Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Na palidez
do poente, de um azul cinzento, a igreja destacava-se em negro na elegância da
sua torre manuelina.
Embaixo, o
largo era todo em festa; as luzes começavam a acender-se, pondo aqui e ali
sorrisos de ouro.
Olhando a
massa sombria do convento, uma vaga tristeza me ganhou o espírito. Lá em cima,
na pequena janela gradeada, quantos lindos olhos terão chorado, vendo o mundo
com o tumultuar das suas paixões e risos, alindado pela ignorância das suas
almas prisioneiras?!...
Por mais
artístico e lindo que seja um convento de frades, não me faz sonhar como os de
freiras. Se eu compreendo tão bem o martírio das pobres almas femininas
encerradas duplamente pelas grades e pela ignorância!...
As que
fugiram do mundo, porque nele sofreram, essas não me fazem tanta pena — tinham
para companheira da sua solidade a doçura amarga das lágrimas, que recordam
venturas idas...
Mas, pobres
entes muitas vezes votados antes de nascer à frieza claustral, arrepia-se-me a
carne só em pensar nas vítimas inconscientes desses sacrifícios bárbaros!
Conta-se que
aos quatro anos Santa Margarida de Hungria tomou hábito, tendo ido para o
convento ainda com a ama. Aos seis trazia cilícios e aos doze professava — “já
fadada para santa tinha vindo” acrescenta o cronista.
Mas as
outras, que fossem mulheres verdadeiras, de carne e nervos e sangue a palpitar
vida sadia e humana!... Ah, essas pobres plantas criadas em subterrâneos,
cairiam estioladas na frescura dos anos. Então — sem mesmo serem choradas
— iriam para a terra resgatar a mocidade em perfume de flores... Outras,
afazendo-se à solidão, vivendo na fantasmagoria luminosa do flos Santorum, iriam de degrau em degrau
à loucura santificada. E, mortas também, seriam adoradas sobre os altares...
Não sei que
doçura tristíssima encontra o meu espírito em visitar os conventos de freiras,
em piedosa romaria evocativa!
Aquele de
que eu mais gosto pela beleza da sua arquitetura rendilhada, acontece ser hoje
um hospital servido por irmãs de caridade. Ao ver passar ao fundo do claustro
deserto a mancha negra dos seus hábitos, não sei que lufada de outro tempo me
enche a alma de sombras!
Calcando
essas lajes desiguais, onde tantos corações arquejantes de fé foram descansar
para sempre, uma história me lembrou, que alguém, que ali viveu trinta anos,
piedosamente me contava:
— Era quase
noite; o céu de púrpura, onde o sol agonizava, esbatia-se gradualmente, vindo
morrer num louro cendrado, confundindo-se com a lua que se levantava em
crescente. Duas freiras das mais novas passeavam pelo claustro, onde, já do seu
tempo, tantas esposas do Senhor tinham ido esconder a face macerada, dormindo o
eterno sono.
Que diriam
elas, assim juntas, na hora das doces confidências, deslizando como sombras no
silêncio religioso do velho claustro?... Que mágoas viriam subindo da memória
longínqua dos seus amores mundanos?... Que sorrisos e que lágrimas?!...
Uma disse: —
“Cheira tanto a terra!”— “Breve estarás com ela!...”— Respondeu-lhe uma voz
formidável vinda do chão, vinda da noite, das grandes casas desertas!...
E o caso é
que a pobre freira entrou de entristecer, de cair numa grande e incurável
doença d'alma, que em poucos dias a levou para o supremo descanso, fazendo
certa a profecia.
Ainda este
convento tinha a beleza incólume das suas colunas em mármore, a alegria dos
grandes dormitórios cheios de luz, o encanto do coro todo em azulejos e atufado
de imagens santas.
Mas, outro
lá para a Beira, onde eu estive uns dias, escuro, enorme, sem beleza nenhuma,
pesando sobre a nossa alma com a bruta espessura das suas paredes mestras...
Ah, nesse, como seria horrível viver!
Apenas lá
encontrei duas freiras. Uma, a prioresa,— santa senhora! — alma lavada, riso
franco, uma encantadora ingenuidade no seu virgem coração de oitenta anos. A
outra, sombria, um olhar por vezes desvairado a fuzilar sob a brancura da toalha
de linho, que lhe emoldurava o rosto opalescido. Relativamente nova para ser
freira professa ao tempo que acabaram os conventos, fez-me curiosidade.
