Ciganinha
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Chamavam-lhe Ciganinha,
e a princípio também Magriça.
Exasperava-a, porém, este apelido. Quando o ouvia “ó,
magriça!”voltava-se rápida, furiosa, com os olhos a chamejar, e torcia a cara
toda nuns esgares muito feios de bruxa velha, botando para fora uma língua de
palmo, fina, comprida, serpentina. Soltava até grossas palavradas.
Com a outra alcunha não se importava. Erguia os ombros num gesto
de expressivo pouco caso e concordava resmungando:
— Se sou mesma!
Por lei fatídica dos contrates, havia recebido na pia batismal o
nome, que nunca devera confirmar, de Angélica – daí Gêgéca ou Gégéca, como
costumava dizer a mãe, abrindo os ee
de modo especial e descansado, e acrescentando sempre com lânguido suspiro de
pesar:
— Um diabrete, esta
menina.
Desde bem pequena, mostrara com efeito, índole muito independente,
gênio violento, amigo de fazer as suas quatro vontades, audaz, altivo e
arrebatado, de par com muitos caídos e engraçadas momices e carícias com quem
lhe caia no goto, ou permanentemente ou em horas de caprichoso bom humor.
Positivamente endiabrada, só gostava de andar à volta com rapazes
e molequinhos, garotos de sua idade mais ou menos, furando matagais, correndo
pelas várzeas, espojando-se na relva, deixando-se rolar pelo barranco de areia
até quase dentro do rio, largo, majestoso, esfrangalhada sempre, com as saias
em molambos, o corpete a lhe cair pelos ombrinhos magros, descarnados, as
pernas à vista, nuas, nervosas, esgalgadas, pés no chão, um tanto grandes e
maltratados, mas não espalmados e chatos.
Até perto dos 14 anos, ninguém como ela, a Ciganinha, para trepar
nas árvores e apanhar frutas ou excogitar e descobrir ninhos de passarinho na
ramagem mais folhuda e entrançada e pôr-lhes o gadanho em cima.
Ágil como um sagui, leve que nem miúdo e gracioso caxinguelê, eram
de ver-se o jeito e a firmeza com que sabia agarrar-se ao tronco liso e
escorregadio das jabuticabeiras do mato e descascadas goiabeiras, indo sem
vacilar pelos galhos abertos até aos ramos mais finos, que sacudia com vigor,
para fazer tombar alguma goiaba teimosa e longe da mão ávida, impaciente.
E lá ia também pelas laranjeiras acima, uma perna aqui, outra
acolá, escarrapachadas, sem se lhe dar com os espinhos agudos, minazes,
alcançando num ápice as franças mais flexíveis e perigosas.
— Não quero que olhem para cima, bradava lá do alto, imperiosa,
aos companheiros agrupados embaixo, à espera
dos pomos que ia colhendo e arremessando.
Obedeciam-lhe de pronto, porquanto o rosto de algum mais curioso e
petulante ficava logo sujeito a moralizador e temido castigo e bombardeio. Para
prova, o filho do Maneca Frutuoso, que se vira em risco de perder o olho
esquerdo, quase vazado por uma laranja verde, atirada com pulso vigoroso e
afeito a acertar no alvo.
Muitos dias ficara como exemplo aquela face inchada e rubra, à
maneira de uma bola vermelha; e a todos explicava o ludibriado dono:
— Artes do demônio da Ciganinha;
mas há de pagar-me, tão certo como dois e dois são quatro.
Quedas a valer levara ela das continuas e atrevidas ascensões, mas
com tão pouco não se ocupava. Passado o atordoamento do baque em solo duro, e
compondo-se depressa, pulava de contente ao verificar que ainda dessa vez não
ficara com membro algum partido ou deslocado, tendo em nenhuma conta
arranhaduras fundas e dolorosas contusões.
No meio de todos esses desmando e reparáveis extravagâncias,
singular recato, instintivo e selvático pudor. Assim, jamais aceitara tomar, de
dia, banho no rio, em súcia e duvidosa promiscuidade com os camaradas de
travessuras. Banhava-se diariamente, sim, mas sozinha, à hora em que a tarde ia
se fechando noite, e sempre protegida por frondoso salgueiro, que ainda mais
ensombrava a bacia natural, onde imergia o grácil e delgado corpinho.
Uma feita, já bem crescidinha, voltara à casa coberta de sangue
vivo, uma grande brecha aberta na cabeça.
— Não é nada, mamãe, afirmava toda exultante, com feição de
legítimo triunfo: uma batalha de pedras, bonita como tudo, com os filhos da
Narcisa Mofina. Dei-lhes que foi um regalo. O Juca anda sempre me chamando para
as bibocas, a fazer-se de sebo comigo, pois bem, levou até ao céu da boca.
Eu... contra quatro, hein? Não arredei pé enquanto não os debandei. Só agora é
que senti que me tinham tirado mel da cachola... Canalhas!
E ainda se esgrimia exaltada, a pôr em fuga os numerosos
adversários.
Não cabia em si de ufana.
— Quatro, mamãe, quatro contra a filhinha de seu coração!
— Mas, menina, observava com tom plangente e arrastado a pobre da
mãe, isto lá são modos de raparigas? Onde vai vancê parar? Que désgostos me esperam mais nesta vida de sóplicios? Não basta o que tenho
sofrido?
E desatava a chorar.
Muito dada a lágrimas essa D. Cula, diminutivo de Clotilde, usual
em todo o interior do Brasil; muito choramingadora, a boa da mulher, também,
havia sido tão desventuroso na sua existência penosa, solitária, predestinada
aos abandonos!
Sempre feia, desenxabida, esgaivotada, pálida como cera, num
emaciamento desconsolado de penúria constante e aniquiladora, era filha de
casal paupérrimo, que a deixara órfã bem cedo, sem um cobre no fundo de velha
bruaca.
Vivera ao Deus dará, muito quietinha, retraída e medrosa a curtir
negra miséria de contorcer estômago e intestinos, e aguentando-se como podia
com umas costurazinhas e bordados de crivo, que lhe pagavam uma ninharia.
Viera, depois, um cigano de arribação, muito prestimoso e
bulhento, atirado a conquistador, e, sem mais nem menos, se metera com ela,
procurando sobretudo explorar-lhe o trabalho e obrigando-a a fazer doce de fruta de lobo, vendido aos tropeiros como
marmelada, e mais sequilhos e bolos de arroz e milho.
Quase nada rendia o tal negócio, porque, além de tudo, o
malandrinho, guloso e glutão por natureza, comia o melhor do que pretendia
expor à venda. Então, com grande dó e escândalo da vizinhança, começou a
infeliz a ser, dia e noite, quase sem intervalo, malhada pelo patife do amigo.
Quanta bordoada! Que sovas de moerem os ossos!
De repente, após muita barganha aladroada, falcatruas vergonhosas
e inúmeras dívidas contraídas a torto e a direito, desapareceu o desbriado
cigano — e para todo sempre. Foi-se embora, sem dizer adeus a ninguém,
internando-se pelo sertão fundo. Corria depois que acabara às mãos dos índios
Afonsos, o que de certo bem merecera.
Sinal da sua passagem, além do volumoso abdômen da Cula, só um
cofrezinho de bom peso e fechado com cadeado de segredo cabalístico, que a
abandonada conservava com misterioso cuidado e sério terror de feitiçarias.
Em todo o caso, ficara a coitada grávida e só tinha de seu a
casinha de esburacadas paredes de adobe e cobertura de sapê na barranca do rio,
casinha em que de pancada lhe haviam morrido pai e mãe, e testemunha
indiferente das colossais e repetidas tundas. Ela ignorava até se lhe pertencia
ou não.
Do terreirozinho de costume muito varrido e limpo, se via de
fronte o Paranaíba, todo espraiado, solene, raramente ludroso, quase sempre
puro e de águas claras, a refletir, como que em espelho animado e corredio,
tudo quanto se passava lá em cima, no Céu de Nosso Senhor Jesus Cristo e da
Santíssima Virgem Maria. No alto e embaixo, que combinações de cores, ao esplêndido arrebol da manhã e da tarde nas múltiplas
mutações e fantasmagorias das nuvens leves e doidejantes ou pesadas e imóveis,
iluminadas pelo descambar do sol!...
Ao brilho sereno do luar, então, que encantos, que quadros
formosos, diversos, cambiantes, ora meigos e risonhos, ora melancólicos, quase
sombrios, de deixarem a gente cheia de cismas tristes e presagas!...
Da calmorreada e sofredora Cula se apiedaram, porém, os vizinhos;
e cada qual a ajudou como pode – uma galinha idosa, meia dúzia de ovos, ou uma
cadeira furada, um catre de couro já inservível, xícaras e pote esborcinados,
miudezas e trastes de refugo, em extremo usados, quase de todo imprestáveis.
Todos eram tão pobres!
A pouco e pouco, nascida a Gêgéca, foi se tornando D. Cula
estimada, credora até de certa consideração, sempre muito séria e digna nos
seus extremos apuros e necessidades, ativa ao seu modo e fazendo quanto podia
pela vida.
Entretinha relações de amizade com famílias boas do lugar, que lhe
pagavam as visitas; e, quando o vigário do Curralinho vinha até o povoado,
parava sempre lá para apreciar o seu cafezinho gostoso e quente, embora em
xícara de folha de Flandres, que esfria depressa a bebida, queimando os beiços
de quem a toma, cafezinho acompanhado de umas broas e brevidades muito bem feitas, pois ninguém as preparava melhor do
que ela, após as severas e tão acentuadas lições do pérfido e brutal amante.
E assim se iam os dias escoando.
Segredavam as más línguas, e à frente de todos mexericava com
sorrisos irônico e ares de desprezo o José Bispo, dono da venda mais bem
sortida e afreguesada, que, alta noite, não havendo luar, costumavam rondar a
porta da sisuda D. Cula certos vultos suspeitos, talvez o vigário ou gente mais
limpa e apatacada das tropas e boiadas, por ali de pouso, antes de transporem o
grande rio.
Quem está, porém, livre de calúnias e denigrações?
