Entardecer
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Uma tarde
tristíssima.
Desde manhã
que uma chuva miudinha e impertinente caía sem cessar. O céu, muito pesado,
muito baixo, esmagava o meu espírito, fazia-me sofrer de quantas mágoas
inconfessadas existem na vida — tão cruel, tão absurda às vezes!
A lama na
estrada chegava ao passeio; as árvores lamentavam-se desoladamente, todas
gotejantes e trêmulas, chorando a primavera que tanto, tanto custava a chegar
esse ano!
Bandos de
andorinhas passavam arrevoando junto
à terra, piando, friorentas, saudades do sol, que deixaram lá embaixo a dourar minaretes
agudos, a acariciar palmeiras, que ondulam brandamente as suas folhas em leque,
e graves mulheres que passam envolvidas em brancas musselinas transparentes.
Encostada
aos vidros da minha janela, eu olhava distraída... Quem passaria por uma tarde
assim?... A lama viscosa e pardacenta parecia querer subir, em maré cheia de
tédio, a engolfar o mundo na sua moleza repugnante. Tardes enodoadas e longas
que enoitam o nosso espírito, fazendo-nos perder a esperança de que jamais um
raio de sol ou uma nesga de céu azul venha alvoroçar-nos em sonoridades de
risos!
Uma menina
passava, tão magra, tão palidasita... A saia, muito fina, a cingir-se-lhe ao
pobre corpo de anêmica; agasalhava-se tremendo num pedaço de velho xale
esfarrapado e nas mãositas roxas segurava um pequeno embrulho.
Talvez seis
anos...
E as botinas
cambadas, maiores do que os pés, a enterrarem-se na lama, a não a deixarem
andar depressa...
E a noite
caindo silenciosamente, e ela sozinha, no campo sombrio, aquela hora e
naquela tarde tão abandonado e triste como um cemitério.
Seguindo-a
com o olhar, abstrata, quase inconsciente, pensei: quantas crianças da mesma
idade brincariam alegres e palreiras, em casas confortáveis, bem vestidas,
quentes?... Quantas, nessa hora vaga do cair da tarde, não correriam,
sobraçando os arcos, rindo da chuva e do frio, por entre moitas verdejantes de
lindos jardins, seguidas por loiras mestras altas e sérias? Bibes brancos a
esvoaçar como azas de borboletas; finos cabelos encaracolados caindo em
maciezas de luz, a nimbar de ouro Varezo cabecinhas graciosas... Belas crianças
feitas de mimos e de beijos, rosadas e fortes, prontas para a vida sem mágoas
nem canseiras.
E aquela!
Uma infância miserável, a prepará-la para o longo e obscuro martírio que
termina na vala comum passando pela fábrica e pelo hospital.
E a
pequenita caminhava vagarosamente, com uma precoce gravidade destoante dos seus
poucos anos. Mas...
Uma carroça
vinha em doida desfilada, com barulho irritante de velhas molas ferrugentas e
guizos casquinando sarcasmos na tarde chuvosa. Assustada, querendo fugir,
a criança deixou cair o embrulho. O papel rasgou-se e todo o milho que levava
se espalhou no chão lamacento. Nada mais pungente de ver; nada que mais
esgarçasse a alma numa angústia — que a pálida figurinha da pequena
contemplando aquele desastre!...
A carroça
passou e ela foi apanhando, grão aqui, grão além, aqueles que a lama não tinha
completamente perdido. Depois afastou-se lentamente, com um sorriso de infinita
resignação na sua boquinha já sofredora.
Seis anos
apenas — como ela aprendeu cedo a resignação amargurada da vida! Uma imensa
piedade, uma dolorosa impressão de irremediável sofrimento, me invadiu o
espírito, pensando em todas as anônimas desventuras que se acotevelam na vida.
A noite
vinha descendo lentamente. Pesava como chumbo a tristeza arreliante desse fim
de dia...
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