10/23/2017

Coronado (Conto), de Fialho de Almeida


Coronado
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Há sete ou oito anos vinha eu do Poço do Bispo no elétrico, quando nas alturas da Mitra entrou um meu velho amigo e camarada, Dr. P., clinico da localidade, com quem vim conversando até à Baixa.
Trazia na mão um número de revista literária, e abrindo-o no sítio de uma peça poética, impressa, perguntou-me se eu ouvira alguma vez falar da Coronado. Fiz com a cabeça que não, e ele, explicando que era o médico da casa, em duas palavras fez o elogio sumário da sua cliente. Mês e meio havia que esta senhora, já então de oitenta a oitenta e dois anos de idade, mas completamente em plena validez mental e muscular, se fora por uma escada de pedra, quebrando um braço pelo terço inferior do cúbito e do rádio.
Poucas esperanças tinha o clinico, dada a idade provecta da paciente, de se virem a soldar os topos da fratura; senão quando, ao lhe ser tirado o aparelho, se viu como os ossos quebrados tinham aderido, e a cura se fizera completa e às maravilhas!
Enquanto imóvel no leito, a doente, cuja nervosidade frenética espantosamente sofria de estar preza, para enganar o tempo e distrair o espírito volitante, ideara e compusera em quadras endecasílabas, uma poesia festiva às suas mãos.
E aqui o médico estendeu-me a revista para eu ler.
Uma das mãos da Coronado estivera mês e meio entrapada nas ligaduras do aparelho de fratura, sem ver a outra, e a poetiza figurava-as como duas amigas ou irmãs gêmeas afeitas a comunicarem no seu dia a dia impressionista, a imitarem-se os gestos, a procederem por sentimentos e instintos idênticos, e que uma tão longa separação lançara no desespero e na saudade.
A alegria do novo encontro fazia-as exultar em caudais de ternura e hosanas de prazer. Os versos eram ricos, nem farfalhudos, nem ocos, com significados precisos, frases de bronze sonoro, imagens faiscantes, claras, simples, dando uma ideia de riqueza sóbria, e mostrando uma artista experiente e um pulso de homem. Não havia hesitação nem cansaço, nem essa pulverisante banalidade dos velhos que vivem de restos e, perdido o sestro construtivo e inventivo, fazem literatura de toadas e sandezes. Qualquer Fernandez Shaw ou Eduardo Marquina, Santos Chocano ou Manoel Machado, Ruben Dario ou Francisco Vilaispesa, poderiam ter assinado esse texto de bravura, doce e intenso, vivido e sentido, verdadeiro cântico de uma alma unindo a transcendência lírica à precisão. No tempo da Coronado os poetas ainda eram só românticos ou clássicos...
O individualismo histeropata não tinha criado os grupos de cabaret e as patrulhas maníacas de simbolistas, instrumentistas, decadistas, ideólogos, estetas, neo-místicos e magníficos, que depois inçaram a poesia de brochuras patológicas, dando a impressão de uma casa de orates com mais exibicionismo que estro, e menos inspiração que maluqueira.
A poetiza desde 1874 ficara isolada, pela tristura claustral da sua vida, das correntes poéticas que agitavam o mundo, vindas dos altos de Montmartre, té aos centros de insurreição de Madrid e de Lisboa. Poetava à antiga, com um gesto nobre e a palavra fluida da velha escola espanhola, que tinha em Espronceda, seu conterrâneo também de Alnendralejo, um dos mais altos e orgulhosos paladinos.
Despertou-se-me então o desejo de, senão conhecer de perto, pelo menos entrever uma vez sequer a singular criatura que aos oitenta e dois anos rimava com uma pujança feraz tão belas coisas. O visconde de Castilho e o dr. Souza Viterbo a quem algumas vezes falei na Coronado, depois de elogios enlevados ao talento e viveza de conversação da ilustre enclaustrada, evitavam pormenorizar detalhes que me ajudassem à criação de um retrato físico ou moral, justaponível ao indeciso perfil que a leitura dos versos me acordara.
Pouco a pouco porém outros informadores foram surgindo, ao acaso das apresentações e das palestras, e agora um, outro ao depois, pequenos traços de luz vieram vindo, à força de indiscrição, devo dizer, que talvez pareça violar o recato da vida íntima, mas que pelo significado último de exaltação admirativa, estou que mo perdoarão aqueles que como eu não podem examinar uma obra de arte, senão tocando-a e palpando-a, primeiro que se entusiasmem da sua rareza e possam comungar da sua singularidade e formosura.
