Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO 1
Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto), que nasceu num palácio, com quarenta contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado.
Desde o berço, onde sua mãe, senhora gorda e crédula de Trás-os-Montes, espalhava, para reter as Fadas Benéficas, funcho e âmbar, Jacinto fora sempre mais resistente e são que um pinheiro das dunas. Um lindo rio, murmuroso e transparente, com um leito muito liso de areia muito branca, refletindo apenas pedaços lustrosos de um céu de Verão ou ramagens sempre verdes e de bom aroma, não ofereciam àquele que o descesse numa barca cheia de almofadas e de champanhe gelada mais doçura e facilidades do que a vida oferecia ao meu camarada Jacinto. Não teve sarampo e não teve lombrigas. Nunca padeceu, mesmo na idade em que se lê Balzac e Musset, os tormentos a sensibilidade. Nas suas amizades foi sempre tão feliz como o clássico Orestes. Do amor só experimentara o mel — esse mel que o amor invariavelmente concede a quem o pratica, como as abelhas, com ligeireza e mobilidade. Ambição, sentira somente a e compreender bem as ideias gerais, e a "ponta o seu intelecto" (como diz o velho cronista medieval) não estava ainda romba nem ferrugenta... E todavia, desde os vinte e oito anos, Jacinto já se vinha repastando de Schopenhauer, do Eclesiastes, de outros pessimistas menores, e três, quatro vezes por dia, bocejava, com um bocejo cavo e lento, passando os dedos finos sobre as faces, como se nelas só apalpasse palidez e ruína. Por quê?
Era ele, de todos os homens que conheci, o mais complexamente civilizado — ou antes aquele que se munira da mais vasta soma e civilização material, ornamental e intelectual. Nesse palácio (floridamente chamado o Jasmineiro) que seu pai, também Jacinto, construíra sobre uma honesta casa do século XVII, assoalhada a pinho e branqueada a cal — existia, creio eu, tudo quanto para bem o espírito ou da matéria os homens têm criado, através da incerteza e dor, desde que abandonaram o vale feliz e Septa-Sinu, a Terra das Águas Fáceis, o doce país Ariano.
A biblioteca, que em duas salas, amplas e claras como praças, forrava as paredes, inteiramente, desde os tapetes e Caramânia até ao teto — de onde alternadamente, através de cristais, o sol e a eletricidade vertiam uma luz estudiosa e calma — continha vinte e cinco mil volumes, instalados em ébano, magnificamente revestidos de marroquim escarlate.
Só sistemas filosóficos (e com justa prudência, para poupar espaço, o bibliotecário apenas colecionara os que irreconciliavelmente se contradizem) havia mil oitocentos e dezessete!
Uma tarde que eu desejava copiar um ditame de Adam Smith, percorri, buscando este economista ao longo das estantes, oito metros de economia política! Assim se achava formidavelmente abastecido o meu amigo Jacinto de todas as obras essenciais a inteligência — e mesmo da estupidez. E o único inconveniente este monumental armazém o saber era que todo aquele que lá penetrava inevitavelmente lá adormecia, por causa das poltronas, que providas de finas pranchas móveis para sustentar o livro, o charuto, o lápis das notas, a taça de café, ofereciam ainda uma combinação oscilante e flácida de almofadas, onde o Corpo encontrava logo, para mal do Espírito, a doçura, a profundidade e a paz estirada de um leito.
Ao fundo, e com um altar-mor, era o gabinete de trabalho de Jacinto. A sua cadeira, grave e abacial, de couro, com brasões datava do século XIV, e em torno dela pendiam numerosos tubos acústicos, que, sobre os panejamentos de seda cor de musgo e cor de hera, pareciam serpentes adormecidas e suspensas num velho muro de quinta. Nunca recordo sem assombro a sua mesa, recoberta toda e sagazes e sutis instrumentos para cortar papel, numerar páginas, colar estampilhas, aguçar lápis, raspar emendas, imprimir datas, derreter lacre, cintar documentos, carimbar contas! Uns de níquel, outros de aço, rebrilhantes e frios, todos eram de um manejo laborioso e lento: alguns com as molas rígidas, as pontas vivas, trilhavam e feriam: e nas largas folhas de papel watman em que ele escrevia, e que custavam quinhentos reis, eu por vezes surpreendi gotas de sangue o meu amigo. Mas a todos ele considerava indispensáveis para compor as suas cartas (Jacinto não compunha obras), assim como os trinta e cinco dicionários, e os manuais, e as enciclopédias, e os guias, e os diretórios, atulhando uma estante isolada, esguia, em forma de torre, que silenciosamente girava sobre o seu pedestal, e que eu denominara o Farol. O que porém mais completamente imprimia àquele gabinete um portentoso caráter de civilização eram, sobre as suas peanhas e carvalho, os grandes aparelhos, facilitadores do pensamento — a máquina de escrever, os autocopistas, o telégrafo Morse, o fonógrafo, o telefone, o teatrofone, outros ainda, todos com metais luzidios, todos com longos fios.
Constantemente sons curtos e secos retiniam no ar morno daquele santuário. Tic, tic, tic! Dlim, dlim, lim! Crac, crac, crac! Trrre, trrre!... Era o meu amigo comunicando. Todos esses fios mergulhavam em forças universais. E elas nem sempre, desgraçadamente, se conservavam domadas e disciplinadas! Jacinto recolhera no fonógrafo a voz do conselheiro Pinto Porto, uma voz oracular e rotunda, no momento de exclamar com respeito, com autoridade: — "Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século?" Pois, numa doce noite e São João o meu supercivilizado amigo, desejando que uma senhoras parentas de Pinto Porto (as amáveis Gouveias) admirassem o fonógrafo, fez romper o bocarrão do aparelho, que parece uma trompa, a conhecida voz rotunda e oracular: — "Quem não admirará os progressos deste século?" Mas, inábil ou brusco, certamente desconcertou alguma mola vital — porque de repente o fonógrafo começa a redizer, sem descontinuação, interminavelmente, com uma sonoridade cada vez mais rotuna, a sentença o conselheiro: — "Quem não admirará os progressos deste século?" Debalde Jacinto, pálido, com os dedos trêmulos, torturava o aparelho. A exclamação recomeçava, rolava, oracular e majestosa: — "Quem não admirará os progressos deste século?" Enervados, retiramos para uma sala distante, pesadamente revestida de panos de Arrás. Em vão! A voz de Pinto Porto lá estava, entre os panos de Arrás, implacável e rotunda: — "Quem não admirará os progressos deste século?" Furiosos, enterramos uma almofada na boca do fonógrafo, atiramos por cima mantas, cobertores espessos, para sufocar a voz abominável. Em vão! sob a mordaça, sob as grossas lãs, a voz rouquejava, surda mas oracular: — "Quem não admirará os progressos deste século?" As amáveis Gouveias tinham abalado, apertando desesperadamente os xailes sobre a cabeça. Mesmo à cozinha, onde nos refugiamos, a voz descia, engasgada e gosmosa: — "Quem não admirará os progressos deste século?" — Fugimos espavoridos para a rua.
