Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Há sete ou oito anos
vinha eu do Poço do Bispo no elétrico, quando nas alturas da Mitra entrou um
meu velho amigo e camarada, Dr. P., clinico da localidade, com quem vim
conversando até à Baixa.
Trazia na mão um
número de revista literária, e abrindo-o no sítio de uma peça poética, impressa,
perguntou-me se eu ouvira alguma vez falar da Coronado. Fiz com a cabeça que
não, e ele, explicando que era o médico da casa, em duas palavras fez o elogio
sumário da sua cliente. Mês e meio havia que esta senhora, já então de oitenta
a oitenta e dois anos de idade, mas completamente em plena validez mental e
muscular, se fora por uma escada de pedra, quebrando um braço pelo terço
inferior do cúbito e do rádio.
Poucas
esperanças tinha o clinico, dada a idade provecta da paciente, de se virem a
soldar os topos da fratura; senão quando, ao lhe ser tirado o aparelho, se viu
como os ossos quebrados tinham aderido, e a cura se fizera completa e às
maravilhas!
Enquanto imóvel no
leito, a doente, cuja nervosidade frenética espantosamente sofria de estar
preza, para enganar o tempo e distrair o espírito volitante, ideara e compusera
em quadras endecasílabas, uma poesia festiva às suas mãos.
E aqui o médico
estendeu-me a revista para eu ler.
Uma das mãos da
Coronado estivera mês e meio entrapada nas ligaduras do aparelho de fratura,
sem ver a outra, e a poetiza figurava-as como duas amigas ou irmãs gêmeas
afeitas a comunicarem no seu dia a dia impressionista, a imitarem-se os gestos,
a procederem por sentimentos e instintos idênticos, e que uma tão longa
separação lançara no desespero e na saudade.
A alegria do novo
encontro fazia-as exultar em caudais de ternura e hosanas de prazer. Os versos
eram ricos, nem farfalhudos, nem ocos, com significados precisos, frases de
bronze sonoro, imagens faiscantes, claras, simples,
dando uma ideia de riqueza sóbria, e mostrando uma artista experiente e um
pulso de homem. Não havia hesitação nem cansaço, nem essa pulverisante banalidade
dos velhos que vivem de restos e, perdido o sestro construtivo e inventivo,
fazem literatura de toadas e sandezes. Qualquer Fernandez Shaw ou Eduardo
Marquina, Santos Chocano ou Manoel Machado, Ruben Dario ou Francisco
Vilaispesa, poderiam ter assinado esse texto de bravura, doce e intenso, vivido
e sentido, verdadeiro cântico de uma alma unindo a transcendência lírica à
precisão. No tempo da Coronado os poetas ainda eram só românticos ou
clássicos...
O individualismo
histeropata não tinha criado os grupos de cabaret e as patrulhas maníacas de simbolistas,
instrumentistas, decadistas, ideólogos, estetas, neo-místicos e magníficos, que
depois inçaram a poesia de brochuras patológicas, dando a impressão de uma casa
de orates com mais exibicionismo que estro, e menos inspiração que maluqueira.
A poetiza desde 1874
ficara isolada, pela tristura claustral da sua vida, das correntes poéticas que
agitavam o mundo, vindas dos altos de Montmartre, té
aos centros de insurreição de Madrid e de Lisboa. Poetava à antiga, com um
gesto nobre e a palavra fluida da velha escola espanhola, que tinha em
Espronceda, seu conterrâneo também de Alnendralejo, um dos mais altos e
orgulhosos paladinos.
Despertou-se-me então
o desejo de, senão conhecer de perto, pelo menos entrever uma vez sequer a
singular criatura que aos oitenta e dois anos rimava com uma pujança feraz tão
belas coisas. O visconde de Castilho e o dr. Souza Viterbo a quem algumas vezes
falei na Coronado, depois de elogios enlevados ao talento e viveza de conversação
da ilustre enclaustrada, evitavam pormenorizar detalhes que me ajudassem à
criação de um retrato físico ou moral, justaponível ao indeciso perfil que a
leitura dos versos me acordara.
