10/07/2017

Depois do cometa (Conto), de Júlio Diniz


Depois do cometa

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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De olhos pisados e presos num halo de violeta cinta, Alexandrina ergueu-se da steeple-chaise, e beijou a mão da velha senhora D. Carolina, que acompanhava Mimi, naquela matutina visita de núpcias.

Ao depois, como duas flores de uma só haste separadas para sempre que se reencontrassem, a recém-casada recebeu alacremente nos braços a figura da amiga e beijaram-se fartamente.

De outro lado, Artur, o novel esposo, enfardado no seu dolman de brins brancos, cumprimentara, cerimoniosamente, a Dona Carolina e com um sorriso prazenteiro aplaudiu as brejeirices de Mimi.

Esta e Alexandrina, ao depois de afáveis cumprimentos gerais, confidenciavam numa janela, por detrás de arrendadas cortinas, onde se foram acastelar para a permuta de segredos...

— A que horas despertaste?

— Nem sei mesmo...

— Não é possível.

— Palavra!

— Então ferraste no sono, e...

— Ao contrário: não dormimos.

— É esquisito.

— Como te enganas! Não calculas o que seja a estafa de um dia de noivado.

— O dia mais belo da mulher...

— Parece-te?

— Esta é boa, Alexandrina! Sou eu quem deve perguntar-te: não te sentiste extraordinariamente feliz?

— Ah! sim... Casei-me por meu gosto...

— Olha que já me pareces outra com tanta sisudez e secura...

— Não é, Mimi. Artur e Dona Carolina nos olham insistentemente. É preciso que não me tenham na conta de alguma leviana: já hoje em dia, minha amiga, tenho segredos que te não posso falar...

— Proibiram-te de dizer-mos...

— Não! Nem sei explicar-te, mas há tanta alteração na vida de uma mulher que se casa, dentro das primeiras vinte e quatro horas de sua vida conjugal, que nem sei como me reconheceste hoje... Já viste, no craveiro, o botãozinho verde; o casulo de folhas, como, na manhã seguinte, está um perfumoso cravo, uma flor distinta? Se te dessem as duas coisas, pela vez primeira, tu contestarias o fato como inverídico...

— Mas eu te vejo a mesma boniteza...

— Sim! É questão de alma. Supõe que adormeceste no começo de uma viagem e que quando despertaste estavas numa terra de estranhos. O teu corpo seria o mesmo, a tua lindeza não seria transformada, mas o teu coração palpitaria diversamente na sociedade desconhecida a que aportaste. As tuas amigas ficariam noutra parte. Se quisesses vê-las, seria preciso que regressasses ou que elas viajassem para onde foras. Assim no casamento: viajei para muito longe de ti. Para nos irmanarmos como dantes, ou voltarei à minha imaculabilidade de ontem, o que seria impossível, ou tu ascenderás ao matrimônio para o que faço votos.

— Tens razão!

— Não te parece?

— Falas e procedes tão judiciosamente que não me atrevo a duvidar das alterações por que passaste... Eu, porém, serei capaz de repudiar o casamento para não me esquecer tão depressa das intimidades com as minhas amigas...

— Não me esqueci. És injusta! Não te darei novas confidências: as velhas, entretanto, ficarão acariciadas como um sonho de felicidades na vida de uma mulher inditosa.

— Pois pensei que me dirias tudo...

— Tudo... quê?

— Ora!

— Denúncias que pensas em algumas coisas que não são verídicas, ou, pelo menos, não o foram para mim.

— Foste diferente das outras!

— Ofendes-me.

— Não te ofendo, não. Desconheço-te.

— Que quererias tu que eu te falasse?

— Não sei. Se soubesse, desnecessário seria que me referisses.

— Objetiva o que queres saber... e depressa, porque Artur me acompanha com um olhar seriamente investigador e tua mãe franze o sobrolho para mim... Um há de supor-me indiscreta para te comunicar tolices... e a outra... corrupta para te ensinar... loucuras...

— Não! Deixa...

— És má! Tens talento e não queres compreender a minha situação, especialmente no dia de hoje.

— Já te compreendi: e estou pelo que tu quiseres...

— Amuas sem razão.

— Com que direito a planta exige viço da flor que já foi colhida? Compreendo, perfeitamente, agora, que entre nós duas existe a alma do Sr. Artur...

— Não exageres...

— Podes ouvir de mim o maior segredo, bem como ouvirás dele também. Os meus serão contados, sílaba por sílaba, aos ouvidos do Sr. teu esposo, porque não deve haver um conhecimento novo que não pertença a ambos: os dele... morrerão contigo, porque não deves trair à tua fé conjugal...

— És incondescendente!

— Sim, sou incondescendente na verdade das coisas.

— Em parte, minha amiga.

— Não. Em tudo.

— Veremos.