Era de madrugada. Um fresco bando de raparigas, de volta das fontes, passava cantando com braçadas de flores:
Todas as ervas são bentas
Em manhã de São João...
Jacinto, respirando o ar matinal, limpava as bagas lentas do suor. Recolhemos ao Jasmineiro, com o sol já alto, já quente. Muito de manso abrimos as portas, como no receio e despertar alguém. Horror! Logo da antecâmara percebemos sons estrangulados, roufenhos: "admirará... progressos... século?..." Só de tarde um eletricista pôde emudecer aquele fonógrafo horrendo.
Bem mais aprazível (para mim) do que esse gabinete temerosamente atulhado de civilização — era a sala de jantar, pelo seu arranjo compreensível, fácil e íntimo. À mesa só cabiam seis amigos que Jacinto escolhia com critério na literatura, na arte e na metafísica, e que, entre as tapeçarias de Arrás, representando colinas, pomares e pórticos da Ática, cheias de classicismo e luz, renovavam ali repetidamente banquetes que pela sua intelectualidade lembravam os de Platão. Cada garfada se cruzava com um pensamento ou com palavras destramente arranjadas em de pensamento.
E a cada talher correspondiam seis garfos, todos de feitios dessemelhantes e astuciosos: — um para as ostras, outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro para a fruta, outro para o queijo. Os copos, pela diversidade dos contornos e das cores, faziam, sobre a toalha mais reluzente que esmalte, como ramalhetes silvestres espalhados por cima a neve. Mas Jacinto e os seus filósofos, lembrando o que o experiente Salomão ensina sobre as ruínas e amarguras o vinho, bebiam apenas em três gotas de água uma gota de Bordéus (Chateaubriand, 1860). Assim o recomendam — Hesíodo no seu Nereu, e Díocles nas suas Abelhas. E de águas havia sempre no Jasmineiro um luxo redundante — águas geladas, águas carbonatadas, águas esterilizadas, águas gasosas, águas de sais, águas minerais, outras ainda, em garrafas sérias, com tratos terapêuticos impressos no rótulo... O cozinheiro, mestre sardão, era daqueles que Anaxágoras equiparava aos Retóricos, aos Oradores, a todos os que sabem a arte divina de "temperar e servir a Ideia": e em Síbaris, cidade do Viver Excelente, os magistrados teriam votado a mestre Sardão, pelas festas de Juno Lacínia, a coroa de folhas de ouro e a túnica milésia que se devia aos benfeitores cívicos. A sua sopa de alcachofra e ovas de carpa; os seus filetes de veado macerados em velho Madeira com purê de nozes; as suas amoras geladas em éter, outros acepipes ainda, numerosos e profundos (e os únicos que toleravam o Jacinto) eram obras de um artista, superior pela abundância de ideias novas — e juntavam sempre a raridade do Sabor à magnificência da Forma. Tal prato desse mestre incomparável parecia, pela ornamentação, pela graça florida dos lavores, pelo arranjo dos coloridos frescos e cantantes, uma joia esmaltada do cinzel de Meurice ou Cellini. Quantas tardes eu desejei fotografar aquelas composições de excelente fantasia, antes que o trinchante as retalhasse! E esta superfinidade o comer condizia deliciosamente com a do servir. Por sobre um tapete, mais fofo e mole que o musgo da floresta da Brocelande, deslizavam, como sobras fardadas e branco, cinco criados — e um pajem preto, à maneira vistosa do século XVIII. As travessas (de prata) subiam da cozinha e da copa por dois assessores, um para as iguarias quentes, forrado de tubos onde a água fervia, forrado e zinco, amônia e sal, e ambos escondidos por flores tão densas e viçosas que era como se até a sopa saísse fumegando os românticos jardins de Armida. E muito bem me lembro de um domingo de maio em que, jantando com Jacinto um bispo, o erudito bispo de Chorazin, o peixe emperrou no meio do ascensor, seno necessário que o acudissem, para o extrair, pedreiros com alavancas.
CAPÍTULO 2
Nas tardes em que havia "banquete de Platão" (que assim denominávamos essas festas de trufas e ideias gerais), eu vizinho e íntimo, aparecia ao declinar o sol, e subia familiarmente aos quartos do nosso Jacinto — onde o encontrava sempre incerto entre as suas casacas, porque as usava alternadamente de seda, de pano, de flanelas “Jaeghel”, e de foulard das Índias. O quarto respirava o frescor e aroma do jardim por duas vastas janelas, providas magnificamente (além das cortinas de seda mole Luís XV) de uma vidraça exterior de cristal inteiro, de uma vidraça interior de cristais miúdos, de um toldo rolando na cimalha, de um estore de sedinha frouxa, de gazes que franziam e se enrolavam como nuvens, e de uma gelosia móvel de gradaria mourisca. Todos estes resguardos (sábia invenção de Holland & Cia., de Londres) serviam a guardar a luz e o ar — segundo os avisos de termômetros, barômetros e higrômetros, montados em ébano, e a que um meteorologista (Cunha Guedes) vinha, todas as semanas, verificar a precisão.
Entre estas duas varandas rebrilhava a mesa de toilette, uma mesa enorme de vidro, toda de vidro, para a tornar impenetrável aos micróbios, e coberta de todos esses utensílios de asseio e alinho que o homem do século XIX necessita numa capital, para não desfear o conjunto suntuário da civilização. Quando o nosso Jacinto, arrastando as suas engenhosas chinelas de pelica e seda, se acercava desta ara — eu, bem aconchegado num divã, abria com indolência uma revista, ordinariamente a "Revista Eletropática", ou a das "Indagações Psíquicas". E Jacinto começava... Cada um desses utensílios de aço, de marfim, de prata, impunham ao meu amigo, pela influência onipoderosa que as coisas exercem sobre o dono (sunt tyrannoe rerum) o dever de o utilizar com aptidão e deferência. E assim as operações de alinhamento de Jacinto apresentavam a prolixidade, reverente e insuprimível, dos ritos de um sacrifício. Começava pelo cabelo... Com uma escova chata, redonda e dura, acamava o cabelo, corredio e louro, no alto, aos lados da risca; com uma escova estreita e recurva, à maneira do alfanje de um persa, ondeava o cabelo sobre a orelha; com uma escova côncava, em forma de telha, apastava o cabelo, por trás, sobre a nuca... Respirava e sorria. Depois, com uma escova de longas cerdas, fixava o bigode; com uma escova leve e flácida acurvava as sobrancelhas; com uma escova feita de penugem regularizava as pestanas. E deste modo jacinto ficava, diante o espelho, passando pelos sobre o seu pelo, durante catorze minutos.