 Com os informes de todos esses confidentes anônimos, pela mor parte amigos e para assim dizer vassalos graciosos, pude alfim reconstituir da grã senhora a estátua arcaica, entrevê-la como através dos véus de um santuário, e do lado esquerdo do peito acender-lhe uma luz, que pode ser não seja alma, mas que servirá para marcar o sítio onde bateu um coração.
Morto o marido em 1891, Carolina Coronado não consentiu, por mais que a lei portuguesa insistisse, em separar-se do cadáver. Veio a polícia, vieram os magistrados, veio o ministro de Espanha, veio o ministro da América, e diante de todos estes símbolos de força irrevogável, a varonil mulher opôs a razão absurda da sua paixão esponsalícia, a aflição das suas saudades, e a ofegância romântica dos seus zelos mortuários. Não queria que a terra do cemitério provasse o corpo amado, e os adorados restos deixassem um momento de estar sob a impressão dos seus carmes dolorosos, ouvindo-lhe todos os dias a voz, como se sob o encanto dela o drama da podridão custasse menos ao morto, e, sucessivamente exaladas do seu féretro, odes vitais pudessem vir impressionar e envolver de sugestão passional, o espírito amoroso, supersticioso, solitário e monjil da abandonada.
Como Joana a doida ela acompanha, da casa de Paço de Arcos para o Palácio da Mitra, o cadáver de Justus Perri, e à força de teimosia imperiosa, de soluços, de súplicas, consegue alfim que as autoridades fechem os olhos, movidas talvez pelas imposições dos diplomáticos; quem sabe mesmo se pela feitiçaria dramática do feito, deixando ver nessa estremenha uma alma do Romancero, de grandiosa escultura e anormal poder de sugestão!
Dezenove anos, num simples caixão de chumbo, envolto em madeiras de cedro ou de ébano, o corpo de Justus Perri permaneceu na capela da Mitra, sob o fulgor perpétuo da lâmpada alumiando as estátuas dos nichos e os ícones dos altares: até há poucos dias irem os dois, marido e mulher, caminho do panteon de família, em Badajoz, onde como na vida as suas núpcias seguirão, na paz do nada. 
Esta casa da Mitra foi não só mausoléu de Justus Perri, como também da Coronado, pois, salvo uma ou duas vezes que teve de ir a Espanha por motivos de família ou de interesses, nunca mais a ilustre mulher deixou aquela estância melancólica, que foi realmente o seu claustro e o seu mosteiro.
Quem passava na estrada daquele laborioso e popular Poço do Bispo, em plena turbulência dos carros de carga, dos silvantes comboios, do martelar das oficinas, do fumegar das altas chaminés, dos grupos de gente tisnada e arremangada, certo não poderia supor que por traz daquelas cantarias altas e daquelas podridas janelas, uma criatura rara sofria e meditava — uma criatura da alma heroica, da raça das Virgens de Ávila e das Donas Marias de Molina, e que aos oitenta e dois anos deslumbrava os amigos com a sua lucidez desconcertante, a sua verve picaresca, a sua eloquência de homem, a sua beleza de rainha, e tal poder de ressurreição e recordação, que todos os fantasmas da sua mocidade viviam e existiam reais, a cada simples apelo dos seus dedos e estranha palavra dos seus lábios, como as ressurgiria o médium Eglinton, ou Eusápia Paladini, em alguma sessão de hermética e telepática.
Fechada completamente para as menores sugestões e aparições contemporâneas, não recebendo senão dois ou três velhos amigos que lhe falavam do passado, não chegando sequer à janela, por uma espécie de horror aos inventos modernos e aos aspectos da multidão grosseira e circulante, Carolina Coronado vivia como se há trinta anos a tivessem fechado numa caixa, tapando-lhe os ouvidos e os olhos para não sentir as evoluções e reviravoltas do mundo alheio e exterior.
Daqui resultaria o que geralmente sucede aos cegos e a certos surdos-mudos perspicazes, que à míngua de sentidos próprios que lhes desdobrem a atenção sobre o de fora, veem para dentro, com força décupla; de onde uma hiperacuidade de imaginações, visões, uma vida febril de sonhos e quimeras, uma sagacidade felina para induzir de pequenas causas, efeitos misteriosos e longínquos, que explica em muitos, por exemplo, suas faculdades de poetas e de músicos, de calculistas e filósofos, e na Coronado esse fulgurante poder de, em meia hora de palestra, nos abrir perspectivas profundas, de historiador e psicólogo, sobre os meios sociais e a gente ilustre, ou simplesmente anedótica, que ela conhecera e tratara em tempos idos.
