Dezoito anos
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A tia Clara, essa adorável velhinha que fez
há dias cento e quatro anos, teve também os seus dezoito — e por sinal
encantadores de frescura e graça.
Mal podemos
crer isto, nós que a vemos hoje tão serena, tão identificada com a nossa vida,
tão igual a nós pela lucidez do espírito, sempre de uma inteligência e de um
interesse perfeitamente juvenil.
Eu adoro
essa querida velhinha que não se envolveu nas recordações e remordimentos
egoístas como numa antipática couraça eriçada de espinhos.
Não! Ela
recorda todo o passado, mas suavemente, sem comparações desfavoráveis para
nós, como os velhos impertinentes costumam!... Relembra, levemente melancólica,
os tempos longínquos da mocidade, tão distante aos nossos olhos, tão vivos
ainda na sua memória.
A sua alma é
um piedoso Campo Santo habitado
pela saudade de todos os seus amigos, de toda a sua família mais próxima, que a
um e um a foram deixando na velha casa senhorial, já em parte abandonada de
grande que é!... mas o seu coração santíssimo vai florindo sempre jovem, amando
com igual afeto todos os que de novo chegam à família...
Ah! Eu não
me esqueço, minha boa amiga, da saudade reconhecida que me ficou na alma
quando, a última vez que a visitei, a vi afastar-se lentamente na meia
obscuridade do longo corredor. Seguia-a um ligeiro esvoaçar de recordações,
toadas simples vindas de muito longe— os franceses, guerras, mortes,
nascimentos, toda a sua vida singela passada na hereditária quinta perdida
entre serras, onde os ecos do mundo devem ter chegado sempre esbatidos em meias
tintas pálidas.
Tenho ainda
no meu ouvido o som inolvidável da sua vozinha quebrada dizendo serena e
sorridente: “assisti às últimas endoenças no convento de Maceira Dão!...” E
tudo morto nesse passado cheio de poesia, visto assim de longe, evocado pelo
seu espírito bondoso!...
Mas a
desvairada fuga aos franceses é que eu, mais do que tudo, gosto de lhe ouvir
contar.
***
— Era uma
tarde de fins de setembro, luminosa, quente ainda. O céu, todo em fogo no
poente, flamejava num incêndio colossal— toda a alma da Pátria agonizante
levantando para Deus a última esperança, no último clarão de tiros ao longe.
“Os franceses, os franceses!...” Esse
grito estridente como uivos de animais apavorados corria de boca em boca, era
um sinal de fuga, de miséria, de espanto geral.
O povo
ignorante e bom voltava para o céu os punhos cerrados numa desesperada ameaça.
Abandonado por todos na sua pátria invadida, agarrava-se à terra como à sua
única defesa, o seu único amor, a única razão de existir.
As mães
uivavam de dor pelos caminhos, torciam os braços convulsos vendo do alto dos
montes os filhos que partiam para a guerra. Outras estarreciam-se num silêncio
medroso...
Toda a alma
portuguesa fremia num anseio de liberdade.
Os reis
fugiam desprezivelmente covardes; os ricos ainda por vezes abriam os seus
palácios em festa ao passeio triunfal dos invasores; só no povo era sem tréguas
o ódio. Ele saberia resistir ou morrer! Miserável povo que sacudiu num ímpeto
de revolta olímpica o jugo dos invasores e acurvou a cabeça humilde às
exigências dos aliados! Desgraçada gente que não teve a hombridade de receber
na ponta das suas baionetas ensanguentadas pelos inimigos os reis que o tinham
abandonado nas horas más! Ingênuo povo que todos vão acordar em sobressalto
quando o perigo bate à porta e de que todos se riem depois, quando não é já
precisa a força do seu braço nem a fúria da sua coragem!...
Também a
Fornos de Maceira Dão, a esse cantinho da Beira que parecia dever estar
esquecido, guardado pelos matagais e serranias bravas, chegou o desvariado
clamor, o tremendo grito:
“Os franceses, os franceses!...” a pôr em
fuga toda a família da Clarinha — era assim chamada há oitenta e seis anos a
minha boa tia Clara.
