10/22/2017

Entardecer (Conto), de Ana de Castro Osório


Entardecer
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Uma tarde tristíssima.
Desde manhã que uma chuva miudinha e impertinente caía sem cessar. O céu, muito pesado, muito baixo, esmagava o meu espírito, fazia-me sofrer de quantas mágoas inconfessadas existem na vida — tão cruel, tão absurda às vezes!
A lama na estrada chegava ao passeio; as árvores lamentavam-se desoladamente, todas gotejantes e trêmulas, chorando a primavera que tanto, tanto custava a chegar esse ano!
Bandos de andorinhas passavam arrevoando junto à terra, piando, friorentas, saudades do sol, que deixaram lá embaixo a dourar minaretes agudos, a acariciar palmeiras, que ondulam brandamente as suas folhas em leque, e graves mulheres que passam envolvidas em brancas musselinas transparentes.
Encostada aos vidros da minha janela, eu olhava distraída... Quem passaria por uma tarde assim?... A lama viscosa e pardacenta parecia querer subir, em maré cheia de tédio, a engolfar o mundo na sua moleza repugnante. Tardes enodoadas e longas que enoitam o nosso espírito, fazendo-nos perder a esperança de que jamais um raio de sol ou uma nesga de céu azul venha alvoroçar-nos em sonoridades de risos!
Uma menina passava, tão magra, tão palidasita... A saia, muito fina, a cingir-se-lhe ao pobre corpo de anêmica; agasalhava-se tremendo num pedaço de velho xale esfarrapado e nas mãositas roxas segurava um pequeno embrulho.
Talvez seis anos...
E as botinas cambadas, maiores do que os pés, a enterrarem-se na lama, a não a deixarem andar depressa...
E a noite caindo silenciosamente, e ela sozinha, no campo sombrio, aquela hora e naquela tarde tão abandonado e triste como um cemitério.
Seguindo-a com o olhar, abstrata, quase inconsciente, pensei: quantas crianças da mesma idade brincariam alegres e palreiras, em casas confortáveis, bem vestidas, quentes?... Quantas, nessa hora vaga do cair da tarde, não correriam, sobraçando os arcos, rindo da chuva e do frio, por entre moitas verdejantes de lindos jardins, seguidas por loiras mestras altas e sérias? Bibes brancos a esvoaçar como azas de borboletas; finos cabelos encaracolados caindo em maciezas de luz, a nimbar de ouro Varezo cabecinhas graciosas... Belas crianças feitas de mimos e de beijos, rosadas e fortes, prontas para a vida sem mágoas nem canseiras.
E aquela! Uma infância miserável, a prepará-la para o longo e obscuro martírio que termina na vala comum passando pela fábrica e pelo hospital.
E a pequenita caminhava vagarosamente, com uma precoce gravidade destoante dos seus poucos anos. Mas...
Uma carroça vinha em doida desfilada, com barulho irritante de velhas molas ferrugentas e guizos casquinando sarcasmos na tarde chuvosa. Assustada, querendo fugir, a criança deixou cair o embrulho. O papel rasgou-se e todo o milho que levava se espalhou no chão lamacento. Nada mais pungente de ver; nada que mais esgarçasse a alma numa angústia — que a pálida figurinha da pequena contemplando aquele desastre!...
A carroça passou e ela foi apanhando, grão aqui, grão além, aqueles que a lama não tinha completamente perdido. Depois afastou-se lentamente, com um sorriso de infinita resignação na sua boquinha já sofredora.
Seis anos apenas — como ela aprendeu cedo a resignação amargurada da vida! Uma imensa piedade, uma dolorosa impressão de irremediável sofrimento, me invadiu o espírito, pensando em todas as anônimas desventuras que se acotevelam na vida.
A noite vinha descendo lentamente. Pesava como chumbo a tristeza arreliante desse fim de dia...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...