Pouco a pouco porém
outros informadores foram surgindo, ao acaso das apresentações e das palestras,
e agora um, outro ao depois, pequenos traços de luz vieram vindo, à força de
indiscrição, devo dizer, que talvez pareça violar o recato da vida íntima,
mas que pelo significado último de exaltação admirativa, estou que mo perdoarão
aqueles que como eu não podem examinar uma obra de arte, senão
tocando-a e palpando-a, primeiro que se entusiasmem da sua rareza e possam
comungar da sua singularidade e formosura.
Com os informes
de todos esses confidentes anônimos, pela mor parte amigos e para assim dizer
vassalos graciosos, pude alfim reconstituir da grã senhora a estátua arcaica,
entrevê-la como através dos véus de um santuário, e do lado esquerdo do peito
acender-lhe uma luz, que pode ser não seja alma, mas que servirá para marcar o sítio
onde bateu um coração.
Morto o marido em
1891, Carolina Coronado não consentiu, por mais que a lei portuguesa
insistisse, em separar-se do cadáver. Veio a polícia, vieram os magistrados,
veio o ministro de Espanha, veio o ministro da América, e diante de todos estes
símbolos de força irrevogável, a varonil mulher opôs a razão absurda da sua
paixão esponsalícia, a aflição das suas saudades, e a ofegância romântica dos
seus zelos mortuários. Não queria que a terra do cemitério provasse o corpo amado, e os adorados restos deixassem um momento de estar sob a
impressão dos seus carmes dolorosos, ouvindo-lhe todos os dias a voz, como se
sob o encanto dela o drama da podridão custasse menos ao morto, e,
sucessivamente exaladas do seu féretro, odes vitais pudessem vir impressionar e envolver
de sugestão passional, o espírito amoroso, supersticioso, solitário e monjil da
abandonada.
Como Joana a doida ela acompanha, da casa de
Paço de Arcos para o Palácio da Mitra, o cadáver de Justus Perri, e à força de
teimosia imperiosa, de soluços, de súplicas, consegue alfim que as
autoridades fechem os olhos, movidas talvez pelas imposições dos diplomáticos;
quem sabe mesmo se pela feitiçaria dramática do feito, deixando ver nessa
estremenha uma alma do Romancero,
de grandiosa escultura e anormal poder de sugestão!
Dezenove anos, num
simples caixão de chumbo, envolto em madeiras de cedro ou de
ébano, o corpo de Justus Perri permaneceu na capela da Mitra, sob o fulgor
perpétuo da lâmpada alumiando as estátuas dos nichos e os ícones dos altares:
até há poucos dias irem os dois, marido e mulher, caminho do panteon de
família, em Badajoz, onde como na vida as suas núpcias seguirão, na paz do
nada.
Esta casa da Mitra
foi não só mausoléu de Justus Perri, como também da Coronado, pois, salvo uma
ou duas vezes que teve de ir a Espanha por motivos de família ou de interesses,
nunca mais a ilustre mulher deixou aquela estância melancólica, que foi
realmente o seu claustro e o seu mosteiro.
Quem passava na
estrada daquele laborioso e popular Poço do Bispo, em plena turbulência dos
carros de carga, dos silvantes comboios, do martelar das oficinas, do fumegar
das altas chaminés, dos grupos de gente tisnada e arremangada, certo não
poderia supor que por traz daquelas cantarias altas e daquelas podridas
janelas, uma criatura rara sofria e meditava — uma
criatura da alma heroica, da raça das Virgens de Ávila e das Donas Marias de
Molina, e que aos oitenta e dois anos deslumbrava os amigos com a sua lucidez
desconcertante, a sua verve picaresca, a sua eloquência de homem, a sua beleza
de rainha, e tal poder de ressurreição e recordação, que todos os fantasmas da
sua mocidade viviam e existiam reais,
a cada simples apelo dos seus dedos e estranha palavra dos seus lábios, como as
ressurgiria o médium Eglinton,
ou Eusápia Paladini, em alguma sessão de hermética e telepática.