Depois da sua primeira e sabida desgraça, tinha a mulher tanta
compostura e tão resinada dignidade que só mesmo a bisbilhotice de aldeia podia
esmerilhar duvidosas hipóteses, levando a mal as tais visitas, ainda que a
desoras. E a miséria e a fome... bem más conselheiras!
Demais, já dissemos, não era nada apetecível, descorada e pamonha
como tudo, nos modos e no falar.
Com sotaque mole e cantado fazia justiça a si mesma, em invencível
desalento e abandono:
— Eu sou tão enjóada!
Quem há de me quérer?
II
Devia, com efeito, a peste do cigano ter sido das arábias, ou
sê-lo ainda, caso houvesse escapado das unhas dos temidos índios Afonsos.
Fizera da natureza apática, dorminhoca, congochosa da Cula surdir,
para pasmo constante de todos, lépida, escorreita, andarilha, em contínua
mexonada, a Gêgéca, a Ciganinha,
coisa totalmente diversa, oposta, antinômica, um azougue, uma água viva,
legítimo produto do tinhoso.
Não podia estar quieta e parada dois minutos, com uns modos
azoinados, bruscos, espontâneos, selvagens.
Tinha, positivamente, bicho carpinteiro em certa parte do corpo,
que a gente de lá desinava com a maior sem cerimônia.
E bem falante, muito explicada, respondona como a maior das
malcriadas, sempre com a palavra do Cambrone na boca, pronta para
desferoutrora, como se estivesse no quadrado da guarda imperial, em Waterloo,
replicando à intimação dos ingleses.
Uma ocasião em que a mãe, toda lacrimosa a repreendia, acusada,
como fora, de ter furtado um pombinho nuelo à Maria Rabolona, lavadeira no
porto, umas casas abaixo:
— Não fui eu, defendia-se, nunca minto... se o tivesse surrupiado,
confessava... Já lhe disse... não fui eu.
E como D. Cula insistisse, amaldiçoando as escapadas e traquinices
já bastante graves, atirou-lhe às bochechas:
— Ora, mamãe, de que serviu também mecê ter sido sempre boa,
sossegada, metida consigo, uma santinha? O malvado do cigano não lhe fez mal,
não a surrou como boi corneta e não a deixou de vez com a pança cheia?
— Menina! Bradou D. Cula aterrada levando as mãos à cabeça, quem
te ensinou tudo isso? Olha, diabinho, Deus te há de castigar! Santo Cristo, que
será de nós?
— Deixe-se disso, replicou filosoficamente a Ciganinha correndo já para a porta, Deus tem muito em que cuidar.
Quando se lembrar de mim, já a raiva terá passado... A Maria Rebolona, que não
se faça de engraçada comigo... Sujo-lhe, num dia de chuva, toda a roupa
estendida no gramado... Hei de avisá-la uma vez por todas...
Esse furto do pombo nuelo... Para que insistirmos?... Por acaso,
D. Cula não teve sempre bons caldos, quando esteve tão doente? Quase esticara a
canela, coitadinha, sem cirurgião ou curandeiro, que a visse por caridade, nem
remédio nenhum, nenhum para tomar! — E melhorzinha, não comera pratázios de
arroz bem cozido, em que se poderiam ver ossadas bastante suspeitas, até de
gordas galinhas?
Chegou a beber seus calicezinhos de vinho do Porto, comprado a 2$
o martelo na venda do José Bispo, o que serviu, semanas e semanas, de tema a
muita história gaiata, longos comentários e malévolas conjeturas.
Pois, senhores, tudo falso e inventado, quanto ao vinho, pelo
menos. Querem saber a verdade? Por Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, que está nos
vendo e nos ouvindo.
Dissera um tropeiro para D. Cula:
— Vancê, dona, do que
precisa é tomar todos os dias uns dois bons dedos de vinho do Porto, da
venda... Sem isto, não sara... não pode arribar tão cedo.
— Mãe de misericórdia! Retrucava a agorentada mártir, que é da cobreira para comprar a tal mezinha?...
— Há de se arranjar, declarou Gêgéca, que se impressionara com o
conselho.
E como costumava a miúdo sopesar curiosa o cofrezinho esquecido pelo
trastalhão do cigano, nesse dia o levou às escondidas para fora de casa e o
arrombou no cerrado, sem a menor
hesitação.
— Vamos ver, dissera para si, o que nos deixou o sem vergonha do
meu pai.
Achou umas bugigangas, galhozinhos de arruda secos, umas pedras
redondinhas pretas e verdes, três figas de madeira poda e dois colares
compridos de ouro ou prata dourada, além de muitos papéis com sinais
esdrúxulos, triângulos, meias luas, crescentes e estrelas rabudas.
— Diabo o leve, o bruxo, ou o guarde por lá! Exclamou persignando-se,
um tanto assustada. E, recolhendo só o que para ela tinha valor, jogou o mais
dentro do rio, em lugar bem fundo.
Tratou logo de reduzir a dinheiro um dos colares, guardando o
outro para si ou para maior de espadas, e foi propor a venda a um boiadeiro
pachola, que se gabarolava de apatacado.
— Onde campeou vancê
isto? Perguntou o homem olhando-a de esguelha, todo desconfiado. Passou a unha?
— Não é da sua conta, siô besta, foi a resposta. Quanto quer dar
pelo lavrado?
Propôs quantia visivelmente ridícula. Acordado, porém, o instinto
do negócio no sangue cigano, conseguiu a menina o dobro do primeiro preço.
E assim pode a clorótica mãe, a quem tudo logo contou, saborear os
seus dedozinhos do apregoado e luxuoso vinho do Porto.
— Mas, filha dos meus pecados, observou assombrada, quem nos diz
que no cofre não havia mandinga? As desgraças vão chover em cima de nós duas...
— Qual! Foi muito bom; acabou-se agora a caipora... Mecê verá!...
— Santa Rita nos proteja!... Se aquele homem por cá aparecer, dá
cabo de nós, não há que duvidar... a poder de tanta bordoada.
Fez a Ciganinha
significativo gesto de mofa e incredulidade:
— O diabo não é tão feio como se pinta... Ele que venha!... Há de
ouvir boas... da minha boca!
E partiu em disparada, chilrando como um pintassilgo.
Atirava Gêgéca bodoque como poucos e lá ia com uma sacola de bolas
de barro pelas matas, de onde voltava sempre com alguma caça, papagaios,
tucanos, gralhas e um ou outro mutum, que vendia por dois cruzados, ou até
vinte e cinco cobres a algum dono de tropa.
Preferia mil vezes essas correrias com meninotes de sua idade, já
então taludinha, a ficar estatelada à porta da casinha de sapê, resguardando
das moscas e vigiando o tabuleiro de sequilhos e brevidades, à espera dos possíveis fregueses. E, genuína herdeira
do espírito guloso e petiscador do pai, não vendia um bolinho, que logo não
roesse um bocadinho, dois ou três na parte inferior, menos visível.
Admitia sem pieguice muita graçola, até pesada, e ria-se com gosto,
mostrando os dentes bonitos, alvos, iguais – coisa rara no interior – quando à
sua vista contavam histórias e anedotas bem crespas; não lhe tocassem, porém,
no corpo, lá isto não. Tinha a mão leve como tudo e dava bofetadas de estalar
aos que lhe beliscassem os quadris e as pernas, ainda bem finas. Musculosa e
ligeira, passava então tais rasteiras, que os gaiatos e pelintrotes iam ao chão
com grandes batecus e lá ficavam chiando de dor, no meio das estrepitosas vaias
do rapazio.
Não falassem mal da mãe, não se atrevessem a agarrá-la de certo
modo, ou não lhe fizessem propostas equivocas, era incontinenti uma surriada de
nomes feios e cabeludos, capaz de pôr tonto qualquer soldado tarimbeiro. E por
cima, muitas caretas e ademanes violentos de desafio e ameaça, com enérgicos
bamboleios de capoeiragem.
Sempre mal ajorcada, esfarrapada, as faces meio sujas, as unhas
caireladas, cabelos desgrenhados, rebeldes, todos em caracóis e calamistrados,
verdadeira gaforina, fincava neles uma flor vermelha, algum mimo de Vênus, e
passeava serena o orgulho da sua raça, quando não dava cabriolas caprinas ou
fazia mil maluquices, na expansão dos inesperados ímpetos.
Voz geral no povoado:
— Esta rapariguinha leva a breca de repente; acaba muito mal.
Pobre da D. Cula, que filha lhe pôs nos quartos o maldito do cigano! Cruzes!
Deveras, caipora assim é também demais... Talvez, o cujo fosse o diabo em
pessoa... Te arrengo, abernúncio! Só mesmo o demônio é que podia ter a coragem
de esbordor todos os dias a desgraçada amiga... era a ração... Milagre, que a
deixasse com braços e pernas... não lhe tivesse aberto a cova com tanta
porretada!...
Pelo que se vê, as surras de outrora haviam entrado nas tradições
populares. Também não poucas mulheres de má vida, as fadistas, nas brigas com os tropeiros e cenas de ciúmes, avisavam
provocadoras e afoitadas:
— Olhe, sió moço, não sou nenhuma D. Cula. Para cá vem de
carrinho. Tire o seu cavalo da chuva, ouviu? Comigo nada de farofa... Depois
queixe-se ao bispo!
Tudo isso, tão longe, tão longe daqui, na vila de Santa Rita de
Cássia, a margem direita do belo rio Paranaíba, na minha pobre e formosa terra
natal — Estado de Goiás!...
Transportada a larga corrente numa balsa de duas compridas canoas
encambulhadas por pranchões atravessados e um soalho por cima, chega-se a uma
praiazinha de areia fina — o porto de onde se empina elevado barranco. Alguns
bonitos salgueiros por perto. E naquela balsa viajam, de um lado para outro do
rio, homens e cavalos de sela ou bestas de carga, então desarreadas e só com as
cangalhas de paus de forquilha assentes em chumaço grosso de macega seca.