Penteado e cansado, ia purificar as mãos. Dois criados, ao fundo, manobravam com perícia e vigor os aparelhos do lavatório que era apenas um resumo dos maquinismos monumentais da sala de banho. Ali, sobre o mármore verde e róseo do lavatório, havia apenas duas duchas (quente e fria) para a cabeça; quatro jatos, graduados desde zero até cem graus; o vaporizador de perfumes, a fonte de água esterilizada (para os dentes), o repuxo para a barba, e ainda as torneiras que rebrilhavam e botões de ébano que, de leve roçados, desencadeavam o marulho e o estridor de torrentes nos Alpes... Nunca eu, para molhar os dedos, me cheguei àquele lavatório sem terror — escarmentado da tarde amarga de Janeiro, em que bruscamente, dessoldada a torneira, o jato de água a cem graus rebentou, silvando e fumegando, furioso, devastador... fugimos todos, espavoridos. Um clamor atroou o Jasmineiro. O velho grilo, escudeiro que fora de Jacinto pai, ficou coberto de ampolas na face, nas mãos fiéis.
Quando Jacinto acabava de se enxugar laboriosamente a toalhas de felpo, de linho, de cora entrançada (para restabelecer a circulação), de seda frouxa (para lustrar a pele), bocejava, com um bocejo cavo e lento.
E era este bocejo, perpétuo e vago, que nos inquietava a nós, seus amigos e filósofos. Que faltava a este homem excelente? Ele tinha a sua inabalável saúde de pinheiro bravo, crescido nas dunas; uma luz de inteligência, própria tudo o que alumiar, firme e clara, sem tremor ou morrão; quarenta magníficos contos de renda; todas as simpatias de uma cidade chasqueadora e céptica; uma varrida de sombras, mais liberta e lisa do que o céu de Verão... E todavia bocejava constantemente, palpava na face, com os dedos finos, a palidez e as rugas. Aos trinta anos Jacinto corcoveava, como sob um fardo injusto! E pela moralidade desconsolada e toda a sua ação parecia ligado, desde os dedos até à vontade, pelas malhas apertadas de uma rede que se não via e que o tratava. Era doloroso testemunhar o fastio com que ele, para apontar um endereço, tomava o lápis pneumático, a sua pena elétrica — ou, para avisar o cocheiro, apanhava o tubo telefônico!... Neste mover lento o braço magro, nos vincos que lhe arrepanhavam o nariz, mesmo nos seus silêncios, longos e derreados, se sentia o brado constante que lhe ia na alma: — Que maçada! Que maçada! — Claramente a via era para Jacinto um cansaço — ou por laboriosa e difícil, ou por desinteressante e oca. Por isso o meu pobre amigo procurava constantemente juntar à sua vida novos interesses, novas facilidades. Dois inventores, homens de muito zelo e pesquisa, estavam encarregados, um em Inglaterra, outro na América, de lhe noticiar e de lhe fornecer todas as informações, as mais miúdas, que concorressem a aperfeiçoar a confortabilidade do Jasmineiro. De resto ele próprio se correspondia com Edison. E pelo lado do pensamento, Jacinto não cessava também de buscar interesses e emoções que o conciliassem com a vida — penetrando à cata dessas emoções e desses interesses pelas veredas mais desviadas o saber, a ponto de devorar, desde janeiro a março, setenta e sete volumes sobre a evolução das ideias morais entre as raças negroides. Ah, nunca um homem deste século batalhou mais esforçadamente contra a seca de viver! Debalde! Mesmo de explorações tão cativantes como essa, através a moral dos negroides, Jacinto regressava mais murcho, com bocejos mais cavos!
E era então que ele se refugiava intensamente na leitura de Schopenhaeur e do Eclesiastes. Por quê? Sem dúvida porque ambos esses pessimistas o confirmavam nas conclusões que ele tirava de uma experiência paciente e rigorosa: — "que tudo é vaidade ou dor, que quanto mais se sabe, mais se pena, e que ter sido rei de Jerusalém e obtido os gozos todos na vida só leva a maior amargura..." Mas porque rolara assim a tão escura desilusão — o saudável, rico, sereno e intelectual Jacinto? O velho escudeiro Grilo pretendia que "sua excelência sofria e fartura"!
CAPÍTULO 3
Ora justamente depois desse Inverno, em que ele se embrenhara na moral os negroides e instalara a luz elétrica entre os arvoredos o jardim, sucedeu que jacinto teve a necessidade moral iniludível de partir para o Norte, para o seu velho solar de Torges. Jacinto não conhecia Torges, e foi com desusado tédio que ele se preparou, durante sete semanas, para essa jornada agreste. A quinta fica nas serras — e a rude casa solarenga, onde ainda resta uma torre o século XV, estava ocupada, havia trinta anos, pelos caseiros, boa gente de trabalho, que comia o seu caldo entre a fumaraça da lareira, e estendia o trigo a secar nas salas senhoriais. Jacinto, logo nos começos de março, escrevera cuidadosamente ao seu procurador Sousa, que habitava a aldeia de Torges, ordenando-lhe que compusesse os telhados, caiasse os muros, envidraçasse as janelas. Depois mandou expedir, por comboios rápidos, em caixotes que transpunham a custo os portões o Jasmineiro, todos os confortos necessários a duas semanas de montanha — camas de penas, poltronas, divãs, lâmpadas e carcel, banheiras e nickel, tubos acústicos para chamar os escudeiros, tapetes persas para amaciar os soalhos. Um dos cocheiros partiu com um coupé, uma vitória, um, mulas e guizos.
Depois foi o cozinheiro, com a bateria, a garrafeira, a geleira, bocais de trufas, caixas profundas de águas minerais. Desde o amanhecer, nos pátios largos do palacete, se pregava, se martelava, como na construção de uma cidade. E as bagagens, desfilando, lembravam uma página de Heródoto ao narrar a invasão persa. Jacinto emagrecera com os cuidados daquele Êxodo. Por fim, largamos, numa manhã de Junho, com o Grilo, e trinta e sete malas.