Ela era a
mais nova das irmãs; fina, graciosa, de uma palidez de reclusa, uma grande
curiosidade perfulgindo nos seus olhos castanhos.
Ao saber a
notícia o coração pulsou-lhe comovido numa inconfessada alegria... Qual de nós
aos dezoito anos não compreenderá essa alegria? Não ter saído nunca do seu
vetusto solar — salas e salas, quartos incontáveis, corredores tão compridos
que é impossível conhecer quem vem ao fundo!... Os santos da capela doirados e
ridentes seriam os seus mais queridos companheiros, aqueles que melhor
compreenderiam a sua alma inquieta, sedenta de novo!... Se ela não havia de
estar alegre, no fundo, bem no fundo do seu coração, por essa fuga decidida que
a ia tirar por algum tempo da monótona vida de todos os dias?!...
Era triste a
existência da Clarinha, passada na miserável aldeia de casebres colmados, que
rodeiam a quinta dos fidalgos como outrora as choupanas dos servos se
encostavam medrosas às fortificações dos castelos feudais. As irmãs, casadas;
os irmãos, passando a vida dos fidalgos daquele tempo, caçavam, namoravam as
primas de vinte léguas em redor, estafavam cavalos e corriam as feiras.
De quando em
quando, pelas festas do ano, cortavam o fastidioso correr da vida cavalgadas
que chegavam ao pátio, primos e primas que se apeavam contentes abraçando a
Clarinha, que alvoraçada os vinha esperar à porta. Então, dançava-se,
passeava-se e, mais do que tudo, comiam-se jantares fenomenais e ceias luculianas.
Mal os
hóspedes saíam, a vida regulava-se tediosamente como de costume e apesar da
família ser muita, passavam uns pelos outros como sombras na enormidade da
casa. Quantas vezes, pelas agonizantes tardes de outono, não atravessou ela a
quinta e subindo o outeiro em frente se foi sentar nos degraus do Santo Cristo, fantasiando o mundo,
sonhando com alguma coisa nova que a fizesse sofrer e viver?!...
Já então,
como agora, como será daqui a muitos anos, a imagem do Cristo era ingenuamente
feita de uma fealdade que espanta, escondendo-se no seu nicho branco, erguendo
na tristeza da paisagem os braços misericordiosos de Deus moribundo perdoando
sempre à humanidade que chora.
Como agora
também, a Clarinha ouvia pela quebrada das serras os carros chiando carregados
com as dornas para os lagares... Os bois olhavam-na pensativos, sacudindo as
cabeças filosoficamente, fazendo retinir as campainhas das coleiras de couro
que lhes cingem os cachaços robustos... Primitiva e sempre igual a vida passada
naquele recanto de natureza agreste.
Que admira
pois que a Clarinha ficasse intimamente alegre quando o medo aos franceses a
atirou para longe— como um passarito engaiolado a quem de súbito abrissem as
portas do cárcere e visse diante de si o luminoso espaço onde à vontade poderia
bater as azas!?...
“Os franceses, os franceses!...” Era
alguma coisa de vivo, e espirituoso e brilhante, que ela não conhecia, mas
que a não assustava.
Nessa tarde
luminosa de fins de setembro os cavalos esperavam no pátio desde muito e só a Clarinha,
impaciente, estava montada. Toda a família partia: quarenta pessoas, entre
velhos, mulheres, crianças e criados — que eram, patriarcalmente, uma
continuação menor da família. Os homens válidos, os rapazes, esses lá andavam
pela guerra, e bastante invejados pela Clarinha!... Os velhos despediam-se
chorosos. Arrancavam-se dali como quem tirasse de um peito ainda vivo um
coração sangrento. Fugia-lhes a vida em gemidos. Os cedros da quinta tinham
para eles a magoada significação dos ciprestes da igreja, onde toda a sua
família, desde séculos, ia dormir descansadamente; mais felizes eram esses...