A boiada, muito chifruda, com os cornos compridos e bem abertos,
às vezes elegantes liras nas graciosas curvas, boiada goiana, forte, grande,
passa a nado; e os boiadeiros e camaradas a vão tangendo, na diagonal da
travessia, com uma grita imensa, que reboa pela mata.
Refuga a princípio o gado, apertado pela gente a cavalo que
montada em pelo o toca e estimula, o pica e com ele se atira dentro d’água,
afinal se decide agoniado e lá vai em denso cordão com cabeça bem levantada,
olhos aterrados e boca ofegante a deitar ruidosa respiração. A extremidade
oposta do pesado ruminante não mergulha também, surde e como que se agita
inquieta, pressentindo perigos. É que, segundo voz geral, se aquela parte do
corpo, em que a Ciganinha tinha bicho carpinteiro, se molha, está
irremissivelmente perdido o pobre animal. Singular destino! Caso digno do
estudo dos entendidos e sábios!
De vem em quando, lá se destaca um boi e busca voltar à margem
segura e protetora, ou então roda de uma vez, embrulhado pela violenta corrente
do Paranaíba.
Levanta-se então brado de interesseira angústia e gananciado
desespero, não de piedade pela triste vítima: — Lá vai um; lá vão dois! – E os
camaradas azafamados apressam, com gestos e clamores a mais e mais, a passagem,
até que o guia tome pé na borda de lá.
Em cima logo do porto de Santa Rita de Cássia, uma esplanadazinha
de grama verde e folhuda, largo fechado nos três lados por linhas de pobres, casinhas
térreas, algumas de telha, quase todas de sapê.
No fundo, frente para o rio, a matriz, uma igrejazinha baixa,
rebocada de anos e anos, com um sino rachado à esquerda, suspenso a uma espécie
de telheiro acaçapado, a cair de podre.
E, ao redor da praça, assim pomposamente Crismada, estendendo-se
para aqui e acolá caprichosamente, umas moradazinhas, quase sempre de porta e
duas janelas desguarnecidas de vidraças, moradazinhas bem caiadas e alvas,
encravadas em copado laranjal. Entre si, comunicam por tortuosas trilhas, que
no tempo de florescência ficam embalsamadas a pôr tonto um Cristão.
Nessas laranjeiras canta pela manhã e à tarde um mundo de maviosos
sabiás, a que respondem os bandos de afinados e sibilantes caraúnas posados nas
palmeiras indaiás, que ali ficaram da primitiva floresta virgem.
III
Cheia de travessuras no jaez das esboçadas foi, até quase fazer-se
moça, a existência toda da Angélica, além de uma ou outra façanha de mais
vulto, por exemplo, ir vagabundear, dias seguidos, da banda de lá do rio.
— Nossa Senhora da Abadia bradava D. Cula angustiada, saindo da
habitual pasmaceira, não é que a menina se passou para as Gerais?!
Do outro lado, com efeito, de Paranaíba, fica o triângulo mineiro,
habitado por povos sérios, de certo, e pacíficos, mas muito retraídos e com
cara de poucos amigos.
Afinal, reaparecia a Ciganinha.
— Onde andaste, menina dos meus pecados? Indagava a desconsolada
mãe.
— Ora, respondia a danadinha, estive correndo mundo, assuntando,
vendo...
— Mas, rapariga dos seiscentos, com quem, minha Santa Maria?
— Com o José Bexiguento, o filho da portuguesa. Quis, certo dia,
fazer-se de engraçado comigo; mas dei-lhe logo tal safanão, que Daí por diante
andou direitinho que nem um fuso.
Embora aos 16 anos, tinha ela, ainda que mais assentada de juízo,
péssima reputação; gozava de péssima reputação, dizem até bons clássicos.
E bonita como mil pecados em penca, buliçosa, sugestiva, a pôr
faúlhas de ardente cobiça nos olhos dos mais indiferentes e quietos.
Cabelos negros, bastos, então mais cuidados e lustrosos, mas
sempre com a sua forçinha, de preferência vermelha, cabelos ondeados, com uns
crespinhos rebeldes na testa e na nuca roliça; rosto para o comprido, num oval
regular e como fechado por encantadora covinha no queixo; tez não muito morena,
tanto assim que bem largas sardas lembravam as grandes soalheiras de outrora,
apanhadas em criança; sobrancelhas de japonesa; olhos enormes, negros,
rutilantes, aveludados, com uns cílios que punham sombra às atrigueiradas faces
em que florescia suave rubidez; lábios úmidos, polposos, com o brilho de romã
entre aberta, num arco deliciosamente desenhado, orelhinhas pequeninas, como
conchinhas nacaradas.
E que elegância nativa e senhoril no porte; que colo soberbo,
cintura fina, estatura mais que meã – enfim, um todo, um conjunto de fazer
pecar Santo Antão, na sua gruta da Tebaida.
Namoradeira como tudo, a Gêgéca; muito ufana da sua beleza, dos
seus encantos, mas aceitando a corte e as homenagens de qualquer pé rapado.
A rapaziada de Santa Rita de Cássia e dos arredores umas 20 léguas
andava tonta, num rodopio.
Ao lusco-fusco, um corisco a diabinha, sempre à cata de aventuras
banais, que sabia, porém, conter nos justos limites, avisada, aliás, a cada
instante pela voz arrastada, plangente da mãe, como agoureiro pregão:
— Menina, vancé se perde... Tanto vai o pote ao rio...
Proteja-nos... Santo Cristo dos Milagres.
— Conheço o caminho, respondia a Ciganinha e não me hei de perder
assim com duas razões... Estou traquejada na estrada e no atalho...
— “Lá vai a pestezinha”, dizia-se ao lobrigar sobre tarde uma
sombrinha airosa, esbelta, esgueirando-se, sem grandes mistérios, aliás, por
baixo dos laranjais. Ia até às vezes cantarolando, com andar leve, mas seguro e
firme. E ouviam-se as gargalhadas de escárnio, que dava lá debaixo das suas
laranjeiras.
Com imprudência sem par contava as bobagens que lhe haviam dito
fulano e sicrano, o tropeiro Vargas, o arrieiro Tomé do Vale, o mascate José de
Itália e mais este e mais aquele, um povaréu grosso, enfim.
E imitava, com muita graça e valente debique, os protestos de amor
eterno, as declarações ardentes e claras ou tímidas e ridículas, o gaguejado de
quase todos os pretendentes, os seus ademanes desenganados. E concluía:
— Que pagode!
Todos lhe apontavam mil amantes; mas ninguém podia gabar-se de o
haver sido. O filho do Maneca Frutuoso fora já à cama doente de paixão. Debalde
fizera valer o caso do olho quase vazado pela laranja verde. A ciganinha, sem
compaixão, motejava do seu triste estado, no passado e no presente.
— Um palerma, dizia desfazendo-se em cristalina e adorável
gargalhada, que a tornava ainda mais irresistível. Já me falou em casamento,
como se fosse um favorzão, algum bicho de sete cabeças... Tão bom, como tão
bom... Que é ele, afinal? Filho de um empalamado...
E continuava a dar escandalosa corda a quantos lhe arrastavam a
asa, quer moço do povoado, quer adventício e de passagem por Santa Rita.
— Essa rapariga é uma perdição, afirmava com pausa e todo convicto
o José Bispo, da venda.
Perdição ou não, estava sempre a Gêgéca pronta para as entrevistas
vespertinas, a que ia sem susto, sozinha, com a galhardia de se sair sempre
bem, incólume e a contento da altiva consciência.
E uma vez ou outra pescava uns presentezinhos, cotes de vestidos
de chita francesa e até de cassinha, lençozinhos bordados ou de seda,
garrafinhas e frascos de óleo fino para o cabelo, ou perfumes em moda entre as
senhoras donas do Rio de Janeiro, da corte, o que tudo aceitava, não por
interesse, mas para obsequiar, muito instada e rogada – uma lembrançazinha sem
valor daquela tarde... E acentuava a lembrança da tal tarde com um aperto de
mão mais forte, que nada significava, mas que a fazia desprender-se e fugir às
carreiras pelo laranjal afora,
Pusera-se também a trabalhar, e ligeira como era, ajudava com
muito jeito e bom resultado a pachorrenta da mãe. Ninguém resistia ao seu
sorriso, quando oferecia, convidativa e meiga, um docezinho de seu tabuleiro.
Um viajante, que por ali pousou com grande estado, da família até
dos Jardins, salvo engano, chegou a pagar uma cocadazinha, puxa-puxa com uns
brincos de pedrinhas verdadeiras, amarelas, muito vistosas; tudo
desinteressadamente e por achá-la bonita deveras, como não vira igual nem em
São Paulo, nem na Capital Federal. Também essa fama de formosura enchia o
sertão todo.
— Rapariga como a Ciganinha de Santa Rita de Cássia, apregoava-se,
não há duas nestas trezentas léguas à roda!... coisa de pôr tonto o homem mais
valente!... E levada da carepa, um foguete, um busca-pé... cruzes!
IV
Uma vez, com as suas facilidade, que tanto a desacreditavam,
correr Gêgéca sério perigo, bem sério.
Como era natural, não tardou o José Bispo, da venda, a querer
engraçar-se com ela e desejá-la com a impetuosidade do seu gênio atabalhoado,
despótico, irascível, metendo medo a todo o mundo e cheio de grandezas e
valentias no meio d
Aquela arraia miúda.
Por cima, inspetor do quarteirão, embora não se tivesse
naturalizado cidadão brasileiro.
De cada vez que a Ciganinha
lá ia comprar alguma coisa, um cobre de vinagre, meio tostão de azeite, um
salaminho de arroz, contava-lhe histórias, fazia-lhe mil promessas.
— Deixa-se de partes, Sr.
Portuga, repelia-o Gêgéca; não se faça de tolo, estou com pressa...
— Mas, Ciganinha...
— Limpe os beiços, Sr. Pé de chumbo. Ande; que não vim cá para
aturá-lo...
E assim era sempre.
Ora, como tudo isso ocorria à vista de todos, apinhada a venda de
ociosos, tropeiros, crianças, fadistas, não raro havia troça à custa do tal
José Bispo.