Eu acompanhava Jacinto, no meu caminho para Goães, onde vive minha tia, a uma légua farta de Torges: e íamos num wagon reservado, entre vastas almofadas, com perdizes e champanhe num cesto. A meio da jornada devíamos mudar de comboio — nessa estação que tem um nome sonoro em ola e um tão suave e cândido jardim de roseiras brancas. Era domingo de imensa poeira e sol — e encontramos aí, enchendo a plataforma estreita, todo um povaréu festivo que vinha da romaria e São Gregório da Serra.
Para aquele trasbordo, em tarde de arraial, o horário só nos concedia três minutos avaros. O outro comboio já esperava, rente aos alpendres, impaciente e silvando. Uma sineta badalava com furor. E, sem mesmo atender às lindas moças que ali saracoteavam aos bandos, afogueadas, de lenços flamejantes, o seio farto coberto de ouro, e a imagem do santo espetada no chapéu — corremos, empurramos, furamos, saltamos para o outro wagon, já reservado, marcado por um cartão com as iniciais de Jacinto. Imediatamente o trem rolou. Pensei então no nosso Grilo, nas trinta e sete malas! E debruçado da portinhola avistei ainda junto ao cunhal da estação, sob os eucaliptos, um monte de bagagens, e homens de bonnet agaloado que, diante delas, bracejavam com desespero. Murmurei, recaindo nas almofadas:
— Que serviço!
Jacinto, ao canto, sem descerrar os olhos, suspirou:
— Que maçada!
Toda a hora deslizamos lentamente entre trigais e vinhedo; e ainda o sol batia nas vidraças, quente e poeirento, quando chegamos à estação de Gondim, onde o procurador de Jacinto, o excelente Sousa, nos devia esperar com cavalos para treparmos a serra até ao solar e Torges. Por trás o jardim a estação, todo florido também de rosas e margaridas, Jacinto reconheceu logo as suas carruagens, ainda empacotadas em lona.
Mas quando nos apeamos no pequeno cais branco e fresco — só houve em torno de nós solidão e silêncio... Nem procurador, nem cavalos! O chefe da estação, a quem eu perguntara com ansiedade "se não aparecera ali o Sr. Sousa", tirou afavelmente o seu bonnet de galão. Era um moço gordo e redondo com cores de maçã camoesa, que trazia sobre o braço um volume de versos. "Conhecia perfeitamente o Sr. Sousa! Três semanas antes jogara com ele a manilha com o Sr. Sousa! Nessa tarde porém, infelizmente não avistara o Sr. Sousa!” O comboio desaparecera por detrás das fragas altas que ali pendem sobre o rio. Um carregador enrolava o cigarro, assobiando.
Rente da grade do jardim, uma velha toda de negro dormitava agachada no chão, diante de uma cesta de ovos.
E o nosso Grilo, e as nossas bagagens?... O chefe encolheu risonhamente os ombros nédios. Todos os nossos bens tinham encalhado decerto naquela estação de roseiras brancas que tem um nome sonoro em ola. E nós ali estávamos, perdidos na serra agreste, sem procurador, sem cavalos, sem Grilo, sem malas!
Para quê esfiar miudamente o lance lamentável? Ao pé da estação, numa quebra da serra, havia um casal foreiro à quinta, onde alcançamos para nos levarem e nos guiarem a Torges uma égua lazarenta, um jumento branco, um rapaz e um podengo. E aí começamos a trepar, enfastiadamente, esses caminhos agrestes — os mesmos decerto por onde vinham e iam de monte a rio os Jacintos do século XV.
Mas, passada uma trêmula ponte e pau que galga um ribeiro todo quebrado por fragas (e onde abunda a truta adorável) os nossos males esqueceram, ante a inesperada, incomparável beleza daquela terra bendita. O divino artista que está nos céus compusera certamente esse monte, numa das suas manhãs e mais solene e bucólica inspiração.
A grandeza era tanta como a graça... Dizer os vales fofos de verdura, os bosques quase sacros, os pomares cheirosos e em flor, a frescura das águas cantantes, as ermidinhas branqueando nos altos, as rochas musgosas, o ar de uma doçura de paraíso, toda a majestade e toda a lindeza — não é para mim, homem de pequena arte. Nem creio mesmo que fosse para o mestre Horácio. Quem pode dizer a beleza das coisas, tão simples e inexprimível?
Jacinto adiante, na água tarda, murmurava: "Ah! que beleza!" Eu atrás no burro, com as pernas bambas, murmurava: "Ah! que beleza!" Os espertos regatos riam, saltando de rocha em rocha. Finos ramos de arbustos floridos roçavam as nossas faces, com familiaridade e carinho. Muito tempo um melro nos seguiu, de choupo para castanheiro, assobiando os nossos louvores. Serra bem acolhedora e amável... Ah! que beleza!
Por entre estes ahs maravilhados chegamos a uma avenida de faias, que nos pareceu clássica e nobre.
Atirando uma nova vergastada ao burro e à égua, o nosso rapaz, com o seu podengo ao lado, gritava: "Aqui é que estêmos!" E ao fundo das afaias havia com efeito um portão de quinta, que um escudo de armas de velha pedra, roída de musgo, grandemente afidalgava. Dentro já os cães ladravam com furor. E mal Jacinto, e eu atrás dele no burro de Sancho, transpusemos o limiar do solarengo, correu para nós do alto de uma escadaria um homem branco, rapado como um clérigo, sem colete, sem jaleca, que erguia para o ar, num assombro, os braços esgazeados. Era o caseiro, o Zé Brás. E logo ali, nas paredes do pátio, entre o latir dos cães, surdiu uma tumultuosa história que o pobre Brás balbuciava, aturdido, e que enchia a face de Jacinto de lividez e cólera. O caseiro não esperava sua excelência. (Ele dizia "sua inselência".)
O procurador, o Sr. Sousa, estava para a raia desde maio, a tratar a mãe que levara um coice de mula. E decerto houvera engano, cartas perdidas... Porque o Sr. Sousa só contava com sua excelência em Setembro, para a vindima. Na casa nenhuma obra começara. E infelizmente para sua excelência os telhados ainda estavam sem telhas, e as janelas sem vidraças...