Perguntei à prioresa, e ela, a santa velhinha,— morreu o outro dia... que pena
tive! — ela contou-me tudo:
— É que
sóror Maria fora metida no convento aos quatro anos. Para que o morgado ficasse
livre de encargos? Promessa de pais muito piedosos? Não se sabia.
Mas a ela
não a tinha Deus fadado para santa! O seu coração, nascido para viver, nunca se
pudera aclimatar aquela existência de mortos.
Aos quinze
anos, os parentes obrigaram-na a entrar para o noviciado. A ordem
das bentas não reformadas,
não era apertada, ao menos...
Pelas grades
das janelas via-se a pequena cidade rumorejante e ativa como uma colmeia.
E a gentil
noviça tinha prendido os olhos aos olhos de um lindo moço, que de fora a
contemplava em êxtase...
À noite, nos
outeiros sentimentais, a conversa corria alegre e fácil como a água clara que
desce das montanhas. Que dúvida? Se eles eram novos e os seus espíritos tinham
tenteado o espaço que os separava, decerto que se haviam de amar!...
Depois, o
eterno drama dos amores contrariados: — espiões, todos os olhos que a fitavam;
criadas compradas; a família insistindo cada vez mais pela profissão...
Já vagamente
se falava em liberdade. Da França vinham flâmulas de luz. O namorado pedia-lhe
que resistisse... o governo miguelista seria vencido em breve. Era a sua
esperança! E então, ninguém a poderia obrigar a ser freira, ninguém se oporia a
que ela saísse, noiva feliz, da prisão fanática.
Ah! falar
cedo demais, meu pobresito, é um grande perigo!...
Desapareceu
o namorado e a triste da noviça deixou de resistir à vontade dos pais.
Já quando no
sul os liberais entravam, cantando a vitória que os atordoava a ponto de quase
duvidarem, de inesperada que foi,— tomava ela o hábito à pressa, tudo arranjado
pela família, tumultuariamente, temendo de a verem sair.
Mas não. Com
a morte do seu namorado tudo morrera nela! Sempre silenciosa, aquilo que ali
estava!...
Desde esse
dia, olhava com um romântico interesse, procurava a antiga beleza desse rosto
marmóreo, amortalhado em vida, o capuz do hábito cortado em bico sobre a testa,
os lábios cerrados num silêncio desesperador...
Parece-me
ainda estar a vê-la, no coro, na reza da noite, enquanto a boa prioresa —
acompanhada por duas meninas com velas na mão — ia lendo o seu latim e apagando
as luzes uma a uma!... Sóror Maria abstraía-se da vida presente e a sua alma
parecia voar para um mundo de recordações e sonhos trágicos...
A um canto,
com o lencinho branco das recolhidas, eu seguia o ofício fúnebre da prioresa,
nos olhos desolados da triste monja.
Depois de
lhe saber a história, dediquei-lhe um grande afeto, que os meus lábios jamais
lhe confessaram, atemorizados por um não sei quê de altivo que havia na sua
dor! São mais eloquentes, mais verdadeiros, os discursos que um delicado pudor
espiritual apenas nos deixa balbuciar com os olhos. Nunca ela compreendeu esse
afeto — porque, almas despedaçadas como a sua, já nada compreendem nos
sentimentos alheios!...
O que há de
triste no meio de tudo, é que o quebrar das cadeias também acarretou consigo
muitas e pungentes lágrimas. Companheiras insubstituídas, deixando um vazio de
morte nos casarões sombrios... As cercas tiradas pelo governo... A miséria, a
fome mesmo... Quanta tristeza na alma devastada das últimas freiras!...
E as festas
deste novo mundo, vistas das janelas gradeadas, seriam bem pouco compreendidas
por elas!
No largo, em
frente do convento onde a minha pobre Sóror Maria sofreu, fizeram
barulhentas touradas cheias de pó e gritos selvagens, espetáculo que dá, a
certos espíritos delicados, a mais frígida impressão de tristeza! Vendo esse
divertimento todo material, podia ela sequer recordar, lá em cima da janela
gradeada, os combates de poesia a que a sua mocidade assistira e onde o seu
coração ficara tão mortalmente ferido?!...
E assim, se
alguma freira de Jesus se levantasse da cova e arrastando o seu hábito de
franciscana fosse à última janela espreitar o largo — que diria ela ao ver os
balões em linhas caprichosas, esboçando fantásticos desenhos de luz na
escuridão da noite?...
E o povo
passando em onda, em chusma, por entre a alegria clara dos vestidos
femininos...
Que diriam
elas, que diriam?!...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...