Graças a essas faculdades cidorâmicas, a esse instinto artista da escolha de traços com que rembrantizar e exprimir o mais intenso das personalidades e das almas, Carolina Coronado fazia-nos viver com emoção profunda quadros das tormentosas ou desvairadas épocas do reinado de Isabel II, entre 1836 e 66.
Era o corregedor Pontejos, uma espécie de intendente Manique, que elegantizou e saneou Madrid com requisitos de benemerência e energia iguais aos deste, mas sem o sobrecenho despótico que a história lhe atribui.
A aristocracia e a elegância representando-se pelas casas ducais de Ossuna, de Liria, de Vistaermosa, de Gor, de Rivas, de Fernan-Nunez, de Alba, de Medinaceli, de Dênia, de Abrantes, de Frias; pelos marquesados de Miraflores, do Socorro, de Casa Riera, de Santa Cruz e de Pover; pelas casas condais de Oñate, de São Bernardo, de Guaqui, de Altamira, Torre Muzquis, etc., cujos paços disseminados pela cidade velha, verdadeiros museus de artes suntuárias e riquezas, se abriam de inverno para sucessivas festas e saraus, e cujas mulheres faziam às tardes, nos desfiles do Prado e da Castelhana, nas soirées do Teatro Real, ou nas recepções do Palácio do Oriente, revoadas esplêndidas de belezas que as memórias do tempo deixaram celebradas.
Era o tempo das primeiras empresas de irrigação, navegação e ferro-carris, que acordavam em todos os países, na ânsia de renovação trazida pelo constitucionalismo, como um reverdecer de novas estações; o tempo dos grandes empréstimos para expedições coloniais e guerras políticas, quando argentários como Cabalero, Salamanca, Ceriola, Perez-Sevane, Calderon, Benisa e Lafont, floresciam na finança espanhola, como nas catedrais os monagilos encarregues, de entreter o óleo das lâmpadas, para que a fé se não extinga, e os deuses se não vejam abandonados.
Políticos e estadistas como Argueles, Mendizabal, Martinez de la Rosa, Calatrava, Olozaga, Herros, Narvaiz, O'Donel, Espartero, Serrano, Prim.
Homens de letras como Lista, Galego Breton, Gil e Zarata, Lopez de Aiala, o poeta Quintana, o poeta Zorrila, Mariano Larra (El pobrecito hablador), Vega e Hartzenbuch, Mezoner Romanos, Pedro de Alarcon, Fernandez de los Rios, Cambronero, Juan Valera... Artistas como Ventura de Aguilera, os escultores Laneces e Solá, Marinas (o autor da estátua de Velásquez), e nos seus doces recuerdos de Sevilha, os dois Becquer, mortos de fome; Valeriano o pintor, e Gustavo Adolfo, poeta de estirpe grega, de essência olímpica com a delicadeza e a graça de um Hegesipe Moreau, na fantasia lunar de um Nataniel Hawtorne ou de um Bret Hart.
Ouvi-la descrever, comentar, caricaturar toda esta gente, desenhando-a em dois riscos, caracterizando-a com duas anedotas de escolha, relampejantes sempre, e sempre finas, lançando-a na melée social, depois de que esquissava sumariamente as essências diretrizes e as paixões tendenciosas, era um destes cursos de história falada, uma destas delícias cerebrais que davam da narradora a impressão mais assombrosa, e induziam o ouvinte a ficar ali a escutá-la eternamente. 
Há quatro ou cinco anos que sob pretexto de notas para uns artigos sobre azulejaria artística, consegui da residente ilustre da Mitra licença para percorrer rapidamente a escada e alguns salões. De combinação, ali me esperava um amigo da dona da casa, e meu, o qual, fingindo surpresa no encontro, me apresentaria à Egéria, ao tempo sozinha em Palácio, pois sua filha estava em Badejos. Das riquezas patrimoniais da Coronado, e das acumuladas pelo marido durante as vastas empresas comerciais e industriais em que falei, grande parte devia ter caído em sorvedouro, pois tudo na residência denotava, senão estreiteza de meios, pelo menos um estado de finanças bordejando de perto a derrocada.
Em 1891 a casa e quinta da Mitra tinham já sido vendidas por 54 contos a certo advogado artista de Lisboa, cujas consultas então se pesaram a ouro, e que a Coronado trouxera ao seu serviço em não sei que trapalhadas jurídicas, demandas, pleitos, que levariam parte dos caudais. A escritura de venda estabelecia a clausula de residir na Mitra a vendedora, até final de vida, e certamente o preço da propriedade fora para liquidar os honorários do causídico, e provavelmente cobrir compromissos ou dívidas que tirariam o sono à escritora. Ela não podia fugir à lei fatal que põe os cerebrais do ramo artista na contingência de ignorarem, pela mor parte, o valor do dinheiro, e a arte judenga de o fazer frutificar em especulações e tráfegos rendosos.