Cruzei os braços, num justo espanto. Mas os caixotes — esses remetidos para Torges, com tanta prudência, em abril, repletos de colchões, de regalos, de civilização... O caseiro, vago, sem compreender, arregalava os olhos miúdos onde já bailavam lágrimas. Os caixotes? Nada chegara, nada aparecera. E na sua perturbação o Zé Brás procurava entre as arcadas do pátio, nas algibeiras das pantalonas... Os caixotes? Não, não tinha os caixotes.
Foi então que o cocheiro de Jacinto (que trouxera os cavalos e as carruagens) se acercou, gravemente. Esse era um civilizado — e acusou logo o governo. Já quando ele servia o senhor Visconde de São Francisco se tinham assim perdido, por desleixo do governo, da cidade para a serra, dois caixotes com vinho velho da Madeira e roupa branca de senhora. Por isso ele, escarmentado, sem confiança na nação, não largara as carruagens: — e era tudo o que restava a sua excelência, o break, a vitória, o coupé e os guizos. Somente, naquela rude montanha, não havia estradas onde elas rolassem. E como só podiam subir para a quinta em grandes carros de bois — ele lá as deixara em baixo, na estação, quietas, empacotadas na lona...
Jacinto ficara plantado diante de mim, com as mãos no bolso:
— E agora?
Nada restava senão recolher, cear o caldo do tio Zé Brás, e dormir nas palhas que os fados nos concedessem.
Subimos. A escadaria nobre conduzia a uma varanda, toda coberta, em alpendre, acompanhando a fachada do casarão, e ornada entre os seus grossos pilares de granito por caixotes cheios de terra, em que floriam cravos. Colhi um cravo, entramos: e o meu pobre Jacinto contemplou enfim as salas do seu solar! Eram enormes, com as altas paredes rebocadas a cal que o tempo e o abandono tinham enegrecido, e vazias, desoladamente nuas, oferecendo apenas como vestígio de habitação e de vida, pelos cantos, algum monte de cestos ou algum molho de enxadas. Nos tetos remotos de carvalho negro alvejavam manchas — que era o céu já pálido do fim de tarde, surpreendido através dos buracos do telhado. Não restava uma vidraça. Por vezes, sob os nossos passos uma tábua podre rangia e cedia.
Paramos, enfim, na última, a mais vasta, onde havia duas arcas tulheiras para guardar o grão; e aí depusemos melancolicamente o que nos ficara de trinta e sete malas — os paletós alvadios, uma bengala e um "Jornal da Tarde".
Através das janelas desvidraçadas, por onde se avistavam copas de arvoredos e as serras azuis de além-rio, o ar entrava, montesino e largo, circulando plenamente como em um eirado, com aromas de pinheiro bravo. E, lá de baixo, dos vales, subia, desgarrada e triste, uma voz de pegureiro cantando. Jacinto balbuciou: "É horroroso!" Eu murmurei: "É campestre!"
CAPÍTULO 4
O Zé Brás, no entanto, com as mãos na cabeça, desaparecera a ordenar a ceia para "suas excelências". O pobre Jacinto, esbarrondado pelo desastre, sem resistência contra aquele brusco desaparecimento de toda a civilização, caíra pesadamente sobre o poial de uma janela, e dali olhava os montes. E eu, a quem aqueles ares serranos e o cantar do pegureiro sabiam bem, terminei por descer à cozinha, conduzido pelo cocheiro, através de escadas e becos onde a escuridão vinha menos do crepúsculo do que de densas teias de aranha.
A cozinha era uma espessa massa de tons e formas negras, cor de fuligem, onde refulgia ao fundo, sobre o chão de terra, uma fogueira vermelha que lambia grossas panelas de ferro, e se perdia em fumarada pela grade escassa que no alto coava a luz. Aí um bando alvoroçado e palreiro de mulheres depenava frangos, batia ovos, escarolava arroz, com santo fervor... Do meio delas o bom caseiro, estonteado, investiu para mim jurando que "a ceia de suas excelências não demorava um credo". E como eu o interrogava a respeito de camas, o digno Brás teve um murmúrio vago e tímido sobre “enxergazinhas no chão”.
— É o que basta, Sr. Zé Brás, acudi eu para o consolar.
— Pois assim Deus seja servido! suspirou o homem excelente, que atravessava nessa hora o transe mais amargo da sua vida serrana.
Voltando a cima, com estas consolantes novas de ceia e cama, encontrei ainda o meu Jacinto no poial da janela, embebendo-se todo da doce paz crepuscular, que lenta e caladamente se estabelecia sobre vale e monte. No alto já tremeluzia uma estrela, a Vésper diamantina, que é tudo o que neste céu cristão resta do esplendor corporal de Vênus! Jacinto nunca considerara bem aquela estrela — nem assistira a este majestoso e doce adormecer das coisas. Esse enegrecimento de montes e arvoredos, casais claros fundindo-se na sombra, um toque dormente de sino que vinha pelas quebradas, o cochichar das águas entre as relvas baixas — eram para ele como iniciações. Eu estava defronte, no outro poial. E senti-o suspirar como um homem que enfim descansa.
Assim nos encontrou nesta contemplação o Zé Brás com o doce aviso de que estava na mesa a ceiazinha. Era adiante, noutra sala mais nua, mais negra. E aí, o meu supercivilizado Jacinto recuou com um pavor genuíno. Na mesa de pinho, recoberta com uma toalha de mãos, encostada à parede sórdida, uma vela de sebo, meio derretida num castiçal de latão, alumiava dois pratos de louça amarela, ladeados por colheres de pau e por garfos de ferro. Os copos de vinho grosso e baço conservavam o tom roxo do vinho que neles passara em partos anos de fartas vindimas. O cavilhete de barro com azeitonas deleitaria, pela sua singeleza ática, o coração de Diógenes.
Na larga broa estava cravado um facalhão... Pobre Jacinto.
Mas lá abancou resignado, e muito tempo, pensativamente, esfregou com o seu lenço o garfo negro e a colher de pau. Depois, mudo, desconfiado, provou um gole curto do caldo, que era de galinha e rescendia.
Provou, e levantou-se para mim, seu companheiro e amigo, uns olhos largos que luziam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada do caldo, mais cheia, mais lenta...