— Pois experimenta!

— E se eu te provar?

— Pago-te com um beijo...

— Oh! Pois então a mulher que se casou pode beijar outra pessoa que não seja o seu esposo?

— Deste modo, Mimi, não chegaremos a um acordo. Há beijos como há conversas... O que te conversei até ontem, não conversarei jamais com o meu esposo. O que te converso agora, não conversarei jamais com a tua mamã. Beijos!... Os que te dou são da ordem dos que sempre te dei...

— Bem te compreendo. A mulher casada tem duas existências.

— Não sei se somente duas, mas, a solteira, antes do matrimônio, nem sei quantas tem...

— Contudo, conto-te eu um incidente de minha intimidade feminina. Dizes ou não ao teu marido?

— Conforme.

— Não é caso de dubiedades. Dizes ou não?

— Se for só do teu interesse, não.

— Faço-te justiça, minha boa Alexandrina: a tua gentileza obriga-te ao falseamento agora, somente agora, do teu dever. Contarás tudo o que te disserem, ou serás uma perjura na fé conjugal. Eu mesma duvidaria de tuas intenções, se ocultasses do teu marido o menor acontecimento que te revelassem. E, por fim, em tudo quanto te falarem hás de descobrir sempre esse interesse que não é exclusivo da pessoa que te falou, para contares tudo ao teu companheiro. Deixemos essas coisas de parte, e afetemos a nossa convivência hipócrita, como tu queres...

— Dou-te razão, minha amiga. O mundo é esse mesmo e não serei eu quem o modificará.

— Estavas bela, Alexandrina, nas tuas vestias de noiva!

— Achaste?

— Encantadoramente bela!

— E tu me viste?

— Sim. Passaste bem junto de mim quando saltavas da carruagem à porta da igreja. Tinhas um rubor nas faces de matar de inveja.

— Era a última nota do meu pudor de virgem!

— A tua costureira fez o teu vestido a capricho e o teu cabeleireiro assentou-te a grinalda como uma coroa de rainha. Agradou-me a tua elegância. E, por que não te censurar? só não gostei de trazeres os olhos humildemente baixos... Faltava-te o sol do teu olhar esplêndido.

— Lisonjeira!

— Eu traria os olhos bem iluminados, fascinando as multidões que se dominavam com a curiosidade de ver-me...

— Tens razão. Naquela hora, eu temia os olhos de tanta gente... sem saber que... mais tarde...

— Dize... dize...

— Dir-te-ei... mais tarde... eu teria sobre o meu corpo olhares mais algozes...

— Deveras?

— Sim, minha amiga! Não calculas o olhar de Artur quando ele... Oh! Digo-te de mais! Perdoa se te ofendo...

— Desculpo-te. Senhora de mim, sei dispensar-te das leviandades que, ainda há pouco, condenavas. Onde puseste o teu véu?

— Guardei-o já para oferenda a uma Santa.

— Quem to tirou?

— A mamã... Artur conversava no salão com o papá e dois amigos retardatários... Sentia-me alquebrada. Também já era alta hora da madrugada. Duas ou três, não sei.

— E o teu vestido? Era primoroso...

— Está no armoire-à-glace...

— Muito amarrotado?

— Não. Quando o despi... chorei! Como é que uma mulher só se veste tão bem uma vez na vida?!...

— Choraste, Alexandrina?

— Sim.

—É de mau agouro. Dizem que morrerá primeiro aquele que chora...

— Não sabia.

— Nem que morrerá antes do outro o que se deitou por primeiro?

— Também não! E por isso também serei eu quem morrerá antes...

— Ah! já estavas deitada quando ele apareceu na alcova?

— Sim. Ele se abeirou de mim e, segurando-me uma das mãos, tratou do sucesso das festas de nosso casamento. Recapitulamos toda a seroada, desde as asperezas do juiz casamenteiro, até às melifluidades de voz do sacerdote, quando fez a prática sobre a felicidade conjugal. Recompusemos a sociedade que aqui esteve. As danças, o serviço de buffet, a cerimônia do chá... Tudo se conservou. Ele dizia uma coisa, eu lembrava outra. Sorríamos-nos, comentávamos, com seriedade, as incorreções dos outros...

— E o tempo se passava...

— É exato, Mimi. O tempo se escoava enganadoramente. Não sabes, porém, como foi oportuna a nossa conversação. Quando estremecemos, ouviu-se o tiro das cinco horas...

— E então?

— Artur lembrou-se do cometa... Já o viste?

— Ainda não!

— Pois é belo! Artur mostrou-mo... Que lindo esteve ele na madrugada do meu casamento?!... Se todos vissem o cometa como eu vi...

Interrompidas por Dona Carolina, Mimi e Alexandrina, dando-se as mãos, nervosamente, passaram ao recinto da sala e entraram na conversação comum...

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