Pela
madrugada chegaram a Viseu. Deserta a pequena cidade, de sombrias e tortuosas
ruas. Os cavalos batiam rijamente nas calçadas, pondo em sobressalto os pacíficos
habitantes. Abriam-se janelas a medo e caras enfiadas de susto espreitavam
inquirindo: seriam os franceses?!... — Não, não eram ainda, mas gente que
fugia deles!... — Então sempre era certo; vinham, vinham!... — E as janelas
fechavam-se rapidamente como se quisessem espancar assim a visão dos franceses,
monstros de pesadelo!
Caminhavam
sempre. Em São Pedro do Sul, a mais risonha terra da Beira, um jardim que a
natureza cultiva amoravelmente entre as rudes serranias beirãs, o mesmo pânico
estampado em todos os rostos que entreviam— que raros eram!... Um deserto que
se fazia por toda a parte ao grito terrificante: “Os franceses, os franceses!...”
E esse grito
de pavor perseguia-os sempre, como dobre a finados para os velhos e medo para
as criancitas — que imaginavam o papão formidável e negro levando os meninos
nas garras aduncas!... Só as mulheres, com o espírito mais vivo, mais
aventuroso, começavam a achar deliciosa aquela correria louca diante do
desconhecido. Para a Clarinha era sempre a mesma ideia: — eles seriam alguma
coisa de vivo e espirituoso e brilhante, que ela não conhecia, mas que a não
assustava!...
A noite caía
muito fria, desse frio seco e cortante da serra. As estrelas brilhavam mais do
que nunca, com um nervoso piscar de olhos bonitos... Ela olhava-as, sonhando
acordada!— Via um cavaleiro vestido de ouro que levava pela estrada da via
láctea todo um povo conquistador e belo... E uma águia enorme, com azas feitas
de soes, cobria o mundo numa efabulação de luz!...
Ali tiveram
que parar algumas horas. O pequenino irmão da Clarinha, o mais novo da família,
a criança que ela amava já com entranhas maternais, ficou-lhe sem vida nos
braços, morto quase repentinamente pelo frio e incomodidades da jornada. E esse
pequenino corpo que em circunstâncias normais ela teria chorado desesperada,
cobrindo-o de beijos, saiu-lhe quase indiferentemente dos braços fatigados. Era
a própria mãe que lhe dizia que não chorassem; era preciso fugir, fugir, fugir
sempre: “Os franceses, os franceses!...”
Era a própria mãe, tão extremosa, tão cheia de cuidados por todos, quem dizia
aquilo!... Pasmava.
Bem certo é
que as grandes dores se fazem pequenas quando não há tempo para as sentir.
O medo é um grande consolador.
Ao saírem de
São Pedro do Sul, entravam os franceses pelo outro lado. Algum destacamento
perdido do grosso do exército, ou talvez esfomeados procurando víveres... Em
todo o caso levando o pânico até onde chegava o ruído das suas vozes de
comando.
E esse dia
passado sem comer, porque apenas tinham levado um pão para cada um, não
contando com o deserto em que tudo se encontrava, enervava-os, fazia-lhes
alucinações, mal se podiam sustentar sobre os cavalos.
Chegaram à
Trapa. Oh, a horrorosa terra!— Casitas negras e baixas, feitas de pedras soltas
cobertas de colmo e telha vã, sem janelas nem frestas, uma única porta para dar
luz e para a entrada. Mais pareciam tocas de animais selvagens do que
habitações de gente, num país civilizado.
O avô da
Clarinha, apesar de velho a quase não poder mexer-se, viera deitado num carro
de bois até ali; mas então desanimou: — que o deixassem, que o deixassem!...
Morria mais descansado. Os franceses não o descobririam naquela terra inculta
que se debruça no abismo das montanhas e nem de longe se distingue da
negrura delas; que fugissem, que fugissem depressa!... — E no egoísmo dos
grandes perigos ninguém se lembrou de contradizer o velho. Ele era um estorvo
na viagem; ficarem todos seria talvez a morte. Só a mãe da Clarinha ficou para
acompanhar o sogro, que numa incoercível lágrima de saudade deliu todas as
mágoas da sua última hora. Porventura ele revia nesse momento único toda a sua
vida passada: — a casa onde nascera e contara morrer, as árvores muito amadas...