E sorriu, murmurando com espanto: "Está bom!" Estava realmente bom: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia. Eu, três vezes, com energia, ataquei aquele caldo: foi Jacinto que rapou a sopeira. Mas já, arredando a broa, arredando a vela, o bom Zé Brás pousara na mesa uma travessa vidrada, que transbordava de arroz com favas. Ora, apesar de a fava (que os Gregos chamavam "cibória") pertencer às épocas superiores da civilização, e promover tanto a sapiência que havia em Sício, na Galácia, um templo dedicado a Minerva Ciboriana — Jacinto sempre detestara favas. Tentou todavia uma garfada tímida. De novo os seus olhos, alargados pelo assombro, procuraram os meus. Outra garfada, outra concentração... E eis que o meu dificílimo amigo exclama: "Está ótimo!" Eram os picantes ares da serra? Era a arte deliciosa daquelas mulheres que em baixo remexiam as panelas, cantando o Vira, meu bem? Não sei: mas os louvores de Jacinto a cada travessa foram ganhando em amplidão e firmeza. E diante do frango louro, assado no espeto de pau, terminou por bradar: “Está divino!” Nada porém o entusiasmou como o vinho, o vinho caindo de alto, da grossa caneca verde, um vinho gostoso, penetrante, vivo, quente, que tinha em si mais alma que muito poema ou livro santo! mirando à luz de sebo o copo rude que ele orlava de espuma, eu recordava o dia geórgico em que Virgílio, em casa de Horácio, sob a ramada, cantava o fresco palhete da Rética.
E Jacinto, com uma cor que eu nunca vira na sua palidez schopenháurica, sussurrou logo o doce verso: Rethica quo te carmina dicat. Quem dignamente te cantará, vinho daquelas serras?
Assim jantamos deliciosamente, sob os auspícios do Zé Brás. E depois voltamos para as alegrias únicas da casa, para as janelas desvidraçadas, a contemplar silenciosamente um suntuoso céu de Verão, tão cheio de estrelas que todo ele parecia uma densa poeirada de ouro vivo, suspensa, imóvel, por cima dos montes negros. Como eu observei ao meu Jacinto, na cidade nunca se olham os astros por causa dos candeeiros — que os ofuscam: e nunca se entra por isso numa completa comunhão com o universo. O homem nas capitais pertence à sua casa, ou se o impelem fortes tendências de sociabilidade, ao seu bairro, tudo o isola e o separa da restante natureza — os prédios obstrutores de seis andares, a fumaça das chaminés, o rolar moroso e grosso dos ônibus, a trama encarceradora da vida urbana... Mas que diferença, num cimo de monte com Torges! Aí todas essas belas estrelas olham para nós de perto, rebrilhando, à maneira de olhos conscientes, umas fixamente, com sublime indiferença, outras ansiosamente, com uma luz que palpita, uma luz que chama, como se tentassem revelar os seus segredos ou compreender os nossos... E é impossível não sentir uma solidariedade perfeita entre esses imensos mundos e os nossos pobres corpos. Todos são obras da mesma vontade.
Todos vivem da ação dessa vontade imanente. Todos portanto, desde os Uranos até aos Jacintos, constituem modos diversos de um ser único, e através das suas transformações somam na mesma unidade. Não há ideia mais consoladora do que esta — que eu, e tu, e aquele monte, e o sol que agora se esconde, são moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim. Desde logo se somem as responsabilidades torturantes do individualismo. Que somos nós? Formas sem força, que uma força impele. E há um descanso delicioso nesta certeza, mesmo fugitiva, de que se é o grão de pó irresponsável e passivo que vai levado no grande vento, ou a gota perdida na torrente! Jacinto concordava, sumido na sombra. Nem ele nem eu sabíamos os nomes desses astros admiráveis. Eu, por causa da maciça e indesbastável ignorância de bacharel, com que saí do ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Jacinto, porque na sua ponderosa biblioteca tinha trezentos e dezoito tratados de astronomia! Mas que nos importava de resto que aquele astro além se chamasse Sirius e aquele outro Aldebaran? Que lhes importava a eles que um de nós fosse José e o outro Jacinto? Éramos formas transitórias do mesmo ser eterno — e em nós havia o mesmo Deus. E se eles também assim o compreendiam, estávamos ali, nós à janela num casarão serrano, eles no seu maravilhoso infinito, perfazendo um ato sacrossanto, um perfeito ato de Graça — que era sentir conscientemente a nossa unidade, e realizar, durante um instante, na consciência, a nossa divinização.
Assim enevoadamente filosofamos — quando Zé Brás, com uma candeia na mão, veio avisar que "estavam preparadas camas de suas inselências..." Da idealidade descemos gostosamente à realidade, e que vimos então, nós os irmãos dos astros? Em duas salas tenebrosas e côncavas duas enxergas, postas no chão a um canto, com duas cobertas de chita; à cabeceira um castiçal de latão, pousado sobre um alqueire: e aos pés, como lavatório, um alguidar vidrado em cima de uma cadeira de pau!
Em silêncio, o meu supercivilizado amigo palpou a sua enxerga e sentiu nela a rigidez de um granito. Depois, correndo pela face descaída os dedos murchos, considerou que, perdidas as suas malas, não tinha nem chinelos nem roupão! E foi ainda Zé Brás que providenciou, trazendo ao pobre Jacinto para ele desafogar os pés uns tremendos tamancos de pau, e para ele embrulhar o corpo, docemente educado em Síbaris, uma camisa da caseira, enorme, de estopa mais áspera que estamenha de penitente, e com folhos crespos e duros como lavores em madeira... Para o consolar, lembrei que Platão, quando compunha o Banquete, Xenofonte, quando comandava os Dez Mil, dormiam em piores catres. As enxergas austeras fazem as fortes almas — e é só vestido de estamenha que se penetra no Paraíso.
— Tem você (murmurou o meu amigo, desatento e seco) alguma coisa que eu lei?... Eu não posso adormecer sem ler!
Eu possuía apenas o número do “Jornal da Tarde”, que rasguei pelo meio, e partilhei com ele fraternalmente. E quem não viu então Jacinto, senhor de Torges, acaçapado à borda da enxerga, junto da vela que pingava sobre o alqueire, com os pés nus encafuados nos grossos socos, perdido dentro da camisa da patroa, toda em folhas, percorrendo na metade do “Jornal da Tarde”, com os olhos turvos, os anúncios dos paquetes — não pode saber o que é uma vigorosa e real imagem do desalento!
Assim o deixei — e daí a pouco, estendido na minha enxerga também espartana, subia, através de um sonho jovial e erudito, ao planeta Vênus, onde se encontrava, entre os olmos e os ciprestes, num vergel, Platão e o Zé Brás, em alta camaradagem intelectual, bebendo vinho o vinho da Rética pelos copos de Torges! Travamos todos três bruscamente uma controvérsia sobre o século XIX. Ao longe, por entre uma floresta de roseiras mais altas que carvalhos, alvejavam os mármores de uma cidade e ressoavam cantos sacros. Não recordo o que Xenofonte sustentou acerca da civilização e do fonógrafo. De repente tudo foi turbado por fuscas nuvens, através das quais eu distinguia Jacinto, fugindo num burro que ele impelia furiosamente com os calcanhares, com uma vergasta, com berros, para os lados do Jasmineiro!