— Assim, rapariga, aplaudiam. Dê-lhe para baixo até mais não
poder.
E se derretiam em caquinadas de chufa.
O homem bufava; procurava com esforço conter-se, mostrar frieza e desdém,
mas qual!
De cada vez que a Gêgéca reaparecida na imunda tasca, afigurava-se-lhe
que aquilo tudo se mudava em palácio encantado, num esplendor de cegar.
E a fadazinha, cada vez mais formosa, galhofeira e petulante, a
ludibriá-lo sem dó nem receio algum.
V
Repelido sempre, pôs-se José Bispo, descuidando até os negócios da
venda, a armar esperas à ciganinha, umas espécies de tocaia, em que perdia
muito tempo e consumia a paciência, reduzido a roer frenético as unhas ou antes
o sabugo, conforme cacoete velho.
Pressentiu Gêgéca o iminente risco e, embora um tanto descuidosa e
zombadora, de contínuo lhe furtava as voltas.
Uma tardezinha, porém, em que, cismando, fora do costume, com
certa melancolia, se arredara mais do que convinha, foi de repente emplugada.
Quando de acordo de si, o português lhe metera a mão em cima, e mão bem pesada,
adunca e violenta garra.
— Apanhei-te, pombinha de cascavel, exclamou com triunfo; vamos
agora ajustar nossas contas: basta de debiques e caçoadas.
Era o lugar deserto, gritar de todo inútil. Só se ouviam, no
Silêncio dos ares, ciciar perto os flexíveis sarandis, cujos finos caules encurvados pela correnteza do
Paranaíba, a cada instante se reguem para logo se dobrarem, produzindo brandos
zunidos de plangente harpa eólia.
Sentiu na testa a nossa heroína camarinhas de álgido suor; mas, fazendo
valente esforço sobre si, buscou não dar mostra do menor receio.
— Me largue, Sr. José Bispo, observou com serena gravidade; não
são modos de homem sério com uma moça como eu...
O tal apelo à sua seriedade e às maneiras pausadas da Gêgéca
desapontaram um tanto o vendeiro; uns simples minutos, contudo.
— Que histórias, replicou brutalmente. Vejam, só a santinha de pau
oco... olhem, que partista!... Você caiu no alçapão, e não solto o passarinho
que custei tanto a agarrar...
— Mas que é que o senhor quer de mim? Perguntou com calma e
sobranceira, envolvendo-o num olhar de supremo desprezo.
— Que é que eu quero?... coisa muito simples... que seje minha... e há de sê-lo, olaré!... à
força, se não houver outro remédio... É de tantos... Para que se fazer de
pimpona só comigo?
Intenso rubor subiu às faces de Gêgéca; os olhos faiscaram de
raiva.
— Me largue, siô galego,
exclamou impetuosa. E com ameaça:
— Depois não se arrependa...
Sorriu-se zombeteiro o José Bispo.
— Ora, quero ver isto... há de ser gaiato... Eu me arrepender?
Nunca, nunca!
E riu-se deveras, quando a ciganinha, reforçada como era, lhe
imprimiu forte empuxão para libertar o braço preso. Nem se mexeu do lugar,
enquanto ela reconhecia, com íntimo terror, que os dedos do português a atanazavam
como guante de ferro.
— Não se faça de tola, Gêgéca, eu bem sei que você esteve agora
mesmo com o Nhôr Grande da esquina... — Mentira, protestou a rapariga. — Pois
se os vi passeando juntos até se sumirem debaixo das árvores...
— É verdade, passeei com ele... mais nada... Nhôr Grande não é tão
ordinário que abuse de seu talento.
(Entre parêntesis.)
Sabem os possíveis e complacentes leitores, que coisa seja
talento, em todo o sertão deste nosso Brasil?
Força física, nada mais.
Continuemos agora, caso valha a pena estarem aturando esta maçada,
mas disso não sou juiz. Como conheci, de passagem, a tal ciganinha levada da
breca e lhe admirei, há uns pares de anos, a notável beleza, tomei a peito
contar as suas façanhas e capetagens.
— Pois eu cá, replicou a brichote do José Bispo, entendo que
talento para muito serve... Olhe, quero ser bom; escute um pouco...
— Solte então o meu braço...
— Iche, lá isso
não. Você disparava que nem veado mateiro. Assunte...
entregue-se por gosto a mim e de amanhã em diante a boto de portas a dentro
como minha caseira... D. Cula, sua mãe, virá morar comigo... Nada lhes há de
faltar...
Arfava de indignação, ódio e pavor o peito da pobrezinha.
Vinha a tarde descendo depressa e, distante, à beira do rio,
avisava uma anhuma póca, com
intervalado cantar à maneira do bater de dois paus secos, que a noite não
tardava. A luz que ainda havia, tênue, esbatida, descia de umas nuvens grandes,
de intenso vermelho, a purpurejarem todo o lado do poente.
Deu então Gêgéca novo arranco para traz com tal ímpeto, desta vez,
que o seu agressor teve que avançar dois passos. Quase de todo lhe quebrou o
ânimo esse esforço improfícuo.
— Juro-lhe, bradou ela com a respiração ofegante e imenso acento
de verdade e angústia, que nenhum homem ainda me tocou no corpo. Tenha pena de
mim, José Bispo. Se há virgem neste mundo, sou eu... Não me desgrace... prefiro
morrer...
— Qual, não se morre por isto, zombeteou o tendeiro.
— Tão certo como Deus estar no céu, afirmou Gêgéca arrebatada e
ardendo em febre, saia eu daqui suja, desgraçada e me vou logo e logo pinchar ao rio. Ninguém mais me há de
ver.
Minha pobre mãe que se agarre com a Virgem Santíssima... não terá
mais filha.
Viu José Bispo, no fundo, não de todo mau e perverso, que essa
jura lhe subia direitinha do coração – havia de executar o que prometia.
Vacilou pois.
— Mas se eu a amo como um perdido? Se a quero noite e dia?
— Razão de mais para me tratar com respeito... Não sou nenhuma fadista para o capricho dos homens por
qualquer meia pataca...
— Onde fica o mundo dos amigos e rufiões? Que querem dizer todas
essas conversas, à noitinha?... Santa Rita está cheia das suas passadas
tranquibernias...
— Brinco, gracejo, ouço as tolices que me dizem... deixo pregar à
vontade, mas ninguém toca no púlpito...
E concordou quase com humildade...
— O senhor tem razão... Não é nada bonito o que tenho feito.
Prometo emendar-me. Ficarei-lhe querendo tanto, tanto bem!... A lição foi muito
séria.
Com a volubilidade de seu gênio, Gêgéca. Ao dizer conceitos tão
sensatos, já era outra, serenada a fisionomia e, por isso mesmo, mais formosa e
sedutora. Parecia-lhe que aquele homem, cujas intenções a aterraram, de súbito
se transformara em bom e leal censor.
Pouco durou a ilusão.
— Não me levo por cantigas... Você fala em morrer, quando agora é
que a vida vai deveras principiar.
Recomeçava a dolorosa e indigna luta.
— Não nasci para os teus beiços, galego, porco, ladrão, tinhoso!
E as palavras sibilavam, ardentes, cuspidas com náusea, o corpo
derreado para traz em disposição de resistência a todo o transe, e até ao último alento, luta de morte.
Procurava José Bispo, vermelho, apoplético de furor e volúpia,
enlaçá-la pela cintura com o braço livre. Ia a dar-lhe o fatal cambapé.
Foi quando a ciganinha, com inopinado movimento de mergulho,
agachou-se rápida. Ao erguer-se, trazia na mão direita uma grande pedra
providencialmente achada aos seus pés e, sem perder um segundo, com ela bateu
por modo tão brusco e contundente nos peitos de José Bispo, que este a largou,
soltando um grito de surpresa e dor.
Era quanto bastava.
Fuzilou a Gêgéca pelo cerrado
afora; mas à distância parou e, pondo os dedos nos cantos da boca, atirou aos
ares calmos amornados uns assovios tão finos, agudos e penetrantes, que a mataria
já adormecida pareceu sobressaltar-se. Respondeu-lhes, à margem do Paranaíba, a
assustada grita dos bulhentos e metediços quero-queros,
de súbito alvoroçados.
Ao chegar à casa, toda fora de si, arquejando de susto e de
cansaço, abraçou a ciganinha a mãe com angustiada veemência e, deixando-se cair
de joelhos, prorrompeu em longo e nervoso pranto.
Debalde tentou D. Cula saber o motivo. Afinal, suspeitando o que
não era real, triste e resinada, chorou ao lado da filha até alta noite.
Meu Deus, meu Deus, que será de nós? Exclamava a cada instante.
VI
Da terrível aventura não disse a ciganinha palavra a ninguém.
Tornou-se, porém, apreensiva, muito mais prudente e não era assim
com duas razões que ia espairecer e dar um bocadinho de trela aos rapazes, lá
debaixo das laranjeiras.
Preferia longos passeios sozinha, por caminho e atalhos só dela
conhecidos, mas, apenas começavam, lá pelas 5 da tarde, a desfilar nos ares os
bandos de pombos torcazes, buscando sempre inquietos e como que irresolutos até
no voo, o pouso para a noite, também se encafuava acautelada em casa, na capuába da boa mamãe.
Ficara retraída, inquieta, menos confiante nos seus meios físicos
de repulsa e tentativas de desacato.
Só se mostrava mais atenta aos requebros e protestos de dois ou
três, era para tê-los à mão, como espécie de guardas vigilantes, o que
desapontava não pouco os namorados de mais fresca data, obrigados a gaguejar as
suas declarações de paixão, quase à vista de uns estafermos, sorumbáticos,
estatelados de tanto amor e estorvadores de profissão.
Do filho do Maneca Frutuoso, o tal do olho meio varado por uma
laranja verde, fizera Gêgéca gato sapato. A tudo se prestava o pobre do
triangula, macilento apalermado, contanto que lhe fosse permitido respirar
perto de quem lhe comera a alma, na enérgica expressão sertaneja.
