10/25/2017

Gaivotas (Conto), de Marques de Carvalho


Gaivotas
I

Um bando de gaivotas, aos pares amoravelmente aproximados, ergueu o voo do matagal e, cortando o espaço por de sobre o borbulhante estirão do rio, veio seguindo o vapor, a poucos metros de distância da popa, ora alteando-se à ponta do mastro, ora descendo rápido, de olhar incisivo e lesto bico, até esfrolar levemente a água com as cendradas penas da asa desfraldada.
O marulho da água parecia excitá-las, espicaçar-lhes a atividade em céleres convites de festiva digressão a ignotas paragens, onde o céu fosse azul, — muito azul, — e a verdura das ilhas tivesse os tenros e alegres tons que apresentavam os aningais das margens defronte das quais passávamos naquele instante.
Revoavam jubilosamente, as gaivotas, aproximavam-se do vapor, descrevendo elegantes círculos, numa palpitação de asas semelhante ao ruflar do leque entre os dedos de uma bela mulher, quando impera, deslumbrante de graça, nos salões seletos. Vinham, parecia quererem invadir a coberta, participar da ruidosa vida que sobre ela apresentavam os passageiros, reunidos em íntimas palestras.
Sentado à popa, eu silenciosamente fitava aqueles aquáticos viageiros ignorados. Seguia-lhes os caprichosos folguedos sob a limpidez do céu, com o olhar perdido traz eles, emprestando-lhes ideias, dando a mim próprio as razões desse livre gáudio perante a pompa triunfal da tarde moribunda.
Formavam as margens visíveis do rio largas ilhas meio submersas, de que apenas se viam emergindo da água, — como braços erguidos para o espaço num entusiasmo viril de cânticos de louvor, — milhares de árvores variadíssimas, esparzindo perfumes resinosos e estalando as cascas sob a demasiada afluência das tépidas seivas vivificadoras. Como grandes açafates de caprichosas formas espalhados por toda a latíssima extensão do rio, essas ilhas balouçavam as farfalhantes comas glaucas, onde os pássaros, papeando, entreteciam previdentes os diminutos ninhos e a robustez dos meritizeiros erguia pendentes os pesados cachos de frutos granadinos.
Pelas margens, começavam a acordar os inominados animais notívagos e um arruído estranho, abafado, levantava-se em surdina sob o machucamento das folhagens ondulantes.
E a tarde morria a pouco e pouco.
Depois, ao fundo da paisagem, recortaram-se escuras, encobrindo o sol, as longas montanhas sobre as quais está ereta Monte— Alegre.
Um dos mais belos crepúsculos vespertinos começou então.
Quadro verdadeiramente formoso! O céu, entestando com essas montanhas, apresentava todas as tonalidades do íris, numa pujança complexa de matizes prismáticos, e o sol, — como apertado entre elas e a brunida cúpula sideral, — disseminava pelo espaço cristalino feixes de raios luminosos em gigântea expansão que lembrava uma aurora boreal, um enorme clarão de apoteose empírea.
Pelo nascente, subiam gradativas trevas, como poderosíssimo senhor que sai a combate sem precipitações, na sua convicção de iniludível vitória.
Ao mesmo tempo, perto do zênite, um crescentezinho de lua e a estrela da tarde, — esta quase tão luminosa como um raio do teu olhar, querida amiga, — cintilavam merencórios, como anuviados por incognoscível saudade, entre longas nuvens delgadas, cor de pérola e lírio, rendilhando-se no azul ferrete do firmamento.
As gaivotas, então, que tinham vindo a seguir-nos, — enquanto o meu olhar, da popa do navio, parecia desejar atraí-las poderoso, — grasnaram frenéticas e, de súbito, descrevendo rápido círculo elegantíssimo, regressaram à terra de onde tinham partido e fugiram veloces, numa atividade de movimentação de asas perdendo-se ao longe, na meia escuridade do crepúsculo.
Fiquei sozinho à ré, a fitá-las... — a fitá-las, oh! não! — a mirar o ponto do aningal onde se haviam perdido aqueles inconscientes seres, que tanto me tinham enleado o espírito nas invisíveis malhas dos seus largos círculos graciosos, descritos no espaço, em reflexões movediças sobre as gorgolejantes águas amazônicas.

II
Assim também fugiram-me precipitadas do seio as níveas alegrias, quando, levado pela embarcação, ausentei-me saudoso da terra onde ficaram as cândidas inflorescências do meu amor.
Como aquelas gaivotas, preguiçosas e simpáticas, os doces prazeres familiares deixaram-me seguir sozinho, breve regressaram à terra que idolatro na minha apaixonada efervescência de entusiasmo pela grande pátria digna das maiores dedicações.
Vou-me rio acima, isolado e desconhecido, entre pessoas estranhas, separado de vossos enlevadores afagos, ó queridos entes cuja ternura deslaça-me a vida em loiras espadanas de luz puríssima e gentil! Sigo meditabundo, sem receber na alma entenebrecida um raio do vosso olhar, — um só raio que me iluminasse o peito, para pôr em relevo dentro dele toda a soma de santos sentimentos para vós, — somente para vós — guardados ali!
A abafada canção da água babujando os flancos do navio faz a surdina dolente que acompanha as mestas lamentações do meu espírito obsedado pela aflição das saudades.
Às vezes, a desoras da noite, quando o firmamento escuro apresenta-se deserto das suas luzentes tauxiações risonhas, e só a floresta da margem reboa agitada pelo cadenciado barulho da possante máquina, embalde busco pelo céu do meu espírito certo par de estrelinhas anejas, — que são os doces olhos petulantes de minha filha, fanais da vida minha.
E só a luminosa palpitação fosforescente dos pirilampos tremeluze rápida no tenebroso veludo dos aningais da beira.
A solidão aumenta-me os pesares, quando a hora do crepúsculo da tarde vem descaindo vaga pela terra, deslizando do inflexível pendulo do tempo com a dura impassibilidade de uma desgraça tremenda.
Gaivotas, alegrias do rio! Alegrias, gaivotas do pélago da minha vida! Por que fugis tão velozes, sem vos deixardes agarrar por estas mãos, que vagam sem um apoio amoroso, sem vos deixardes aprisionar neste peito, fremente de meigas paixões santíssimas?

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