Iaras paraenses
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
No copiar da chácara,
aquela noite, haviam-se reunido alguns vizinhos do Comendador Esteves, o
principal proprietário do Pinheiro.
Redes fechavam os
ângulos, pendentes dos esteios. Era uma roda de homens. Todos balouçavam-se,
acalorados, aguardando o açaí que nesse momento a mulata Josefa amassava na
cozinha.
O luar de agosto
penetrava em diagonal, diáfano, trazendo toda a melancolia profundíssima das
incomparáveis noites equatoriais. Da mata pouco distante, lavada de luar,
vinha o monótono arruído dos insetos noturnos, o alarido dos cururus teimosos.
Na gaiola pendente do teto sem forro, um caraxué silvava. E do rio, que corria
ali perto, ao fundo da ribanceira, subiam com a brisa refrigerante os rumores
dos barcos de pesca fazendo-se ao largo, para a foz.
Fumava-se,
conversava-se. Haviam já discutido os negócios do dia, na capital. Esteves
encetara mesmo um poucochinho de política. Português de nascimento, não queria
imiscuir-se em assuntos partidários; mas tinha por eles sua predileção e nunca
deixava de externar uma ou outra opinião, sempre muito conservador e ordeiro.
Nessa tarde, viera
com ele passar a noite na rocinha o velho Barriga, seu aviado do alto
Xingu. Era um caboclo adiposo, de ventre proeminente e face larga. Aparência
insignificante, matreirice inata: o tipo comum do seringueiro indígena.
Trouxera a mulher, que já estava recolhida ao quarto destinado ao casal.
Achava-se também
pressente o subdelegado Fonseca, antigo solicitador dos auditórios, agora
enviado ao Pinheiro a fim de preparar recursos para uma eleição próxima. Era
esta a sua especialidade, ao que parecia. Em todo o caso, rendia mais do que a
primitiva profissão. Um presidente vindo da Corte não tivera extraordinária
dificuldade para convencê-lo disto.
Mas a palestra veio
naturalmente a versar sobre assuntos do sertão. A um quint'anista de direito,
que vilegiaturava todo o ano, explicara já o Barriga a pesca do pirarucu e
o preparo da grude de gurijuba. O quint'anista era, neste ponto, de uma
ignorância absoluta: não admirava a sua curiosidade.
Os demais
circunstantes escutavam num silêncio discreto, bocejando. Nas intercadências da
narrativa, apenas se ouvia o ranger das escápulas pelo movimento das redes e o
farfalhar dos galhos, mata fora.
Uma voz reclamou um
conto indígena, uma lenda amazônica. Não compreendeu a frase o Barriga.
Quedara-se a olhar o interlocutor, cortado.
— Historias de boto,
do curupira, da mãe d'água, — explicou o subdelegado.
— Han! — rosnou o
caboclo. Tudo isso é mentira, acredite!
— Como! Pois o senhor
atreve-se a negar o que todos no sertão asseguram ser verdade
evidentíssima?
Sorriu o velho,
superiormente. Tinha no rosto uma profunda piedade, pela boa fé do cidadão.
Ergueu-se, afivelou o cós da calça e, espreitando para o lado do quarto da
mulher, congregou os companheiros em círculo diminuto. Estava transfigurado:
era um filósofo estoico.
— Vocês ouviram já
falar em iaras, não? — perguntou. Pois é tudo mentira também.
E abaixando a voz:
— Só há uma espécie
de iaras, — prosseguiu. Essas, porém, não vivem no fundo dos rios da minha
terra, estão, aí, na cidade; vi hoje à tarde uma porção, quando fui com seu
Esteves tomar o vapor. São as mulatinhas cheirosas a periperioca e jasmins,
sabem? as verdadeiras iaras encantadas. Mas precisamente não é para o
abismo das águas que arrastam a gente!...
— Seu Barriga, venha
dormir! — gritou no outro extremo do copiar a encanecida e rotunda esposa do
velho caboclo do Xingu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...