— O Malaquias da boiada chegada ontem, e o Fortunato da tropa do
Chico ricaço, dizia-lhe a ciganinha, querem por força falar comigo, coisa de
segredo. Quando o sol se meter na mata, venha mo buscar, ouviu, Nhonhô?
— Pois não, Gêgéca, vancê
manda...
E o Mataquias da boiada e o Fortunato da tropa ficavam, cada qual
no seu turno, todo embabocados e desajeitosos, ao verem surgir ao lado da
gentil aparição, ansiosamente esperada, o tipo escaniçado, muito comprido e
ridículo daquele patito do sertão, o
nosso Nhonhô Frutuoso.
— É escusado; com a Gêgéca ninguém pode, era voz corrente em todo
o povoado de Santa Rita.
E tal ou qual prestigio místico a rodeava, pois acrescentaram a
meia voz:
— Tem partes com o anhanega
e o sacisé réré; anda de pandega com currupiras e boitatás. Não poucos podem
jurá-lo aos Santos Evangelhos.
Talvez por isso, mas muito mais pelos seus olhos a luzirem como
brilhantes negros, entre orlas de cabeludas pestanas, pelo seu narizinho espirituoso,
um nadinha arrebitado na ponta, pelas faces penujadinhas como pecego do cerrado, tão bonito no aveludado aspeto como feio no nome
(chamam-no cagaiteira), pelo seu
corpo esbelto, cheio, prometedor de mil tesouros, andava positivamente tonta,
de miolo virado, toda a rapaziada daqueles centros.
Não havia quem não parasse diante da choça de D. Cula e, puxando
logo conversa, deixasse de comprar sem vontade mesmo, nem olhar o preço, todas
as brevidades e ingênuas guloseimas
do interior, ali expostas à venda. Florescia então por tal modo o negócio, que
as duas mulheres já podiam vestir com certa casquilhice umas saias de babados
grandes de bom crivo, e traziam sobre os ombros lenços finos de seda, barreados
de azul, e aos pés uns chinelinhos de couro de veado, enfeitados de debrum
vermelho.
Não havia cocada, mãe benta, manaoé
ou pé de moleque que parasse. Além do
que comiam, levavam os tropeiros lenços cheios – um nunca acabar – e voltavam
logo a pedir mais, só por causa do dedozinho de gostosa prosa e contemplação.
E a ciganinha a vender tudo à porta da choupana materna, com muito
bons modos, risonha, escorreita, pronta à réplica e rebatendo, hábil
esgrimista, os cumprimentos demasiado ardentes à sua formosura – legítima e bem
instintiva loureira, na sua Santa Rita do Paranaíba, como a mais sabida e
calculista americana do Norte nesse incessante duelo de faceirice e esquivanças
dos brilhantes salões de Washington e Nova— Iorque.
Nem tardou a suprema e estrondosa consagração, dada pelas trovas
do João Valentim, o sabiá gogano,
numa festa, quase cururu, que chamara
à localidade muito povo de umas 30 léguas em torno.
Esse Valentim, que pachola ao violão! Quantos caídos de braços e
revirados de olhos! Já meio velho, calvo, assim com uns restos de homem bonito,
atirado a sedutor de mulheres com as
suas quadrinhas, que iam desfiando à medida da inspiração todo choroso e
derretido!
Vadio como tudo, só queria trabalhar nas cordas da guitarra ou no
machete, em que deveras pintava o sete, com umas unhas imensas, atestado da sua
preguiça e que zelava como inestimável preciosidade, sempre limpas de cairel e
todas lustrosas
E como sapateava ao fado, o pernóstico bailante, apesar das juntas
já bastante perras! Como puxava fieira, ao convidar, em elegante derrengado de
corpo, o par ainda sentado! Não queria outra dama senão a Gêgéca, que nessas
ocasiões pulava ágil, airosa, provocadora, as faces rubras que nem pimenta
malagueta, os olhos faiscantes com uma pontinha de lascívia, exuberante de
seiva e mocidade, coisa mesmo de botar de pernas para o ar moços até da capital
federal!
VII
Nessa espécie de choradinho ou cururu
que ficou célebre, expandiu-se a homenagem à formosura da Gêgéca nas seguintes
quadras, cantadas com muita denguice e grandes derreados, pelo João Valentim.
Repenicando o violão, nuns prelúdios todos cheios de blandícias,
tomou largo hausto e plangentemente soltou a voz já um tanto estragada e
rouquenha:
“No Brasil
jamais se viu
Rapariga tão
bonita
Como seja a
Ciganinha
Desta nossa
Santa Rita.”
Correu um sussurro de aplauso e admiração, que o artista
acompanhou em surdina.
Erguendo, porém, o canto, obrigou o Silêncio que se fez completo:
“Busquem
outros prata e ouro
Nos mil
sonhos d’ambição;
Que eu só
quero, altivo a tudo,
Conquistar-lhe
o coração.”
Gêgéca, lá do seu canto, impando embora de vaidade, deu um ixe! significativo.
Concordou logo o cantor com as dificuldades da árdua campanha e
gloriosa posse:
“Mas aí é
que são elas,
Pois a mais
lindas das flores,
Escarninha,
volta o rosto,
Não enxerga
as minhas dores.”
Apelando para o idílio, prosseguiu, puxando as cordas do
instrumento com os dedos, muito abertos e recurvados:
“Se junto ao
Paranaíba
Gemem
tristes os salgueiros,
Perto dela
em vão soluço
Preso aos
olhos feiticeiros.”
— Cruzes, observou a Ciganinha
a uma mocinha clorótica que lhe ficara ao lado, dizer que os homens levam a nós
pobres mulheres com estas patacoadas e pacholices! Qual, este mundo não anda
direito!
A tal reparo pareceu responder João Valentim, prometendo lúgubre
desfecho ao repelido amor, de que se tornara ilustre vítima, eco aliás de
muitos pacientes:
“Ó Gêgéca,
meus pecados,
És um
castigo da sorte;
Mas a tanto
sofrimento
Eu prefiro a
dura morte!”
— Não morre não, Valentim, replicou a interpelada bem alto, o que
provocou até palmas no auditório, deixando bastante enfiado o guitarrista.
— Que moça cuéra! exclamou
um dos ouvintes. Verdadeira inspiração inflamou, porém, o cantor com aquele
irônico desafio e com arroubado rapto acudiu ele, erguendo o tom:
“Ordem é do
Ser Supremo
“De joelhos,
natureza!
Abatei-vos.
Terras, céus,
Ante a força
da beleza!”
Não pôde porém sustentar estro tão alto e descaiu logo em legítimo
voo icário para o ridículo:
“Mas de tal
consumição
Olha bem,
cruel Gêgéca,
Vou ficando
magro e seco,
Que nem feia
perereca!”
E assim por diante, a não acabar mais, tudo muito chupado, cheio
de si! E uis! Com umas pieguices de mulherengo vadio... a sua caceteação, em
suma, que deixava a D. Cula toda babosa enleada com vontade de ali mesmo abrir um
pranto enorme, mas que a filha acolhia incrédula, indiferente, meio a bocejar.
Quando alguma quadra lhe caia no goto, ria-se então, botando à
mostra os dentes rutilantes de alvura, sempre areados com uns talosinhos moles
de aroeira do campo, nacaradas pérolas tornadas mais brancas ainda pelo
contraste do vermelho apetecedor dos lábios, frescos, carnudos, feitos para
beijos de enlouquecer.
Da rúbida boca, porém, partiam flechazinhas pungentes, como do
seio das rosas saem zumbindo mordicantes abelhas.
Nem sequer soube poupar o sabiá goiano, o melodioso glorificador
dos seus encantos, pois sem respeito algum à necessidade da rima, logo lhe
pespegou ao cogote o apelido de João Perereca,
que aderiu e dali em diante punha bambo e furioso o nosso sedutor Valentim.
E entre a paixão real e a vaidade de poeta travou-se breve luta,
que terminou pela vitória do Parnaso, ofendido em sua meticulosa dignidade.
Declarou-se inimigo de Gêgéca, mas teve que desaparecer de Santa
Rita de Cássia, onde muito tempo depois cantavam outros bem convictos:
“Ordem é do
Ser Supremo:
De joelhos,
natureza!
Abatei-vos,
terras, céus,
Ante a força
da beleza!”
Ou mais frequentemente ainda, tanto o ridículo sobrepuja o bom,
até em Santa Rita do Paranaíba:
“Mas de tal
consumição
Olha bem,
cruel Gêgéca,
Vou ficando
magro e seco,
Que nem feia
perereca!”
Razão talvez mais plausível levara João Valentim a de pressa sair
daqueles locais de inesperados desenganos. Foi pedir em casamento a terrível Ciganinha e levou formidável taboa tudo
com grande pasmo de D. Cula, que quase desmaiou de emoção, ouvindo a despachada
resposta da filha ao avelhentado e petulante candidato:
— Olhe, Sr. João, disse-lhe a Gêgéca na bochecha, não se faz
família nem se sustentam mulher e filhos com cantorias de perereca!
Era, já se vê, rapariguinha prática, bem americana.
VIII
Desde aí verdadeira epidemia na rapaziada do povoado e
adjacências. Não havia agora quem não quisesse casar com a Ciganinha.
A todos ia dizendo — não, não!
Para que nada faltasse ao seu triunfo, uma tarde apareceu de
repente lá pela casinha de D. Cula o vendeiro José Bispo, todo desajeitado,
inquieto, a suar como um burro, metido num rodaque branco bem engomado, de
meias aos pés, dentro de alentados tamancos. Não tinha gravata, mas ostentava
colarinhos altos e tesos, com muita goma.
Estavam as duas mulheres merendando. Comiam com os dedos mole
pirãozinho de farinha de mandioca a acompanhar um sorubizinho pescado de fresco
e cozido na água e sal.
Ficaram ambas sobremaneira surpresas, até receosas, sem saberem o
que fazer.
— Não é servido? Perguntou a velha descorando muito, ao passo que
Gêgéca fazia-se escarlate.