CAPÍTULO 5
Cedo, de madrugada, sem rumor, para não despertar Jacinto que, com as mãos sobre o peito, dormia placidamente no seu leito de granito — parti para Goães. E durante três quietas semanas, naquela vila onde se conservavam os hábitos e as ideias do tempo de el-rei D. Dinis, não soube do meu desconsolado amigo, que decerto fugira dos seus tetos esburacados e remergulhara na civilização. Depois, por uma abrasada manhã de agosto, descendo de Goães, de novo trilhei a avenida das faias, e entrei o portão solarengo de Torges, entre o furioso latir dos rafeiros. A mulher de Zé Brás apareceu alvoroçada à porta da tulha. E a sua nova foi logo que o Sr. D. Jacinto (em Torges, o meu amigo tinha Dom) andava lá em baixo com o Sousa nos campos nos campos de Freixomil.
— Então, ainda cá está o Sr. D. Jacinto?
Sua “excelência” ainda estava em Torges — e sua "excelência" ficava para a vindima!... Justamente eu reparava que as janelas do solar tinham vidraças novas; e a um canto do pátio pousavam baldes de cal; uma escada de pedreiro ficara arrimada contra a varanda; e num caixote aberto, ainda cheio de palha de empacotar, dormiam dois gatos.
— E o Grilo apareceu?
— O Sr. Grilo está no pomar, à sombra.
— Bem! E as malas?
— O Sr. D. Jacinto já tem o seu saquinho de couro...
Louvado Deus! O meu Jacinto estava enfim provido de civilização! Subi contente. Na sala nobre onde o soalho fora composto e esfregado, encontrei uma mesa recoberta de oleado, prateleiras de pinho com louça branca de Barcelos e cadeiras de palhinha, orlando as paredes muito caiadas que davam uma frescura de capela nova. Ao lado, noutra sala, também de faiscante alvura, havia o conforto inesperado de três cadeiras de verga da Madeira, com braços largos e almofadas de chita: sobre a mesa de pinho, o papel almaço, o candeeiro de azeite, as penas de pato espetadas num tinteiro de frade, pareciam preparadas para um estudo calmo e ditoso das humanidades: e na parede, suspensa de dois pregos, uma estantezinha continha quatro ou cinco livros, folheados e usados, o D. Quixote, um Virgílio, uma História de Roma, as Crônicas de Froissart. Adiante era certamente o quarto de D. Jacinto, um quarto claro e casto de estudante, com um catre de ferro, um lavatório de ferro, a roupa pendurada de cabides toscos. Tudo resplandecia de asseio e ordem. As janelas fechadas defendiam do sol de agosto, que escaldava fora dos peitoris de pedra. Do soalho, borrifado de água, subia uma fresquidão consoladora. Num velho vaso azul um molho de cravos alegrava e perfumava. Não havia um rumor. Torges dormia no esplendor da sesta. E envolvido naquele repouso de convento remoto, terminei por me estender numa cadeira de verga junto à mesa, abri languidamente o Virgílio, murmurando:
Fortunate jacinthe! tu inter arva nota
Et fontes sacros, frigus captabis opacum.
Já mesmo irreverentemente adormecera sobre o divino Bucolista, quando me despertou um brado amigo. Era o nosso amigo Jacinto. E imediatamente o comparei a uma planta, meio murcha e estiolada no escuro, que fora profusamente regada e revivera em pleno sol. Não corcoveava sobre a sua palidez de supercivilizado, o ar da serra ou a reconciliação com a vida tinham espalhado um tom trigueiro e forte que o virilizava soberbamente. Dos olhos, que na cidade eu lhe conhecera sempre crepusculares, saltava agora um brilho de meio-dia, decidido e largo, que mergulhava francamente na beleza das coisas. Já não passava as mãos murchas sobre a face — batia com elas rijamente na coxa... Que sei eu? Era uma reencarnação. E tudo o que me contou, pisando alegremente com os sapatos brancos no soalho, foi que se sentira, ao fim de três dias em Torges, como desanuviado, mandara comprar um colchão macio, reunira cinco livros nunca lidos, e ali estava...
— Para todo o Verão?
— Para todo o sempre! E agora, homem das cidades, vem almoçar umas trutas que eu pesquei, e compreende enfim o que é o céu.
As trutas eram com efeito celestes. E apareceu também uma salada fria de couve-flor e vagens, e um vinho branco de Azães... Mas quem condignamente vos cantará, comeres e beberes daquelas serras?
De tarde, finda e calma, passeamos pelos caminhos coleando da vasta quinta, que vai de vales a montes.
Jacinto parava a contemplar com carinho os milhos altos.
Com a mão espalmada e forte batia no tronco dos castanheiros, como nas costas de amigos recuperados.
Todo o fio de água, todo tufo de erva, todo o pé de vinha o ocupava como vidas filiais por que fosse responsável.
Conhecia certos melros que cantavam em certos choupos.
Exclamava enternecido:
— Que encanto, a flor do trevo!
À noite, depois de um cabrito assado no forno, a que mestre Horácio teria dedicado uma ode (talvez mesmo um carme heroico) conversamos sobre o Destino e a Vida. Eu citei, com discreta malícia, Schopenhauer e o Eclesiastes... Mas Jacinto ergueu os ombros, com seguro desdém. A sua confiança nesses dois sombrios explicadores da vida desaparecera, e irremediavelmente, sem poder mais voltar, como uma névoa que o sol espalha. Tremenda tolice! Afirmar que a vida se compõe, meramente, de uma longa ilusão – é erguer um aparatoso sistema sobre um ponto especial e estreito da vida, deixando fora do sistema toda a vida restante, como uma contradição permanente e soberba. Era como se ele, Jacinto, apontando para uma urtiga, crescida naquele pátio, declarasse, triunfalmente: "Aqui está uma urtiga! Toda a quinta de Torges, portanto, é uma massa de urtigas." – Mas bastaria que o hóspede erguesse os olhos, para ver as searas, os pomares e os vinhedos!
