10/23/2017

Está no céu! (Conto), de Alberto Braga


Está no céu!

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Um sargento de atiradores, que, desde a madrugada, tinha percorrido oito léguas, a pé, sem descansar, entrou em uma taberna que ficava à beira da estrada, e perguntou se era por ali que morava Maria La Courdaie.
O taberneiro descobriu-se respeitosamente diante do soldado, e, saindo à porta, estendeu o braço, e indicou-lhe:
— É ali, do lado direito. Abra uma cancela e entre.
— Obrigado! Boa noite — agradeceu o militar. E dirigiu-se apressadamente para lá.
***
No muro da estrada havia uma cancela de pau; e aberta a cancela, atravessando-se por um caminho assombreado de algumas árvores frondentes, via-se ao fundo a modesta casinha branca, escondida entre a verde ramaria de uns carvalhos.
Tinha ao lado uma leirita plantada de horta; e, à sombra de um choupo, mais no fundo, uma pia de pedra, onde murmurava uma veia de água muito cristalina. Do esgalho de uma árvore prendia-se ao tronco de outra uma corda, estendidas na qual alvejavam, expostas à luz perpendicular do sol do meio-dia, umas roupinhas brancas de criança. No cunhal da casa havia uma parreira, que subia encostada à parede, com as suas largas folhas de um verde acentuado dentre as quais pendiam os cachos escuros com os bagos cobertos de pó luzente e sutil das estradas. Da chaminé desenrolava-se serenamente uma espiral branca de fumo, que se expandia pelo ar. A casinha branca, de um só andar, aparecia encastoada no fundo escuro de uma colina. E no cabeço do outeiro, a espessura imóvel e macia de um pinheiral fechava o horizonte, como um largo reposteiro de veludo verde.
Nessa casa vivia uma formosa mulher na companhia de dois filhos.
Coitadita da pobre! Ficava viúva aos vinte e cinco anos e com dois filhinhos que eram o seu encanto. O mais velho tinha sete anos e chamava-se Miguel, que era o nome do pai; o mais pequenino contava apenas onze meses, e tinha nascido pouco depois que o pai partiu para a terrível guerra da Crimeia.
De uma vez, depois de cearem, a mãe, para que o Miguel não fizesse bulha e acordasse o menino, chamou-o para ao pé de si, abriu a carta geográfica, e disse-lhe:
— Olha, meu filho, onde está o teu querido papá?
O pequenino abriu muito os olhos, e respondeu a sorrir:
— Na guerra! Pum! Pum!
— Anda ver onde ele está.
E, pegando-lhe na mãozinha, fechou-lhe os três dedos mais pequenos, estendeu-lhe o indicador, e foi-lho levando por todas as terras por onde o pai tinha seguido. O dedo da criança ia subindo montanhas, descendo aos vales, atravessando as planícies, costeando pelo litoral e cortando o mar. O pequeno balbuciava todos os nomes que a mãe proferia. Quando chegou à Crimeia parou. Ergueu a sua cabecinha loura, e levantou os olhos para a luz do candeeiro, a ver se ele lhe fazia a mercê de o alumiar bem. Depois levou a mão ao abajur e tirou-o para o lado.
— Deixa o candeeiro, meu filho.
— Ora, ora — exclamou o Miguel, fazendo biquinho.
— Deixa, meu filho — pedia a mãe.
— Eu quero ver o papá.
E debruçou-se outra vez sobre a carta, a procurar com o olhar investigador um ponto qualquer.
A mãe, nesse instante, com o mais novinho adormecido nos braços, olhou para o crucifixo, que tinha pendurado à cabeceira, e principiou a rezar baixinho, com duas grossas lágrimas a tremerem-lhe à flor das pálpebras.
— Está aqui o papá? — perguntou o Miguel.
— Está, meu filho, está.
— Na guerra?
— Sim, meu rico amor, na guerra.
O Miguel ficou pasmado a olhar para a Criméia, e exclamou:
— Eu quero ir à guerra dar um beijo ao papá.
— Oh! meu filho!
— O que é a guerra, mamã?
— Não sei, Miguel. O teu papá, quando vier há de contar-nos, sim?
No dia seguinte, logo depois da ceia, quando o menino já dormia no regaço da mãe, o Miguel pediu:
— Eu quero ver outra vez o papá.
E foi procurando, pouco a pouco, pelo mapa. Assim que apontou a Crimeia, exclamou radiante:
— Ah! aqui está ele!
E depois, no outro dia, logo à boca da noite, bateram apressadamente à porta. Quem seria, Jesus! A mãe do Miguel até tremeu. Pegou na criancinha e foi ver quem era. O Miguel — aquilo era já um homem às direitas! — ia ao lado da mãe, segurando-se-lhe a uma das pregas do vestido.
— Há de ser o papá — disse ele.
Abriu-se a porta, e no fundo estrelado da noite, sobressaiu a elevada corpulência de um soldado. A claridade do luar batia-lhe em cheio no rosto avincado da fadiga e queimado do sol, com grandes bigodes espessos. Os botões da fardeta reluziam.
— É aqui que mora a Sra. Maria La Courdaie? — perguntou ele, enxugando ao canhão o suor copioso que lhe escorria na testa.
— Sou eu — respondeu a mãe de Miguel.
— É a mulher do Miguel La Courdaie?
— É o papá — disse do lado o pequenito, fitando o soldado com os seus grandes olhos azuis.
— Pois, senhora…
O soldado olhou em redor, perturbado, aflito, e continuou:
— Pois o Miguel, o 26 dos atiradores, o meu querido e bravo camarada…
— Hein? — balbuciou a pobre mulher.
O sargento apontou com o indicador para o céu, e, aproximando-se da porta, terminou:
— Morreu!
E deitou a correr pela estrada fora, porque não tinha coragem de assistir àquele lance angustioso. Não tinha ânimo, ele, que no calor da refrega, afrontara os maiores perigos!
Depois da ceia, o Miguel quis ainda ver o seu papá. Abriu o mapa, e quando chegou à Crimeia, disse:
— Eh! aqui está ele!
— Já não está, meu filho — respondeu-lhe a mãe a chorar.
O pequenito olhou para ela, e perguntou:
— Então?
— Está no céu!
— Está no… céu? Então vou procurar o céu.
E ficou, por muito tempo, debruçado sobre o mapa, a procurar onde ficaria o céu para ver o seu papá, até que deixou pender a sua loira cabecinha sobre o livro, e adormeceu.

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