— Obrigado, dona respondeu José Bispo com timidez, transpondo a
custo o limiar da choça.
— Mas porém abanque-se, convidou a dona da casa indicando uma
cadeira velha.
O homem foi, depois de algum pigarro, entrando em matéria. Há
muito quisera vir lhes falar, mas uma coisa e outra, isto aquilo, aquilo outro,
negócios, etc., etc., o haviam sempre atrapalhado.
Depois!... receios de ter ofendido D. Gêgéca, mas lhe perdoasse,
não Fora por querer, estava muito arrependido das suas brutalidade...
Tudo muito gaguejado, enquanto D. Cula abriu uns olhos muito
grandes de coruja assombrada.
Afinal desembuchou.
A menina já era moça feita, precisava tomar estado, ter uma
posição, e ele, no caso de principiar família, vinha, nem mais nem menos, pedir
a sua mão.
E contou lá suas fanfarronadas.
Possuía bastante de seu para assegurar o futuro de ambas, pois até
pretendia mudar-se daquele lugarejo, que não lhe servia mais, retirando-se para
a capital, onde daria maior extensão ao negócio, para Goáias – como dizia.
E parece, com efeito, que pronunciava mais certo do que os que
dizem Goiás, pois o Sr. Beaurepaire Rohan, muito entendido em matéria de bugres
e coisas do tupi, assim também é que fala, — Goáias. Muitas e muitas vezes, eu, Heitor Malheiros, o tenho ouvido
dizer desse modo, à fé meu grau. Verdade é que o juramento está hoje abolido, e
não sou formado em coisa alguma.
Continuava, porém, José Bispo. Dava aquele passo na certeza de ser
atendido, embora muita gente certamente o devesse censurar. Não duvidava dos
bons sentimentos da menina, cujos modos entretanto serviam de motivo a muito
mexericos e falatórios. Era franco. Nutria, porém, a convicção de que tudo não
passava de muita mocidade. Uma vez mulher dele José Bispo, saberia portar-se de
modo a só merecer respeito e consideração dos povos todos de Santa Rita, e onde
quer que fossem parar.
— Dé certo, dé certo, ia
afirmando a lesma da D. Cula toda a babar-se de gosto com a perspectiva de
semelhante enlace, uma fortuna do céu.
Conservava-se Gêgéca retraída, calada, com uns restos de pirão a
secar na pontazinha dos dedos.
Uma vez superados os primeiros instantes de acanhamento, falou José
Bispo a valer, fazendo sobretudo alarde da sua qualidade de homem sério, de boa
posição e apatacado, insistindo muito nas vantagens que desse casamento advirão
para elas duas.
Deixou até entrever, que, do seu lado, havia não pouco sacrifício.
A isso Gêgéca rompeu o Silêncio:
— Então quem o mandou vir cá? Perguntou desdenhosa e altiva.
Respondeu o vendeiro com sinceridade.
— A paixão, Gêgéca, a paixão! Tudo fiz para conter-me, mas não
pude. Estive quase a fugir como um perdido, alta noite. Formei mil planos...
até de crimes. Achei que afinal era melhor dar o passo que dou. Se vancê me disser não, mesmo assim ficarei
mais sossegado. Estou disposto a tudo... contanto que não me queira mal... não
me despreze, não se volte, ao ver-me, com escárnio e nojo...
E aquele homem brutal, violento, tinha os olhos suplicantes,
cheios de lágrimas, vencido pela força da
beleza, como dissera João Valentim nas suas trovas.
Estava D. Cula totalmente besta do que via e ouvia.
— Gêgéca aceita, disse afinal intrometendo-se ainda que a vacilar
e com uns laivos de rubra emoção na eterna palidez das faces; sem dúvida ela
aceita... Que pode mais quérer neste
mundo? É desafiar a sorte.
— Cale a boca, mamãe, exclamou impaciente Gêgéca que parecia
concentrar-se em rápida e necessária meditação.
Afinal, voltando-se para José Bispo, respondeu-lhe com serenidade:
— Pelo passo que o senhor deu hoje, perdoo-lhe do fundo do meu
coração tudo quanto me fez. Acabou-se o ódio, e ódio bem justo, que eu lhe
votava. Não posso, porém, atender ao seu pedido, que tanto me honra e me
levanta aos meus próprios olhos.
Não é que a diabinha da rapariga falava bem? Ora, sejam justos,
leitores da minha alma. De entre os 40.000 assinantes da Gáseta de Notícias não haverá meia dúzia mais condescendente?
— Pelo meu gênio, continuou ela, e com os seus arrebatamentos, não
podíamos ser senão dois infelizes, uma vez amarrados pela lei do casamento.
Falando-lhe assim, dou-lhe prova de que não sou tão desajuizada como a muitos
pareço. Por outro lado, e lado muito grave, que faria o senhor da desgraçada
Perpétua, com quem vive há tantos anos? Que seria dos seus quatro filhinhos, já
tão abandonados?
— Mas, Menina, buscou
inquieta interromper D. Cula, para que... se meter assim na vidá... dos outros?...
Via, com efeito, José Bispo, quase a estalar de roxo, todo
apoplético, tolhido de vergonha, embasbacado.
— E o que é a pobre Perpétua, perguntou com voz vibrante a
Ciganinha à mãe, toda estarrecida, senão a D. Cula lá da praça?... Não lhe
faltam pancadas e tundas, além do peso dos quatro pequenos... Só agora o
abandono...
— Gêgéca, exclamaram com tom de ansiosa rogativa os dois, basta...
basta!
E enquanto a chorona mamãe prorrompia nos mais angustiosos
soluços, retirava-se José Bispo tonto, titubeante, empuxado por mil
sentimentos, numa aflição bem real de pungitiva dor, em que sobrelevava intenso
vexame de si mesmo, pela taboca que acabara de chupar.
IX
Por esse tempo chegou à Santa Rita do Paranaíba, vindo de São
Paulo, pela cidade de Uberaba, o D’Anselmo de Sá.
Entre nós, quanto tem progredido a tal Uberaba, no antigo sertão
da Farinha Podre! De bem poucos anos, só havia a poeira vermelha que era um
inferno, continuas trovoadas roncando grosso, uns casarões sombrios de cumeeira
muito alta e aspeto sinistro, o bom capuchinho frei Germano com as suas eternas
observações meteorológicas, o velho tenente-coronel da guarda nacional Sampaio,
advogado provisionado e membro do Instituto Histórico, além do João Caetano, o
homem mais pacato do mundo, mas que, de cada vez que abre a boca e, muito de
mansinho, começa à falar, provoca por toda a parte um barulho dos seiscentos,
protestos, gritos, violentos apartes, retaliações e até tiros de garrucha!
Mas hoje, sim senhor! A tal Uberaba já faz figura de grande cidade...
no interior. Possui bazares quase de luxo e mais isto, aquilo, aquil’outro,
coisa de encher o olho. Daqui a um nadinha, terá linha de bondes, confeitarias
e gás de iluminação, se não for luz elétrica, à imitação e moda de Juiz de Fora
que, só por isto, quer por força ser a primeira cidade de Minas Gerais e só
fala das outras com desdém. Asseverou-me, pelo menos, bem próximos todos
aqueles valiosos melhoramentos o Borges Sampaio, o tal membro do Instituto,
quando por lá passei. Acho, contudo, que o homem, aliás com excelentes
intenções, tem patriotismo demasiado uberabense e inflamável.
Voltemos, porém, à nossa história.
Atravessa o D’Anselmo de Sá já tarde o grande rio e com
muita bagagem, pois viajava como um lord.
Viu-se, pois, levado a pousar em Santa Rita de Cássia.
Era esse moço parente chegados dos Confúcios e Sócrates da família
dos Craveiros, ligados por laços de afinidade com os Morais, Abreus, Fleuris,
Rodrigues, Jardins e Bulhões, gente toda de alto coturno no meu Goiás,
descendentes até do célebre conde, depois marquês de São João da Palma,
antepenúltimo capitão-general e governador da Capitania (apresentar armas!) e
que lá fez maravilhas nos seus 5 anos de mando absoluto e violento.
Demais, todos na minha terra, quase sem exceção, pretendem provir
daquele grande papão; e isto tem alguns inconvenientes.
Querem uma prova?
Em certo dia, um versejador de ocasião, candidato a não sei que
lugarzinho, foi procurar, aqui, no Rio de Janeiro, um dos filhos do marquês –
esse bem averiguado. Toca a esperá-lo e nada do protetor dignar-se aparecer.
Esgotada a paciência a contemplar um retrato, tamanho natural, do
venerabundo e temível fidalgo, todo coberto de dourados e fitões, pregou-lhe
afinal o tal pretendente embaixo da moldura com um alfinete uma quadrinha
altamente crespa e pornográfica, relativamente à honra materna e ao
esquecimento em que essa mãe era tida. Que desaforo!
E safou-se, deixando o mote, sem esperar pela glosa. Que desaforo!
O tal marquês (cumpre-me, entretanto, dizê-lo a bem da verdade
histórica) deixou em todas as capitanias onde esteve e governou um mundo de
filhos naturais... O excelentíssimo Sr. Capitão-general era povoador por
excelência. Compreendia – e tinha razão – que o Brasil, antes de tudo,
precisava e ainda precisa de gente. Ia, pois, no desenvolvimento do seu
programa administrativo, aplicando com entusiasmo o multiplicamini de Jeová, nem melhores serviços podia prestar à
coroa de Portugal, deixando às forças da natureza fecundada o cumprimento do
outro preceito, crescitce! E das mais
obrigações, pagar impostos, ser soldado del-Rei, etc... etc.
Estou porém, saindo demais da nossa estrada.
Ah! se eu tivesse ensejo, desfiava muita coisa interessante sobre
Goiás, lembrando também os muitos homens notáveis que ele tem dado à pátria,
pois me pesa, deveras, o menosprezo com que por aí costumam falar do meu
cantinho natal.
