e pena, carros e caçambas; arranjou, de pancada, tudo quanto se quer no aviamento da lavoura, oito juntas de bois brasinos, que eram uma boniteza, e até cavalo de figuração, grande e baio-camurça, que deu panca e fez barulho nas cercanias.

Foi seu maior empenho, sempre e sempre, não deixar de cumprir promessa alguma. Andavam por isso de boca em boca, afora outros fatos miúdos, dois de espavento, que ele gostava de ver lembrados. Certa vez, tendo uma partida de arroz novo para vender, fechou negócio com o Xavierzinho por um conto e duzentos; sabedor disso, veio o Salustiano e lhe ofereceu um conto e quinhentos: ele respondeu que já não tinha mais o arroz, porque o trato estava feito com outro e só faltava a troca do dinheiro pelo artigo. Noutra ocasião, deu o sim de soltar uma casa, que possuía no lugar mais afastado da vila, por cem de cem ao Nato; não havia escrito, era tudo conversado só de beiço: pois apareceu outro pretendente, o Maneco Reis, que pagava doze contos, ele não se entusiasmou nem ficou murcho, e sustentou a combinação dos dez.

Embora não o tomasse a inchação da vaidade, pegava algumas vezes em si, pesava-se por dentro e acabava decidindo que era um bom partido para nhá Candota. Atreveu-se até a apalpar o assunto, quando saíam da missa, num domingo de Ramos; o povaréu mexia-se desajeitadamente por todo o largo da igreja, nhá Candota distraía-se com facilidade, e ele malhou em ferro frio. Não perdia vaza, porém: na mais pequena aberta de conversação, quando estavam apartados dos outros, encartava a sua bisca, e uma por uma fazia declarações corteses, mas decididas. Nunca pôde ir muito adiante: aquele namoro parece que tinha uruca.

Seguiam as coisas mau rumo agora. A vila de São Simão inteira sabia que nhá Candota andava conversando com um tal Chico Peão, sujeito que principiou a ser visto de repente, da noite para o dia, e que não trouxera apresentação para ninguém. De peão não tinha nada, como ele mesmo confessava: o apelido lhe viera do pai, que da infância à velhice lidou com animais, e de quem nada mais recebera senão o apelido. Mais tarde o município todo entrou na certeza de que ele não mentia um pingo, quando contava aquilo...

O Zé Missia atormentou-se. Deu de espreitar nhá Candota, por aqui, por ali e por acolá, de manhã e de tarde, na intenção de esvaziar o espírito e aliviar o coração. Jurou a si mesmo, por segurança, que acabaria propondo o casamento, fosse lá como fosse. Um belo dia cercou-lhe a passagem, como quem não queria estorvar, e só então pôde falar-lhe mais isto e mais aquilo:

— Esse Chico Peão, nhá Candota, é home’ que tem estampa e nada amais. Arrebentou de supetão na vila, trazendo animais e qualidade, arreios caros e um camarada sagaz como quê. Ninguém não sabe quem é semelhante home’, que o único trabalho que tem feito é jogar carteado com os dinheirosos desta terra. Vejo dizer, mas de carregação, que dito cujo é ladrão de cavalos e andou fazendo suas últimas façanhas lá pros confins do Carmo da Franca. Isso vejo dizer. Pode que seje errado: não quero ter contra a minha alma um falso testemunho levantado do pé pra mão. Mas contanto que não hai filho de Deus que de tal Chico Peão possa dar notícia branca ou preta!

Nhá Candota, moça de boa tenência, que era o bate-enxuga na casa dos pais, trabalhadeira e de poucas falas, prestava a melhor atenção ao Zé Missia. E o Zé Missia, ganhando maior coragem, pegou a encarreirar os encartes que imaginara. Aproveitou a ocasião o mais que pôde; principiou a dar uma no cravo e duas na ferradura:

— Você é capaz de formar uma ideia da vida que o Chico Peão lhe perpara, se vier a casar com você? Tendo inté hoje vivido em casa de pai e mãe, na fartura e na paz, porque a sua gente, e você mesma, veve do trabalho e no trabalho, você imagina que tudo correrá como inté hoje? Pois olhe, nhá Candota: eu não íntimo c’as minhas propriadades nem c’os meus haveres, mas você sabe muito bem que o meu sitinho não deve nada pra ninguém, é rendoso, tem boas águas e caminhos cuidados. Você sabe muito bem, além disso, que eu faço meus negócios por fora e tenho botado de banda meia dúzia de patacas. E você sabe muito bem que pissuí, de poucos meses pra cá, um chãozinho na cacunda do Tijuco Preto: são quinhentos alqueires, num pedaço de mundo em que o pé de café, quando se encóva de esquadro, chora por não ter mais espaço e lugar pra onde estender os braços e abrir as saias...

Nhá Candota não deixou de impressionar-se. Então havia terra, no mundo, em que o cafeeiro crescia tanto que chegava a querer ir mais longe que o vizinho? Se os de São Simão, do lado da serra, nas manchas de terra vermelha, já eram de admirar logo adiante dos campos e cerrados, encorpando com toda a força, então de que vulto e maneira não seriam aqueles do sertão? O Zé Missia atava o nó: 

— O que eu tenho, no fim das contas, não é meu, nhá Candota: será seu e já é seu, porque eu tenho fá em Deus que você me vai aceitar pra marido. Não vai?

Ela virou-se para outro lado, por instantes, como querendo ouvir melhor o cacarejo fino e reiterado de um joão-de-barro que conversava com a companheira, no galho mais alto do cinzeiro próximo. As mesuras que o joão-de-barro e a companheira faziam com as asas, cessaram logo: nhá Candota foi obrigada a voltar-se para o Zé Missia. Deste Zé Missia, afinal, todos gostavam: o pai, a mãe, os irmãos e a caboclada. Ao passo que só ela, “que não valia uma pitada de rapé”, só ela gostava do Chico Peão! E as últimas notícias que lhe haviam chegado nem eram das melhores: à vista de certas ligeirezas de mão que o tal mostrara, da teima com que algumas cartas só enveredavam para ele, e de pequeninas unhadas que se viam noutras cartas, o delegado mandara chamá-lo e lhe dera dois dias para sumir da vila. 

O Zé Missia entrara em rumo diferente:

— Nhá Candota, você ‘tá mas é na beirada do taimbé. Não hai nada que lhe sirva de segurança ou de valência, nessa parage’, se você não se forra fugindo do perigo. A pedra é uma só, muito lisa, sem cotovelo’ nem lajedo’ pros cantos, porque não tem canto nem um. Se você resbala e perde o pé, não hai como não rode pro tombador abaixo e não vá direitinho inté o fundo do boqueirão. Não tem aí grama nem carqueja, que já por si não serve’ de nada, num artigo desses, pra você pôr a mão e ‘o menos demorar um quarto de minuto a fúria da caída. No meio do percipício, você já nem é mais nhá Candota, é um pobre corpo sem alma que vai rolando e rolando pro purgatório...

Reforçou aquele discurso de pavor:

— Você ‘tá vendo o rebeirão do Tamanduá, lá embaixo, feito uma fita que num ponto se esconde e noutro se amostra de repente, não é? Co’a seca braba que tem havido, ele parece que se estrafega de reiva em cada volta e grita que nem um desesperado na rasoura das tupavas. O rumor do rebeirão inté assusta, e você daqui nem ‘tá sentindo nada, não é? Pois também, quando a gente cai no fundo de um taimbé desgrenhado, ninguém não ouve nem não acode...

Despediu-se:

— Nhá Candota, por tudo quanto você estima no mundo, largue mão do Chico Peão! Se você não se aprecata e não arrecua em tempo, aquele anhanga é o seu taimbé!

Mas no dia seguinte, por volta das oito da manhã, vieram contar ao Zé Missia que nhá Candota, em companhia do Chico Peão, tinha atravessado o Tamanduá no clarear. Ele saiu de si, buscou o encosto de um moirão largado, e só entendeu, da conversa que se acendeu cada vez mais em roda do moirão, uma ou duas coisas:

— Pra onde é que aquele desgracionado vai levando a santinha?

— Pro mundo...

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