Fechada completamente
para as menores sugestões e aparições contemporâneas, não recebendo senão dois
ou três velhos amigos que lhe falavam do passado, não chegando sequer à janela,
por uma espécie de horror aos inventos modernos e aos aspectos da multidão
grosseira e circulante, Carolina Coronado vivia como se há trinta anos a
tivessem fechado numa caixa, tapando-lhe os ouvidos e os olhos para não sentir
as evoluções e reviravoltas do mundo alheio e exterior.
Daqui resultaria o
que geralmente sucede aos cegos e a certos surdos-mudos perspicazes, que à
míngua de sentidos próprios que lhes desdobrem a
atenção sobre o de fora, veem para dentro, com força décupla; de onde uma hiperacuidade de imaginações,
visões, uma vida febril de sonhos e quimeras, uma sagacidade felina para
induzir de pequenas causas, efeitos misteriosos e longínquos, que explica em
muitos, por exemplo, suas faculdades de poetas e de músicos, de calculistas e
filósofos, e na Coronado esse fulgurante poder de, em meia hora de palestra,
nos abrir perspectivas profundas, de historiador e psicólogo, sobre os meios
sociais e a gente ilustre, ou simplesmente anedótica, que ela conhecera e
tratara em tempos idos.
Graças a essas
faculdades cidorâmicas, a esse instinto artista da escolha de traços com que
rembrantizar e exprimir o mais intenso das personalidades e das almas, Carolina
Coronado fazia-nos viver com emoção profunda quadros das tormentosas ou
desvairadas épocas do reinado de Isabel II, entre 1836 e 66.
Era o corregedor
Pontejos, uma espécie de intendente Manique, que elegantizou e saneou Madrid
com requisitos de benemerência e energia iguais aos deste, mas sem o sobrecenho
despótico que a história lhe atribui.
A aristocracia e a
elegância representando-se pelas casas ducais de
Ossuna, de Liria, de Vistaermosa, de Gor, de Rivas, de Fernan-Nunez, de Alba,
de Medinaceli, de Dênia, de Abrantes, de Frias; pelos marquesados de
Miraflores, do Socorro, de Casa Riera, de Santa Cruz e de Pover; pelas casas
condais de Oñate, de São Bernardo, de Guaqui, de Altamira, Torre Muzquis, etc.,
cujos paços disseminados pela cidade velha, verdadeiros museus de artes
suntuárias e riquezas, se abriam de inverno para sucessivas festas e saraus, e
cujas mulheres faziam às tardes, nos desfiles do Prado e da Castelhana, nas
soirées do Teatro Real, ou nas recepções do Palácio do Oriente, revoadas
esplêndidas de belezas que as memórias do tempo deixaram celebradas.
Era o tempo das
primeiras empresas de irrigação, navegação e ferro-carris, que acordavam em
todos os países, na ânsia de renovação trazida pelo constitucionalismo, como um
reverdecer de novas estações; o tempo dos grandes empréstimos para expedições
coloniais e guerras políticas, quando argentários como Cabalero, Salamanca,
Ceriola, Perez-Sevane, Calderon, Benisa e Lafont, floresciam na finança
espanhola, como nas catedrais os monagilos encarregues, de entreter o óleo das lâmpadas, para que a fé se não extinga,
e os deuses se não vejam abandonados.
Políticos e
estadistas como Argueles, Mendizabal, Martinez de la Rosa, Calatrava, Olozaga,
Herros, Narvaiz, O'Donel, Espartero, Serrano, Prim.