Conhecessem, porventura, o padre Manuel José Fogaça, que foi prior
da igreja de Lourinhã, em Portugal, e bispo resignatário da Malaca? Pois bem,
era filho de Goiás. Conheceram Álvaro José Xavier, Comendador de Cristo e
brigadeiro reformado, presidente da junta do governo provisório? E Luiz Antônio
da Silva e Souza, eleito para as cortes de Lisboa, mas onde não esteve,
professor público de gramática latina?
E o general Curado? Joaquim Xavier Curado? Quem se recorda mais
dele? Grã-cruz do Cruzeiro, comandou em chefe exércitos e ganhou batalhas
campais. Veio à luz do dia em Jaraguá. Como é que um cidadão goiano nascido tão
longe, no miudinho arraial do Cônego, foi fazer o diabo e pintar a manta no Rio
da Pratas, malhando sem tréguas nos castelhanos, dando-lhes bordoeira de criar
bicho e trazendo-os de canto chorado, é o que custa crer. Tenham, porém,
paciência; aí está a história, que não me deixa mentir.
E tantos outros!
Uns cônegos, padres, outros professores seculares; enfim, renque
de gente do mais subido valor e posição e que deixou numerosa e estimável
prole.
O certo é, que, em Goiás, predomina muito o sentimento
aristocrático e separação de castas.” Não sou filho das ervas”, diz lá todo
cheio de si um daqueles mortais e, firme nisso, ninguém o faz arredar pé.
Pois o nosso D’Anselmo de Sá era desses que não tinham sido
achados debaixo de um pé de couve e de tudo tirava não pouco orgulho, olhando
aos mais bem do alto da sua importância e com ares de sincero pouco caso por
meio mundo.
De que lhe serviu, porém?
Foi botar os luzios na ciganinha, e zás! Ficou pelo beiço, logo,
no dia da chegada, pela tardinha, tal qual um lambarizinho do Paranaíba,
fisgado na boca por apontado e despiedoso anzol.
Isso não no rio, mas na novena que se estava rezando no igrejinha,
por sinal que o sacristão, o Quincas Malhado, já de miolo mole, fazia vezes de
padre e puxava as rezas e ladainhas num latinório levado da breca e que o Padre
Eterno, apesar do seu poliglotismo, custaria bem a entender.
Lá estava a nossa Gêgéca a encher a carunchosa matrizionha com as
irradiações e o esplendor da sua beleza.
Também foi o doutor pregar-lhe o olho em cima e ficou tonto,
abestalhado, bestificado, histórica palavra do Sr. Silveira Lobo – Aristides, o
justo.
Nem me lembro bem como os franceses chamam esse repentino estado
d’alma, a tal fulminação – meu professor de francês foi tão fraco! – Por isto
não me arrisco; podia escrever alguma asneira.
— Mas quem é aquela moça? Perguntava o Anselmo assarapantado,
sôfrego, a quantos o rodeavam.
Aqueles olhos, aqueles olhos, santo Deus! Que relâmpagos
desferiam! Por isto, quando pousaram bem em cheio no doutoreco, sentiu-se este
desfalecer, todo derretido de gosto, julgando-se na obrigação de sorrir
aparvalhadamente, mas a suar frio, quase a tiritar!
X
Não dormiu a noite toda o nosso impressionável Anselmo de Sá, a
passear, agitado, pelo povoado imerso em carregadas sombras, nervoso, irrequieto,
acordando ao latir de um ou outro cão e fumando cigarros; a esperar, pelo
quê?... Por enquanto, pela madrugada, que não chegava.
De nada valiam os esplendores do céu, de um azul ferrete, negro,
aveludado, profundo, como certas as hiras do oriente, céu marchetado de tantas
estrelas, que o Paranaíba delas colhia fantásticas fulgurações, no imenso
serpear da larga corrente.
Afinal, sentiu-se o moço prostrado, com as pernas tão bambas, que
caiu na cama feita sobre as canastras de viagem, e passou por uma modorrazinha,
mais que sono. Às 7 horas da manhã já estava, porém, de pé. Lembrou-se então de
ir banhar-se nas águas puras do rio, a ver se acalmava o incêndio que sentia
lavrar violento, inapagável, dentro de si e o sufocava; a mente conturbada, o
peito opresso, com os músculos repuxados.
Qual! Gregório de Matos, sem procurarmos exemplos e aproximações
em literaturas de outras terras, na tal Europa e sobretudo na França, que tanto
nos avassalam, o nosso Gregório de Matos já dissera descrevendo idêntica e
penosa disposição d’alma:
“Tomo banhos
de neve por dentro,
Mas o fogo
não quer abrandar!”
E eram banhos de neve,
coisa que não existe no Brasil, tomados internamente, por cima! Como, porém, o
poeta se os administrava, é o que não nos diz, nem ensina.
Fica, contudo, a receita para o apaixonados em tão melindrosas
circunstâncias.
Nem de propósito, fora Anselmo mergulhar o ardente corpo no
banheiro habitual da ciganinha, à
sombra do salgueiro que tantos primores costumava entrever de soslaio...
Calculem só... De certo, a árvore foi discreta, mas quem sabe? é tão singular,
inexplicável, misteriosa a força catalítica, a ação de presença? Que prodígios
não operam no seio da natureza esses elementos mudos, impassíveis e
inalteráveis?... Qualquer que seja a causa, o pobre do rapaz saiu daquela
imersão pior do que quando penetrara na água tépida, enervante, voluptuosa em
suas amornadas carícias. Tinha chamas nas veias.
Vestiu-se às pressas e com o cabelo grudado ao casco da cabeça,
portanto meio ridículo para um pelintrote de São Paulo, resolveu ir bater é
porta de D. Cula, orientado por um meninozinho, a quem generosamente deu 200
réis em níquel.
Sem demora lhe apareceu a visão celeste! Nem mais, nem menos, de
repente, a Gêgéca, que lhe dardejou logo dois olhares de revirarem de
catrâmbias para o ar, não um simples bacharelete, metido em paletot saco, de sarja verde fundo de
garrafa, porém, sim, com todo a sua armadura de ferro, Roldão em pessoa, o
sobrinho querido do imperador, Carlos Magno, ou algum dos Doze Pares de França.
— Que deseja, Sr. Doutor? Perguntava a rapariga sorrindo com
encantadora ingenuidade, mas deveras surpresa e lisonjeada daquela visita
matinal.
— Venho... venho, balbuciou o Anselmo quase estarrecido de tanta
beleza matutina, venho... encomendar à... senhora sua mãe... Não posso falar...
com ela? coisa... urgente...
— Está ainda dormindo, replicou a ciganinha muito despachada.
Mas, demônio, é filha daquele diabo que tanto surrara a desgraçada
D. Cula, basta de atarantar mais o Sr. Bacharel! Para que esse sorriso
enigmático, para que esse bater lânguido de folhudas pestanas? Deixa, pelo
menos, o moço dizer o que quer, que encomenda ora essa, tanto mais que um raio
iônico de sol ao nascedouro lhe brincava nas barbas ainda incipientes, na ponta
do nariz e no seu pince-nez de míope!
Era contudo, exato, D. Cula, com os hábitos de inveterada preguiça
goiana, ou antes sertaneja, ou melhor brasileira (fiat justitia ne pereat mundus, diz o direito estudado, ou não
estudado, pelo Dr. Anselmo de Sá) D. Cula apesar do calor, estava aquela hora
encafuada na cama, o tal catre velho, de que fala o capítulo I desta história
verdadeira.
— Não... não a incomode, implorou Anselmo com verdadeira angústia,
como se da repulsa de sua súplica pudessem provir grandes danos. Quero... a
senhora... per... perdoe... Quero para a viagem... um tabuleiro de doces.
E ficou assombrado da repentina ideia que lhe iluminara o cérebro;
dominado, porém, pelo terror de que o tal tabuleiro de doces fosse coisa tão
fora de alcance como o velo de ouro, ou algum pomo do jardim das Hesperídias.
Tranquilizou-se de pronto.
— Ontem mesmo à noite fizemos um bem grande, replicou Gegéca. O
senhor volte logo para ajustá-lo com mamãe.
Ia humildemente, todo sôfrego, perguntar a que horas; mas não teve
tempo, Pan! A ciganinha lhe batera a
porta na cara.
Já se viu o capricho?
Atrás dessa porta trancada, ficou ela contudo pensativa, de
sobrancelhas um tanto cerrada. Vamos e venhamos, aquele mancebo tão alvo, de
bigodinho revirado, pince-nez de
ouro, mãos e pés delicados, maneiras finas, traje elegante, lhe agradava
deveras, não lá exageradamente, coisa extraordinária; mas, enfim, esse não era,
de certo, como os outros, oh não!
— Que há de novo, Menina?
Perguntou de um canto a voz arrastada de D. Cula, entre dois bocejos.
— Um moço bem parecido que veio pedir um tabuleiro cheio de
doces... para não sei que viagem.
— Louvado seja! Diga-lhe que são três mira réis pagos à vista.
— Quase 3S! objetou a
filha. Peça-lhe a mamãe 5S, quando ele
voltar.
— E se não vortá?
— Oh! Se volta!...
Com efeito voltou e, ao preço exigido de 5S, impetrou licença para oferecer 10S; favor feito a ele. Tomara informações seguras; uma viúva,
vivendo honestamente do penoso trabalho com a sua filha, já moça, ambas sem
proteção de ninguém – nada mais digno e comovente.
E, se não deitou discursseira, foi por sentir a cabeça que nem um
ninho de guaxupés assanhados, debaixo das baterias oculares da ciganinha.
— A moça sabe ler? Atreveu-se ele a perguntar à Gêgéca num momento
em que estiveram a sós.
— Mal e mal, respondeu ela sempre a sorrir (diabo de sorriso)
arranho... quando a letra é grande...
Dali a pouco, também recebia um papel com garrancho bastante
graúdos: “Preciso muito falar-lhe logo à tarde, debaixo das laranjeiras. – Dr. Anselmo.”
Naquele esplendoroso doutor depositava o nosso homem muita
confiança, toda a confiança.