A morte de Perri, pondo ponto na tutela sensata e escrupulosa gerência dos fundos do casal, não teria precavido a viúva, par e passo, contra os futuros perigos de gastar sem contar, mormente ficando as contas entregues ao zelo incerto e enganosa honradez de administradores e feitores, que são bons ou maus conforme a fiscalização a que os sujeitam.
Está-se a ver o mecanismo porque, morto o marido, a Coronado transita da fartura cômoda para a escassez molesta e trágica.
É sempre o mesmo, nestes navios onde o piloto falta, e onde a tripulação perde o respeito. Corro pois uma gaze sobre este lance da história, que de resto só entristeceria o leitor contra as injustiças da vida, e passo a dizer que a minha apresentação foi cativante, e a ilustre escritora, em quatro palavras daquela cordialidade espanhola que em cortesia familiar nenhuma iguala, pôs a minha alma rendida diante do gesto infinitamente nobre da sua mão de Abadessa e imperatriz viúva, que pude alfim beijar, mui reverente.
Com um vestido de veludo preto, de cauda, branca de neve, os imensos olhos de veludo molhado, que o fulgor do gênio rejuvenescia no leve engelho das pochas orbitárias, Carolina Coronado aos 82 anos era uma mulher alta e direita, de talhe esbelto, por ter ficado magra, e com dois bandós nas fontes, frisados e nevados, como esses que os retratos dão à rainha Isabel II nos seus últimos anos de Paris.
Falava um espanhol claro e castiço, florido de modismos que pela graça rebuscada tinham um oloroso sabor de língua velha; espanhol de província clássica e de convento, que seria o falado entre a gente bem educada de há meio século.
Às minhas palavras de saudação, ela, certo para atalhar o discurso, e evitar talvez que eu me estendesse, perguntou-me se era de Lisboa; e conhecida a minha origem transtagana e a terra de charneca onde eu nascera, acrescentou que então éramos quase vizinhos, pois Vila de Frades distaria talvez uma dúzia de léguas de Alnendralejo e La Serena, a pátria da sua família, em cujas paróquias tinham banco fechado os Romeros Tejadas e os Coronados Cortez daquelas terras. Envaidecia-a, de resto a sua origem estremenha sem mistura. Há dois sítios de Espanha que imprimem caráter próprio aos naturais: Estremadura e Aragão. Dali têm saído artistas, guerreiros e políticos de excepcional fragor e intensidade.
— Se eu tinha viajado em Espanha?
Todo o espanhol é sedentário e bairrista, porém o português quase que o excede... De resto, para um português viajar em Espanha, é percorrer um pouco a sua terra. “Espanhóis, resumiu ela, somos todos nós, os peninsulares”.
E de repente, voltando-se para mim— Se eu era ibérico?
Cuido ter feito um gesto que, imperceptível embora, contudo a minha interpelante colheu, al primer vuelo, medindo nele a patriotice chocada em leituras da Filipa de Vilhena e outros canastrões teatrais arquissandeus.
No se moleste usted. No es mas que hablar, contraveio logo com o mais gracioso gesto de acalmia. E foi dizendo:
— Tinha sido o erro de Filipe II, tão grande político, não transferir logo para Lisboa a capital do reino unido. Se assim tem feito, Portugal e Espanha estariam hoje abraçados numa nacionalidade única e pujante, o que evitaria a ambos a decadência funesta que durando vem até ao presente. De mais que, segundo as datas da história fidedigna, a perda da independência não foi tão dolorosa a Portugal como se diz nos manuais para as escolas. Em toda a parte os povos mechem-se principalmente por interesses, e os primeiros passos da dominação espanhola em Lisboa foram até simpáticos à população, sobre quem FilipeII exerceu uma atração benévola e singular...
Um erro deplorável! Os nossos dois países reunidos ficariam na carta com uma massa de território maior que a França, e as suas colônias somadas dariam um domínio colonial superior ao da Inglaterra.
Tínhamos tomado assento na última de três salas que formam a parada de recepção da residência, e que com quatro janelas de varanda sobre a rua, e duas janelas-portas ao terraço, tinham luz deslumbrante, em grandes réstias de sol primaveral.