Homens de letras como
Lista, Galego Breton, Gil e Zarata, Lopez de Aiala, o poeta Quintana, o poeta
Zorrila, Mariano Larra (El pobrecito
hablador), Vega e Hartzenbuch, Mezoner Romanos, Pedro de Alarcon, Fernandez
de los Rios, Cambronero, Juan Valera... Artistas como Ventura de Aguilera, os
escultores Laneces e Solá, Marinas (o autor da estátua de Velásquez), e nos
seus doces recuerdos de
Sevilha, os dois Becquer, mortos de fome; Valeriano o pintor, e Gustavo Adolfo,
poeta de estirpe grega, de essência olímpica com a delicadeza e a graça de um
Hegesipe Moreau, na fantasia lunar de um Nataniel Hawtorne ou de um Bret Hart.
Ouvi-la descrever,
comentar, caricaturar toda esta gente, desenhando-a em dois riscos,
caracterizando-a com duas anedotas de escolha, relampejantes sempre, e sempre
finas, lançando-a na melée social,
depois de que esquissava sumariamente as essências
diretrizes e as paixões tendenciosas, era um destes cursos de história falada,
uma destas delícias cerebrais que davam da narradora a impressão mais
assombrosa, e induziam o ouvinte a ficar ali a escutá-la eternamente.
Há quatro ou cinco
anos que sob pretexto de notas para uns artigos sobre azulejaria artística,
consegui da residente ilustre da Mitra licença para percorrer rapidamente a
escada e alguns salões. De combinação, ali me esperava um amigo da dona da
casa, e meu, o qual, fingindo surpresa no encontro, me apresentaria à Egéria,
ao tempo sozinha em Palácio, pois sua filha estava em Badejos. Das riquezas
patrimoniais da Coronado, e das acumuladas pelo marido durante as vastas
empresas comerciais e industriais em que falei, grande parte devia ter caído em
sorvedouro, pois tudo na residência denotava, senão estreiteza de meios, pelo
menos um estado de finanças bordejando de perto a derrocada.
Em
1891 a
casa e quinta da Mitra tinham já sido vendidas por 54 contos a certo advogado
artista de Lisboa, cujas consultas então se pesaram a ouro, e que a Coronado
trouxera ao seu serviço em não sei que trapalhadas jurídicas, demandas, pleitos,
que levariam parte dos caudais. A escritura de venda estabelecia a clausula de
residir na Mitra a vendedora, até final de vida, e certamente o preço da
propriedade fora para liquidar os honorários do causídico, e provavelmente
cobrir compromissos ou dívidas que tirariam o sono à escritora. Ela não podia fugir à
lei fatal que põe os cerebrais do ramo artista na contingência de ignorarem,
pela mor parte, o valor do dinheiro, e a arte judenga de o fazer frutificar em
especulações e tráfegos rendosos.
A morte de Perri,
pondo ponto na tutela sensata e escrupulosa gerência dos fundos do casal, não
teria precavido a viúva, par e passo, contra os futuros perigos de gastar sem
contar, mormente ficando as contas entregues ao zelo incerto e enganosa
honradez de administradores e feitores, que são bons ou maus conforme a
fiscalização a que os sujeitam.
Está-se
a ver o mecanismo porque, morto o marido, a Coronado transita da fartura cômoda
para a escassez molesta e trágica.
É sempre o mesmo,
nestes navios onde o piloto falta, e onde a tripulação perde o respeito. Corro
pois uma gaze sobre este lance da história, que de resto só entristeceria o
leitor contra as injustiças da vida, e passo a dizer que a minha apresentação
foi cativante, e a ilustre escritora, em quatro palavras daquela cordialidade
espanhola que em cortesia familiar nenhuma iguala, pôs a minha alma rendida
diante do gesto infinitamente nobre da sua mão de Abadessa e imperatriz viúva,
que pude alfim beijar, mui reverente.
Com um vestido de
veludo preto, de cauda, branca de neve, os imensos olhos de veludo molhado, que
o fulgor do gênio rejuvenescia no leve engelho das pochas orbitárias, Carolina
Coronado aos 82 anos era uma mulher alta e direita, de talhe esbelto, por ter
ficado magra, e com dois bandós nas fontes, frisados e nevados, como esses que
os retratos dão à rainha Isabel II nos
seus últimos anos de Paris.