Festas de família, perfis de parentes mortos havia muito, casamentos, caçadas,
pressentimentos de desgraça para os filhos e netos, que andavam na guerra... —
Tudo isso se devia confundir, amalgamar, no aturvado ânimo do pobre moribundo.
Os outros
continuavam a jornada passando por terreolas abandonadas, de uma desolação infinita.
Essa região montanhosa, largamente bosquejada, de uma austeridade de contornos
que limita a fantasia, tem sempre uma estranha beleza selvática, que intimida
os mais alegres. Então, precipitadamente abandonada pelos seus bisonhos
habitadores, devastada pelos fugitivos que passavam em caravanas, em famílias,
um a um, como lobos perseguidos, tinha um aspecto quase trágico, macabro como
um desenho de Doré, mas para eles tudo era bom, tudo divertia e alegrava na
excitação da fuga. Aqui, tinham todos por cama uma casa térrea cheia de palha e
de manhã acordavam cobertos com um frio e branco lençol de geada... Além,
comiam feijões cosidos sem nenhum tempero e pão de cevada negro e pegajoso como
o pez... E tudo suportavam alegremente no egoísmo brutal e profundamente humano
— de viver e ter saúde.
Tias e
primas da Clarinha, velhas senhoras habituadas à doce paz do chazinho
conventual, suspiravam, lamentavam-se muito por o não terem tomado havia uns
poucos de dias! Afirmavam— que antes queriam ficar sem pão. Deu-se volta aos
alforjes e numa algazarra cheia de alegria cada um apareceu triunfante com sua
coisa, que na precipitação da última hora ali tinha metido sem saber para quê,
sem mais se lembrar de tal. Havia chá, açúcar e água, até xícaras apareceram; mas
onde a chaleira?... Todos os olhos se dirigiram para a panela de barro negro
onde se tinha cosido o caldo... Era a única coisa que havia e essa mesmo
serviu; sem que ninguém se lembrasse de aventar repugnâncias... E por essa
noite frigidíssima de fins de setembro, numa casita negra esburacada, perdida
entre serras e matas, elas tomaram o seu chazinho quente, que teve um sabor
particular — nada bom a dizer a verdade— mas que lhes lembrou toda a vida.
Pela serra
da Gralheira fora era um nunca acabar de risos e gritos alegres, quando um caía
do cavalo, quando outro escorregava, e principalmente com as histórias do guia,
o padre Manuel da Trapa. Era um
bom homem rústico, folgazão e falador como poucos, um montanhês às direitas,
português velho. Desprezava os franceses; não chegava mesmo a acreditar neles.
Por sua vontade tinham ficado todos na residência e
os tais franceses que aparecessem!...
Súbito,
interrompendo uma história que ele ia contando aos da frente, um grito saiu
dilacerante de uma boca contorcida. Todos pararam ansiados, voltando a
cabeça para traz. Aquele grito tinha vindo tão do fundo d'alma, revelava uma
tal acuidade de sofrer, que a todos fez pulsar o coração pensando em que alguém
tivesse rebolado pela montanha abaixo despedaçando as carnes pelos fraguedos!
Não era isso, mas um sofrimento maior ainda, que gritava assim desesperado: —
uma tia da Clarinha saltara do cavalo e, pálida de morte, estorcia-se no mais
pavoroso inferno de dores! Estava grávida no último período e todas aquelas
comoções e sustos tinham apressado a crise. Que fazer? Olhavam-se todos
aterrorizados, indecisos... Impossível parar naquele descampado, seria matá-la...
E os franceses!?...
“Com
trezentos diabos, isto não pode ser assim!”— gritava furioso o padre Manuel,
sem nenhuma atenção nem sombra de delicadeza pelo sofrimento crudelíssimo da
pobre mulher. Com uma voz que ele se esforçava por tornar ainda mais rude do
que naturalmente era — para disfarçar o diabo de um nó que se lhe pusera na
garganta, explicava ele depois — mandou que lhe dessem a senhora que ele a
levaria diante de si. A boa égua podia com tudo e depois — que diabo, já
estavam perto da estalagem das Maçarocas, no caminho do Porto, bem conhecida
por aquelas redondezas.