Tudo no mobiliário velho e desbotados tons das braçadeiras, cortinas e alcatifas, chorava a tristeza pudica das coisas de luxo que a penúria assedia, e têm de morrer em serviço, como os cavalos velhos nas carroças. Cadeiras modernas de Viena alternavam com esplêndidas poltronas e sofás, cuja seda o sol e o roçar das cabeças fanara e mesmo tinha esgarçado em certos pontos. Nas carpets de preço, gusano e pés tinham já consumido a lã das flores e dos desenhos aparecendo a trama em séries de cordas varicosas.
A alguns móveis artísticos faltavam-lhes ferragens, precisavam ser refrescados e envernizados; jarras da Índia, sobre colunas, voltavam para a parede os buracos e as rachas dos desastres; casais de pombos, livres pela casa, tinham feito ninho sob um bufete, borrando tudo; e até, numa estante lindíssima, os próprios livros amigos, confidentes de dores e desalentos, até esses tinham um ar de exilados, e o jeito de nos dizer que o seu tempo passara, e lhes doía a velhice e as suas imensas saudades de Madrid...
De pé, na sala, a ilustre senhora mostrava pela janela aberta aquela enseada morta de três léguas que o lisboeta chama mar da palha. A outra margem silhuetava no azul sua paisagem terna e esfumadiça.
— Diga-me se isto não é a rada de uma cidade de dois ou três milhões de habitantes, chave do comércio atlântico, e capital soberana da Ibéria una e congraçada.
Eu por mim não queria saber da tal Ibéria una, reconhecendo entretanto que o erro de Filipe II impedira talvez a realização de um belo sonho de nacionalidade formidável, enquanto na hora presente, com dois países igualmente preguiçosos e incapazes, loucura fosse ajuntar misérias que já dolorosas eram, separadas.
A enseada do Tejo é que verdadeiramente prendia os meus olhares, vasta, amorosa, em azul pálido, listrada de correntes, e com placas espelhadas d'água morta. Algum vaporeto passava para Aldegalega ou Barreiro, fumando distraidamente o seu charuto; alguma falúa ou barco de pesca desfraldava a vela de guião, quadrada, vermelha com a latina à popa, e aquele gesto airoso, ideal, gaivotal, de fender a água, patinando. Aquilo lembrava em Veneza as travessias para o Lido, sob os esverdeados céus do Adriático, por uma tarde assim primaveral.
Entanto, por uma escadaria de balaustres, tínhamos descido ao jardim, do século XVII, todo em meandros e pórticos de buxo, que de resto há muitos anos ninguém tosquiava, e canteiros adentro mantinha uma desordem de arbustos sem trato, e ervas bravas crescendo à doida, como nos pousios da deveza, ao Deus dará.
— E de leitura espanhola, como vamos? Aventurei vários nomes de modernos: Pio Baroja, Benavente, Rusiñol, Felipe Trigo, Antônio Palomero, Anton del Olmet, Lopez Barbadilo, Ciges Aparício, Isaac Muñoz, que ela pareceu escutar sem conhecer.
— E Juan Valera? interrogou.
— Conheço.
— Lopez de Aiala?
— Sim.
— Campoamor, Nuñez de Arce, Menendez Pelaio...
— Um pouco, um pouco.
— Pereda, Galdós, La Pardo...
— Sim, sim, tudo isso li.
Hombre, exclamou ela com uma acerada ponta irônica. Es usted un portugués mui sábionado.
— Que quer! A língua espanhola tem para mim um prestigio e uma música que me não canso de ouvir e de gostar. É uma língua de guerreiros e de oradores, para hinos e para súplicas, compatível com a expressão de todos os estados emotivos. Ela sorrindo, repetia o prolóquio:
— Fala francês ao teu cozinheiro, inglês ao teu cavalo, alemão ao teu cão, e espanhol à mulher que mais te agrade...
Tínhamos vindo ao cabo do jardim, e por uma porta de ferro chegamos a um grande trecho murado de floresta ou bosque, onde a vegetação deixada ao esbracejar libérrimo de vinte anos, apagava o torcicolo das ruas, emaranhando para todos os lados, labirintos de folhas e de ramas.
Aquilo lembrava o Paradou da Faute de Zola, com a noite glauca dos maciços, as lucarnas das copas deixando feixes de luz zebrarem de esmeraldas líquidas os fundos. Uma aluvião de melros silvava, uma guarda de honra de pássaros respondia.
Era recolhido, íntimo, profundo, e ouvia-se, não sei onde, um tênue telingar de água corrente. E eu lhe disse erguendo a vista àquela intensa ablução de asas e folhas:
— Aqui se vive em plena natureza.
E ela tornou:
— Não. Aqui se morre em plena solidade.

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