Falava um espanhol
claro e castiço, florido de modismos que pela graça
rebuscada tinham um oloroso sabor de língua velha; espanhol de província clássica
e de convento, que seria o falado entre a gente bem educada de há meio século.
Às minhas palavras de
saudação, ela, certo para atalhar o discurso, e evitar talvez que eu me
estendesse, perguntou-me se era de Lisboa; e conhecida a minha origem transtagana
e a terra de charneca onde eu nascera, acrescentou que então éramos quase
vizinhos, pois Vila de Frades distaria talvez uma dúzia de léguas de
Alnendralejo e La Serena, a pátria da sua família, em cujas paróquias tinham
banco fechado os Romeros Tejadas e os Coronados Cortez daquelas terras.
Envaidecia-a, de resto a sua origem estremenha sem mistura. Há dois sítios de
Espanha que imprimem caráter próprio aos naturais: Estremadura e Aragão. Dali
têm saído artistas, guerreiros e políticos de excepcional fragor e intensidade.
— Se eu tinha viajado
em Espanha?
Todo o espanhol é
sedentário e bairrista, porém o português quase que o excede... De resto, para
um português viajar em Espanha, é percorrer um pouco a sua terra. “Espanhóis, resumiu ela, somos todos nós, os peninsulares”.
E de repente,
voltando-se para mim— Se eu era ibérico?
Cuido ter feito um
gesto que, imperceptível embora, contudo a minha interpelante colheu, al primer vuelo, medindo nele a
patriotice chocada em leituras da Filipa
de Vilhena e outros canastrões teatrais arquissandeus.
— No se moleste usted. No es mas que hablar,
contraveio logo com o mais gracioso gesto de acalmia. E foi dizendo:
— Tinha sido o erro
de Filipe II, tão grande
político, não transferir logo para Lisboa a capital do reino unido. Se assim
tem feito, Portugal e Espanha estariam hoje abraçados numa nacionalidade única
e pujante, o que evitaria a ambos a decadência funesta que durando vem até ao
presente. De mais que, segundo as datas da história fidedigna, a perda da independência
não foi tão dolorosa a Portugal como se diz nos manuais para as escolas. Em
toda a parte os povos mechem-se principalmente por interesses, e os primeiros
passos da dominação espanhola em Lisboa foram até simpáticos à população, sobre
quem FilipeII exerceu uma
atração benévola e singular...
Um erro deplorável!
Os nossos dois países reunidos ficariam na carta com uma massa de território
maior que a França, e as suas colônias somadas dariam um domínio colonial
superior ao da Inglaterra.
Tínhamos tomado
assento na última de três salas que formam a parada de recepção da residência,
e que com quatro janelas de varanda sobre a rua, e duas janelas-portas ao
terraço, tinham luz deslumbrante, em grandes réstias de sol primaveral.
Tudo no mobiliário
velho e desbotados tons das braçadeiras, cortinas e alcatifas, chorava a
tristeza pudica das coisas de luxo que a penúria assedia, e têm de morrer em
serviço, como os cavalos velhos nas carroças. Cadeiras modernas de Viena
alternavam com esplêndidas poltronas e sofás, cuja seda o sol e o roçar das
cabeças fanara e mesmo tinha esgarçado em certos pontos. Nas carpets de preço, gusano e pés
tinham já consumido a lã das flores e dos desenhos aparecendo a trama em séries
de cordas varicosas.
A alguns móveis
artísticos faltavam-lhes ferragens, precisavam ser refrescados e
envernizados; jarras da Índia, sobre colunas, voltavam
para a parede os buracos e as rachas dos desastres; casais de pombos, livres
pela casa, tinham feito ninho sob um bufete, borrando tudo; e até, numa estante
lindíssima, os próprios livros amigos, confidentes de dores e desalentos, até
esses tinham um ar de exilados, e o jeito de nos dizer que o seu tempo passara,
e lhes doía a velhice e as suas imensas saudades de Madrid...