De resto, desses dois ilustres pessimistas, um, o alemão, que conhecia ele da vida – dessa vida de que fizera, com doutoral majestade, uma teoria definitiva e dolente? Tudo o que pode conhecer quem, como este genial farsante, viveu cinquenta anos numa soturna hospedaria de província, levantando apenas os óculos dos livros para conversar, à mesa–redonda, com os alferes da guarnição! E o outro, o israelita, o homem dos Cantares, o muito pedantesco rei de Jerusalém, só descobre que a vida é uma ilusão aos setenta e cinco anos, quando o poder lhe escapa das mãos trêmulas, e o seu serralho de trezentas concubinas se torna ridiculamente supérfluo à sua carcaça frígida. Um dogmatiza funebremente sobre o que não sabe – e o outro sobre o que não pode. Mas que se dê a esse bom Schopenhauer uma vida tão completa e cheia como a de César, e onde estará o seu schopenhauerismo? Que se restitua a esse sultão, besuntado de literatura, que tanto edificou e professorou em Jerusalém, a sua virilidade – e onde estará o Eclesiastes? De resto, que importa bendizer ou maldizer da vida? Afortunada ou dolorosa, fecunda ou vã, ela tem de ser vivida. Loucos aqueles que, para a atravessar, se embrulham desde logo em pesados véus de tristeza e desilusão, de sorte que na sua estrada tudo lhes seja negrume, não só as léguas realmente escuras, mas mesmo aquelas em que cintila um sol amável. Na Terra tudo vive – e só o homem sente a dor e a desilusão da vida. E tanto mais as sente, quanto mais alarga e acumula a obra dessa inteligência que o torna homem, e que o separa da restante Natureza, impensante e inerte. É no máximo da civilização que ele experimenta o máximo de tédio. A sapiência, portanto, este em recuar até esse honesto mínimo de civilização, que consiste em ter um teto de colmo, uma leira de terra e o grão para nela semear.
Em resumo, para reaver a felicidade, é necessário regressar ao Paraíso – e ficar lá, quieto, na sua folha de vinha, inteiramente desguarnecido de civilização, contemplando o anho aos saltos entre o tomilho, e sem procurar, nem com o desejo, a árvore funesta da Ciência! Dixi!
Eu escutava, assombrado, este Jacinto novíssimo. Era verdadeiramente uma ressurreição no magnífico estilo de Lázaro. Ao surge et ambula que lhe tinham sussurrado as águas e os bosques de Torges, ele erguia-se do fundo da cova do Pessimismo, desembaraçava-se das suas casacas de Poole, et ambulabat, e começava a ser ditoso. Quando recolhi ao meu quarto, àquelas horas honestas que convêm ao campo e ao Otimismo tomei entre as minhas a mão já firme do meu amigo, e pensando que ele enfim alcançara a verdadeira realeza, porque possuía a verdadeira liberdade, gritei-lhe os meus parabéns à maneira do moralista de Tibur:
Vive et regna, fortunate Jacinthe!
Daí a pouco, através da porta aberta que nos separava, senti uma risada fresca, moça, genuína e consolada. Era Jacinto que lia o D. Quixote. Oh bem-aventurado Jacinto!
Conservava o agudo poder de criticar, e recuperara o dom divino de rir!
Quatro anos vão passados. Jacinto ainda habita Torges.
As paredes do seu solar continuam bem caiadas, mas nuas. De Inverno enverga um gabão de briche e acende um braseiro. Para chamar o Grilo ou a moça, bate as mãos, como fazia Catão. Com os seus deliciosos vagares, já leu a Ilíada. Não faz a barba. Nos caminhos silvestres para e fala com as crianças. Todos os casais da serra o bendizem.
Ouço que vai casar com uma forte, sã e bela rapariga de Goães. Decerto crescerá ali uma tribo, que será grata ao Senhor!
Como ele, recentemente, me mandou pedir livros da sua livraria (uma Vida de Buda, uma História da Grécia e as obras de São Francisco de Sales) fui, depois destes quatro anos, ao Jasmineiro deserto. Cada passo meu sobre os fofos tapetes de Caramânia soou triste como num chão de mortos. Todos os brocados estavam engelhados, esgaçados. Pelas paredes pendiam, como olhos fora de órbitas, os botões elétricos das campainhas e das luzes – e havia vagos fios de arame, soltos, enroscados, onde a aranha regalada e reinando tecera teias espessas. Na livraria, todo o vasto saber dos séculos jazia numa imensa mudez, debaixo de uma imensa poeira. Sobre as lombadas dos sistemas filosóficos alvejava o bolor: vorazmente a traça devastara as Histórias Universais: errava ali um cheiro mole de literatura apodrecida – e eu abalei, com o lenço no nariz, certo de que naqueles vinte mil volumes não restava uma verdade viva! Quis lavar as mãos, maculadas pelo contato com estes detritos de conhecimentos humanos. Mas os maravilhosos aparelhos do lavatório, da sala de banho, enferrujados, perros, dessoldados, não largaram uma gota de água; e, como chovia nessa tarde de Abril, tive de sair à varanda, pedir ao céu que me lavasse.
Ao descer, penetrei no gabinete de trabalho de Jacinto e tropecei num montão negro de ferragens, rodas, lâminas, campainhas, parafusos... Entreabri a janela, e reconheci o telefone, o teatrofone, o fonógrafo, outros aparelhos, tombados das suas peanhas, sórdidos, desfeitos sob a poeira dos anos. Empurrei com o pé este lixo do engenho humano. A máquina de escrever, escancarada, com os buracos negros marcando as letras desarraigadas era como uma boca alvar e desdentada. O telefone parecia esborrachado, enrodilhado nas suas tripas de arame.
Na trompa do fonógrafo, torta, esbeiçada, para sempre muda, fervilhavam carochas. E ali jaziam, tão lamentáveis e grotescas, aquelas geniais invenções, que eu saí rindo, como de uma enorme facécia, daquele supercivilizado palácio.
A chuva de abril secara: os telhados remotos da cidade negrejavam sobre um poente de carmesim e ouro. E, através das ruas mais frescas, eu ia pensando que este nosso magnífico século XIX se assemelharia um dia àquele Jasmineiro abandonado, e que os outros homens, com uma certeza mais pura do que é a Vida e a Felicidade, dariam como eu com o pé no lixo da supercivilização, e, como eu, ririam alegremente da grande ilusão que findara, inútil e coberta de ferrugem.
Àquela hora, decerto, Jacinto, na varanda em Torges, sem fonógrafo e sem telefone, reentrado na simplicidade, via, sob a paz lenta da tarde, ao tremeluzir da primeira estrela, a boiada recolher entre o canto dos boiadeiros.
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