E lá
continuaram a marcha, agora tristemente acompanhada pelos gemidos da infeliz
criatura, que sofria cada vez mais.
Chegaram
enfim a Carregal de Monhoce, uma insignificante aldeia quase desconhecida de
todo. Em frente era o Bussaco; sentiam-se tiros ao longe; o que iria por lá?...
“Os franceses, os franceses!...” E a
Clarinha, pondo os olhos na linha arroxeada e muito nítida da montanha
fronteira, pensava neles... Nunca os vira mas sonhara sempre com alguma coisa
de extraordinário e cintilante, que a não assustava no fim de contas!...
Terminada a
guerra, tornaram pacificamente para a grande casa, que ela encontrou ainda mais
sombriamente solitária. Muitos faltaram à chamada, no primeiro repasto de
expatriados que reviam o seu lar bem amado!...
E a Clarinha
lá continuou a sua vida, a mesma, sempre cortada pelos mesmos incidentes
de visitas e festas.
O Santo
Cristo era, como hoje é também para nós, o seu passeio favorito nas tardes
melancólicas de outono — estação de tristezas e desalentos, que morre
lentamente em cada folha que se desprende das árvores, lágrimas silenciosas da
natureza, que em breve será de luto, quando o inverno vier implacável... Em
frente, a verde cortina dos pinheiros mansos esconde o antigo convento de
Maceira Dão. Triste, bem triste, é hoje esse convento em ruínas onde a erva
cresce em liberdade, atravessado por todos os ventos, por todas as chuvas; é
quase um milagre estar ainda em pé! Nesses tempos, que tão remotos nos parecem
já, como ele devia ser bonito! E a tia Clara, sentada nos degraus da capelinha,
ouviria com um doloroso confranger de coração a austeridade do bronze chamando
ao coro os bons frades cistercienses.
Aquele som
lacrimoso devia repercutir-se de serra em serra como um soluçar de penitência.
Como ia longe, a tarde luminosa de fins de setembro, quando o grito “Os franceses, os franceses!...”
afugentou e confundiu tudo!...
Mais tarde
houve ainda um rasgão de luz na sua vida monótona: um novo clamor de guerra
punha as almas em sobressalto. O grito de liberdade foi um rastilho de fogo que incendiou todas as
cabeças. Os frades fugiram; os irmãos, os homens da família, foram todos
combater por D. Miguel. Quando ele foi expulso, quando a guerra acabou tão
frouxamente que a esperança continuou por largos anos no ânimo dos legitimistas,
os irmãos da tia Clara recolheram à velha casa de província onde por muito
tempo ainda se reuniram todos os fiéis partidários do rei absoluto que viviam
nas Beiras e Trás-os-Montes.
Depois, tudo
foi passando...
A morte e a
vida vieram de mãos dadas terminar muita esperança, muita alegria, como enxugar
muitas lágrimas com novas felicidades!... Na memória dulcíssima da nossa
adorável velhinha é que tudo vive intato. Principalmente os longínquos fatos da
sua mocidade, e, entre eles, essa aventurosa fuga aos franceses — o que eu mais
gosto de lhe ouvir contar.
Recorda a
com tantas particularidades, com tal clareza de incidentes, que me enche
de admiração. Coisas passadas há menos tempo não as recorda ela tão
nitidamente! Lembra o sinal vincado com a unha na passagem mais interessante de
um romance e que de folha para folha se vai conhecendo menos até desaparecer de
todo.
Um dia
perguntei-lhe também: “Tia Clara, que há de verdade no “Retrato de Ricardina”,
naquele romance de Camilo passado aqui tão perto?!...”
“Alguma
coisa ha!... Bem tristes tempos eram esses!...” E a sua venerável cabeça branca
inclinou-se umas poucas de vezes numa recordação que lamentava ainda — lágrimas
vistas correr há muitos anos e nunca esquecidas!...
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