De pé, na sala, a
ilustre senhora mostrava pela janela aberta aquela enseada morta de três léguas
que o lisboeta chama mar da palha.
A outra margem silhuetava no azul sua paisagem terna e esfumadiça.
— Diga-me se isto não
é a rada de uma cidade de dois ou três milhões de habitantes, chave do comércio
atlântico, e capital soberana da Ibéria una e congraçada.
Eu por mim não queria
saber da tal Ibéria una, reconhecendo entretanto que o erro de Filipe II impedira talvez a realização de
um belo sonho de nacionalidade formidável, enquanto na hora presente, com dois
países igualmente preguiçosos e incapazes, loucura fosse ajuntar misérias que
já dolorosas eram, separadas.
A
enseada do Tejo é que verdadeiramente prendia os meus olhares, vasta, amorosa,
em azul pálido, listrada de correntes, e com placas espelhadas d'água morta.
Algum vaporeto passava para Aldegalega ou Barreiro, fumando distraidamente o
seu charuto; alguma falúa ou barco de pesca desfraldava a vela de guião,
quadrada, vermelha com a latina à popa, e aquele gesto airoso, ideal, gaivotal,
de fender a água, patinando. Aquilo lembrava em Veneza as travessias para o
Lido, sob os esverdeados céus do Adriático, por uma tarde assim primaveral.
Entanto, por uma
escadaria de balaustres, tínhamos descido ao jardim, do século XVII, todo em meandros e pórticos de
buxo, que de resto há muitos anos ninguém tosquiava, e canteiros adentro
mantinha uma desordem de arbustos sem trato, e ervas bravas crescendo à doida,
como nos pousios da deveza, ao Deus dará.
— E de leitura
espanhola, como vamos? Aventurei vários nomes de modernos: Pio Baroja,
Benavente, Rusiñol, Felipe Trigo, Antônio Palomero, Anton del Olmet, Lopez
Barbadilo, Ciges Aparício, Isaac Muñoz, que ela pareceu escutar sem conhecer.
— Conheço.
— Lopez de Aiala?
— Sim.
— Campoamor, Nuñez de
Arce, Menendez Pelaio...
— Um pouco, um pouco.
— Pereda, Galdós, La
Pardo...
— Sim, sim, tudo isso
li.
— Hombre, exclamou ela com uma acerada
ponta irônica. Es usted un portugués
mui sábionado.
— Que quer! A língua
espanhola tem para mim um prestigio e uma música que me não canso de ouvir e de
gostar. É uma língua de guerreiros e de oradores, para hinos e para súplicas,
compatível com a expressão de todos os estados emotivos. Ela sorrindo, repetia
o prolóquio:
— Fala francês ao teu
cozinheiro, inglês ao teu cavalo, alemão ao teu cão, e espanhol à mulher que
mais te agrade...
Tínhamos vindo ao
cabo do jardim, e por uma porta de ferro chegamos a um grande trecho murado de
floresta ou bosque, onde a vegetação deixada ao esbracejar libérrimo de vinte
anos, apagava o torcicolo das ruas, emaranhando para
todos os lados, labirintos de folhas e de ramas.
Aquilo lembrava
o Paradou da Faute de Zola, com a noite glauca
dos maciços, as lucarnas das copas deixando feixes de luz zebrarem de esmeraldas
líquidas os fundos. Uma aluvião de melros silvava, uma guarda de honra de
pássaros respondia.
Era recolhido,
íntimo, profundo, e ouvia-se, não sei onde, um tênue telingar de água corrente.
E eu lhe disse erguendo a vista àquela intensa ablução de asas e folhas:
— Aqui se vive em
plena natureza.
E ela tornou:
— Não. Aqui se morre
em plena solidade.
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