Cúmulo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Trabalhava
muito, a mulherzinha. Era para admirar como um corpo tão débil podia com tanto.
Ela era os recados, a lavagem das casas, as compras...
De manhã
passava avergada por grandes cabazes, onde as cebolas cor de rosa conversam
amigavelmente com os pimentos de um belo verde de porcelana, a couve abre
grandes folhas já murchas cobrindo as batatas ainda com terra, as cenouras
doiradas, o raminho de salsa cheirosa e a carne junto da escama prateada do
peixe é uma sangrenta mancha — como ramo de cravos num corpete branco. A
extravagante mistura que as cozinheiras recebem torcendo o nariz, ralhando
com as pobres compradoras e por fim acomodando-se, vencidas pela avalanche de
comentários e explicações... Tudo pela hora da morte! Não há quem possa chegar
à mais insignificante coisa! E cada vez pior. Verão que os pobres hão de morrer
de fome qualquer dia!...
Com um
sorriso estagnado, magrinha, grave, trabalhava muito, muito. Silenciosa, sem
incomodar ninguém, passava ou, melhor, escoava-se por entre a multidão como um
peixe dentro d'água por entre os dedos da mão que o quer segurar. Não faltava
às missas, ouvia recolhida todos os sermões, frequentava as novenas, mas não
tinha excessos devotos. Tudo fazia comedidamente, sem nenhum exagero.
Não sei como
dizer em frase vulgar a sua figura tênue. Que isto não dá a ideia, não completa
a impressão que dela fica, leve como um desenho mal esboçado a esfuminho quase
limpo... Honesta, vestidinha de escuro, asseada, faz gosto vê-la. Tem um ar
senhoril, distinto, quase de uma velha fidalga sem fortuna que precisa agradar.
As filhitas
andaram sempre muito arranjadinhas. Enquanto pequenas, era mesmo um
encanto. Fatos velhos talvez, mas tão gentilmente postos, que ao vê-las
dir-se-ia que eram duas meninas ricas. No Colégio não se confundiam com as mais
pobres, não. Mal ficara viúva deixara a renda na almofada encher-se de pó,
amarelar com o tempo e confundirem-se os bilros numa indesmanchável meada.
Viúva?!...
Se ela acaso
o era!... Que o marido embarcara e há dezesseis anos que não sabiam dele.
Tantas vezes navegara naquele navio mercante e sempre voltara tão alegre,
trazendo tanta coisa estranha de países distantes, que ela nem compreendia que
pudessem existir!... O que o pobre homem ria de gosto com os espantos da sua
mulherzinha! Porque a amava muito, apesar do seu feitio rude, das suas maneiras
largas de embarcadiço; morria por ela e pelas pequenas. Não pensava em mais
nada, nas longas viagens trabalhosas por esses mares fora.
E dezesseis
anos sem dar conta de si — decerto que tinha morrido!... Mas sem o confessar,
no fundo do coração alimentava ainda uma esperança... Custa tanto
acreditar na morte das pessoas amadas, mesmo quando deixam de sofrer diante dos
nossos olhos!... Que fará, assim?!...
As raparigas
eram bonitinhas, beleza da mocidade, uma certa finura da mãe, com os instintos
aventurosos do pai, talvez. Queriam luxo, muito fato, como as outras. Cores
claras, leques, fitas, plumas, rendas... coisas tão caras, mesmo quando
ordinárias, para uma pobre mulher que mal ganha para a comida. Quantos recados
era preciso fazer; quantas casas esfregar! Por mais que se estafasse não
chegava a nada. Sempre as outras melhor do que elas; sempre as raparigas a
grazinar.
Um dia,
furtivamente, tirou uma renda de sobre o mostrador de uma loja de modas, onde
comprava para outros o que tanto desejava para as filhas. E que linda gola
fizeram! Daí em diante, nas casas que servia, ia tirando sempre, sempre, na
tentação que crescia como serena maré num mar feito de lama amornada. Abria as
gavetas, desaparecia dinheiro... desconfiavam e despediam-na. E as raparigas
que desejavam blusas novas, casacos, lenços!... Por fim, até chapéu. A
pobre mulher, que não tinha remédio a dar-lhe, dobrava-se sobre si mesma,
compungida da sua desgraça. Não era remorso; era pena de não ter a quem roubar,
devagarinho, sem haver escândalo.
Um dia,
cansadas de não terem o luxo que desejavam, abalaram as duas deixando a mãe a
governar-se sozinha. E ela — nunca mais tirou nada a ninguém! É tão fiel, tão
honesta, que não haveria perigo em lhe confiar uma fortuna.
“Que as
filhas são muito boas... — murmura a pobre, muito convencida,— dizem por aí mal
delas; mas tudo é inveja. Coitadinhas, andam bem vestidas, andam, mas isso o
que tem? A mais velha há de casar em morrendo a mulher do homem que a
sustenta... E Deus há de fazer esse milagre! — Sinceramente o pede nas suas
fervorosas orações. — A outra casa para a páscoa, com um empregado público.
Vive como senhora.”
E há quantos
anos que ela espera essas boas festas!...
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