Hamlet
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Quem o via,
embrulhado em flanelas, apoiando-se a um grosso bambu, sorumbático, fugindo a
todo o convívio, aparecendo só de longe com a mulher e filhitos, procurando as
estradas desertas para passear, tudo sujeitando à higiene,— decerto nunca
imaginaria que a sua lúcida inteligência de sutil penetração e réplica pronta
nas mais intricadas questões cairia naquele fantasmagórico sonho de grandezas,
que o levou à cela de um hospital de alienados.
Jurisconsulto
erudito, advogado eloquente e cuidadoso, tinha sempre que fazer; mas são
poucos os lucros numa terra onde a propriedade está acumulada em meia dúzia de
felizes e só os pobres se metem com justiças.
Vivia modestamente,
num grande orgulho de trabalhador. Não queria favores de ninguém. Se tivesse
muito, muito daria; pedir, nunca!...
E, súbito,
de volta de uma estação d'águas, eis que ele muda completamente. Luxo,
passeios, viagens, projetos de compras, tantos e tais, descritos com tal
aparência de lógica, com tão ardente entusiasmo de frase, que chegava — não a
convencer-nos da realidade de tais sonhos, mas a fazer nos viver na alucinante
miragem em que o seu espírito se perdia.
Depois que,
no regresso da vilegiatura, vira representar o Hamlet, apaixonara-se pela loira e ideal Ofélia, por essa pálida
figura tão intensamente dramática na sua passividade de amorosa, tão
angelicamente resignada e feminil, que é já uma forma palpável do ideal...
Verdadeiras e dignas de piedade as suas lágrimas — simbolizando todas as que no
mundo têm vertido olhos de tristes desprezados.
E o
simpático doutor, um bom, um sincero, um sentimental, apaixonara-se por
essa irmã da sua alma, que vai desfolhando as níveas flores do seu doce amor,
cedo queimado pela ingratidão.
A crueza de
Hamlet resgatou-a ele, levantando no seu coração de romântico um templo
auriluzente onde a incensava com a mirra do seu talento, que a loucura, parece,
exacerbara, requintara, fazendo-o subir às etéreas regiões onde as mais sólidas
cabeças sentem vertigens!...
Todas as
mulheres passaram a ser para ele suaves Ofélias; nelas via a amada, o seu puro
ideal; adorava-as como se essa adoração fosse ainda uma homenagem rendida à
dama dos seus pensamentos — alma de cavaleiro trovadoresco, vencendo enfim a
gélida couraça da materialidade burguesa.
A medicina,
o amor e o delírio das grandezas eram as suas ideias fixas. E então — vendo uma
loira e anêmica rapariga de silencioso porte, obrigava-a a beber águas de
Vidago e gritava com grandes braçadas entusiastas: “beba, beba, que eu hei de
fazer de um pastel de nata um pastel de carne!...” Logo respondia irado a um
primo, que, por troça, aconselhava uns tamancos e passeios pelas serras
como remédio mais eficaz: “falou o livro Caixa!... Uma estrela de tamancos!...
É uma blasfêmia sideral!...”
Tinha
agudezas de ditos que nos punham em dúvidas. Doido?!... Se isso podia ser,
falando ele tão prodigiosamente bem, encontrando com tanta facilidade a memória
da sua juventude!
A sua palavra
quente, de uma fluência correntia e de um enternecimento tão sincero que pelas
lágrimas tinha arrancado muito perdão aos jurados comovidos — tomara um tom de
inspirado, quase profético!
Doido,
doido!?... E que seríamos nós, que o não compreendíamos? A imperceptível linha
que separa o juízo da loucura tremia diante da nossa dúvida.
Os seus
pobres nervos exacerbados estalavam em ditos faiscantes, desfaziam-se em
lágrimas, espalhavam o seu imenso talento em estilhaços — e apesar disso tão
brilhante! — como aerólitos, atravessando a deprimente vida provinciana.
Fazia-nos uma atmosfera de sonho, de desvairamento e de exotismo; que a
terriola já parecia — una casa de locos
sin locura!...
Ele, que só
por muito favor pegava dantes no violão, recordava agora todas as antigas
músicas com uma revivescência da sua vida boêmia de estudante. Cantava, com a
mesma alegria da mocidade, a triunfal recita do quinto ano.
Fazia pena
ver o pobre violão dobrar-se todo para gemer trechos de música já passados de
moda há mais de vinte anos. E mais pena ainda vê-lo tão alegre, dessa alegria
que tanta vontade de chorar nos causa!
Ia ao
cemitério conversar com a mãe — afirmava. Narrava, em voz estrangulada,
extraordinárias coisas que, parece, ela lhe dizia baixinho... Essa familiaridade
com o desconhecido fazia errar em torno de nós as sombras dos bons mortos...
uma névoa revoluteante de estranhos sonhos...
Que as
cabeças não andavam lá muito seguras, não!...
Quando o
levaram para o hospital, despediu-se radiante — certo de que ia ser o diretor,
projetando grandes reformas e esperando encontrar lá a sua pálida Ofélia,
absorvida num delicioso sonho feito de sorrisos de noivos e de Amélias
idas na corrente de luar...
Com os seus
cabelos flutuantes, as suas mãos translúcidas desfolhando flores, arrastando as
alvinitentes vestes — ela o aguardava...
***
Assim se
extinguiu aquele brilhantíssimo espírito! Assim ficou silenciosa aquela
eloquentíssima voz, que fazia repuxar lágrimas aos olhos dos mais ferozes
julgadores! Assim morreu aquele coração de românticos arrebatamentos,
naufragando na banalidade última da vida material!
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