Entretanto, oh desilusão! A Gêgéca, nessa tarde deixou-se
exatamente ficar bem sossegadinha em casa; a ajudar a mãe numa tachada de doce
de fruta de lobo, que esta no dia
seguinte devia impingir como marmelada ao desnorteado viajante.
E não é que o bolas do cigano
fizera escola e para alguma coisa servira?!
Tudo nesse mundo tem sua compensação.
XI
Deste dia em diante começou a ciganinha a pôr em prática os mais
hábeis manejos de faceira esquivança, deixando o Anselmo cada vez mais
transtornado de paixão e exaltados desejos.
Em Santa Rita, já ninguém mais ignorava que o doutor, de pouso ali
por alguns dias, estava positivamente a definhar de amor. A todos tomava para
confidente, distribuindo dinheiro a rodo e não se fartando de ouvir falar na
Gêgéca, ora em bem, ora mais frequentemente em mal, o que o exasperava. As notícias do José
Bispo então o torturavam de modo horroroso, indizível.
Fazia tenção firme de logo e logo partir, de fugir alta noite,
sumir-se, azular; marcava o dia certo, infalível e, afinal, chegado o momento,
decidia continuar a ficar por ali a banzar.
Tudo lhe servia de pretexto, necessidade de dar forte descanso aos
animais, receio de chuvas próximas, razões todas de cabo de esquadra, que os
camaradas iam aceitando com a indiferença que essa gente por tudo mostra, no
fatalismo da existência.
— É memo, é memo!
Concordavam e lá iam folgar no rancho a tocar viola enquanto esperavam que o
Sr. Doutor quisesse um belo dia, quando menos contassem, levantar o pouso.
— Mas Gêgéca, D. Gêgéca, perguntava a medo Anselmo, em certa
ocasião, à ciganinha pilhando-a de jeito, porque é que você... a senhora...
foge de mim?...
— Por que o doutor deseja o meu mal, a minha desgraça! Respondeu a
moça resoluta.
— Eu, Gêgéca, eu? protestou ele com verdadeira e sincera
indignação, eu que a amo tanto, que a quero como nunca supus poder querer a
ninguém... eu, que não durmo, não como, não tenho mais um momento de sossego a
pensar na senhora... sempre em si?!
— E depois?...
— Depois o quê?
— Sim, depois? Para mim a vergonha, as lágrimas, o abandono... tal
e qual minha pobre mãe, e tantas coitadas por este mundo de Deus!
Arregalou Anselmo uns olhos muito grandes. Seriamente caia das
nuvens, via-se rolando aos trambolhões por enormes despenhadeiros.
— Eu te juro... fiel, fiel até morrer!...
— Sim, é o que vocês homens sempre dizem; a arapuca em que todas
caem... um milhozinho pisado em troco da prisão eterna... valha-me Santa
Rita!...
E arremedando o arroubo do rapaz repetiu com engraçado e fingido
ardor e apertando o peito nas mãos:
— Eu te juro... fiel, fiel até morrer! E riu-se às gargalhadas.
Em outro tom, sem transição:
— Para nós, desgraçadas, as consequências... o luto, esse eterno
riso... o peso desse gracejo... os trabalhos, nós, sobretudo, do sertão, sem
ninguém que nos ampare, nos mostre o caminho direito... nenhum castigo para os
homens, que têm por si a força, o abuso...
Ó ciganinha danada! Quem te ensinou tudo isso? Em que livro foste
aprender toda essa desfiada de valentes argumentos, tu que só sábias quirelas
de nomes feios e se lias era mal e mal, tão somente letra graúda? Muito, muito
pode o bom instinto!
— Então fujo daqui, vou me embora, desapareço... Você nunca mais
ouvirá falar de mim... Hei de esquecê-la logo e logo que der as costas a Santa
Rita...
— Paciência, replicou a Gêgéca, levantando os ombros, a estrada é
larga, está às suas ordens. Ninguém o agarra; olhe, eu não lhe estou dizendo de
ficar...
E, com melancolia, mirando o moço bem em cheio, os olhos
carregados de brandura:
— Quanto a esquecer-me, disse, é bem fácil, bem natural. Que valho
eu? Uma pobre rapariga da roça... filha de mulher sem marido. Mas eu lhe
afianço, Sr. Doutor, hei de sempre lembrar-me do Sr. Viva eu cem anos...
E quedou-se uns instantes a encará-lo imóvel.
Mal pode Anselmo reter um frouxo de choro.
Parecia que todas as desgraças lhe caiam em cima.
De repente:
— Então você gosta um bocadinho de mim? Indagou com ansiedade.
— Não sei, não posso dizer... nem sim, nem não... gratidão é amor?
— Mas, Gêgéca, qual será o seu destino, neste lugar tão pobre, tão
sem recursos?... Tanta formosura para quem? Para quê?
— Meu destino? Que interesse deve merecer-lhe? Ora, o de tantas
outras... Casarei com algum tropeiro por aí... Estou vendo, estudando,
esperando alguém que seja de todo mau... — Você, casada com um tropeiro, meu
Deus, meu Deus!! Impossível!
— E porque não? Nem sequer valho um arrieiro?
— Oh! Gêgéca, muito mais, muito! Não leve a mal as minhas
palavras; estou fora de mim, nem sei o que digo...
— Olhe, observou a Ciganinha,
uma coisa eu juro por Deus que me está vendo, o homem que me tiver não há de se
arrepender... Sinto que não nasci para mulher ordinária... menos ainda para
moça de parta aberta...
E com ímpeto:
— Não, isto não, antes a morte... mil vezes a morte!
Agarrando então violenta a mão de Anselmo e achegando-se a ele,
perguntou irada, com os sobrolhos fechados, as feições contraídas:
— O José Bispo da venda lhe contou alguma mentira? Falou mal de
mim? Responda, responda!
O moço repetiu o que era verdade.
— Não, ele se cala, todo embezerrado, quando outros cortam na pele
de você... E não são poucos Gêgéca... ah, não!
— Uma súcia de catimbaus
e mofinos! exclamou ela com altivez. Podem inventar o que fizeram, desafio-os a
todos; mas o mais pintado deles não teve isto de mim!... Ixe!
E fez estalar a unha de encontro a outra.
Passou então por perto uma velha que ia buscar água ao rio com um
pote à cabeça, e os dois pouco depois se separaram.
Anselmo levava, contudo, a promessa formal do tão inspirado
encontro a sós, num recanto ensombrado que ela lhe indicou, a custo, incerta,
descontente, apreensiva.
XII
Já se ia a plácida e cálida tarde fundindo em noite, quando no
ponto aprazado, ocorreu o rendez-vous que devia ser decisivo, entre Gêgéca
e Anselmo de Sá.
Fora este muitas horas antes, o sol ainda alto no horizonte,
esperá-la ardendo em febre e impaciência, e supondo-se a cada momento
simplesmente ludibriado pela suspirada Ciganinha.
Afinal apareceu ela, como que trazendo consigo ondas da luz que já
ia faltando na terra, em derredor. Parecia descer do céu.
— Enfim! Exclamou o moço, atirando-se arrebatadamente ao seu
encontro.
Repeliu-o Gêgéca com brandura.
— Não toque no meu corpo, observou grave e resoluta, venho só para
ouvi-lo, já que se mostra tão ansioso de conversar comigo. E será esta a última vez, desde já o aviso.
— Sim, sim, concordou Anselmo; nada mais quero.
Começou então uma dessas declarações de amor como tantas no fundo
ouvira ela, desta feita, porém, numa linguagem nova, sonora, arrebatada, que
dolorosamente lhe acariciava os ouvidos, a deixava enleada, com a cabeça um
tanto vertiginosa.
Presa de sincera paixão, foi Anselmo por vezes eloquente naqueles
surtos de elevada e platônica poesia, que é o pérfido visgo das cruéis e
irremediáveis exigências físicas.
—Gêgéca, dizia ele, vejo, pressinto que você deve amar-me um
bocadinho, mil vezes menos do que eu, mas sempre alguma coisa, e o amor não
pensa, não calcula, o amor é todo misericórdia, é um sacrifício, dá vida, não
mata, não extermina!
E como fogo lhe prendia as mãos frias nas pontas.
— Por certo, balbuciava ela, você não é como os outros que me
falaram e sempre me falam em paixão... mas, afinal, e apesar das minhas
imprudências, sou uma rapariga honesta... tenho sabido resguardar a minha
honra... que será de mim?
— Não lhe dê isto cuidado... levá-la-ei comigo...
— Sim, replicou a Ciganinha
irônica e mais senhora de si, como coisa vergonhosa, não é, às escondidas? Não
chamam por aí malas essas pobres
criaturas que seguem com os viajantes? Ia eu ser como elas, simples mala! E minha pobre mãe, que não pode
mais viver sem mim?
— Ah! verberou com real desespero Anselmo, num explosão de ingênuo
egoísmo tão comum em quem ama deveras, você não pensa senão em si. Eu não valho
nada; nasci para sofrer, para ser achincalhado, pisado aos pés, para sofrer
como um miserável... Quem me tirou o sono, o comer, o beber, quem me causou mal
tão fundo e incurável, é que lhe deve dar remédio... É de justiça, é de
equidade! Isto brada aos céus...
Dúbio luar clareava então um pouco os espaços, luar, porém, tão,
pálido, tão desmaiado!... Se jamais D. Cula pudesse fazer de lua, havia de
passear assim, desmaiada, cloro-anêmica, pelo firmamento afora.
De todos os lados também, como que imenso desalento na gigantesca
natureza, alquebradas e inertes as forças de resistência numa modorra letal.
Só a Gêgéca a lutar valente com os arroubos de Anselmo e consigo
mesma.
Quis o mancebo apressar o desfecho e de súbito a tomou nos braços.
Aí, porém, surgira o instinto da revolta no peito da Ciganinha e
tal empurrão deu ela, que Anselmo caiu redondamente no chão a certa distância.
Ah! não era o forçudo e temido José Bispo, esse bacharel;
certamente não!
Rompeu ele em nervoso pranto, deixando-se ficar deitado na relva,
com o rosto oculto entre as mãos. E o corpo todo estremecia com a violência dos
soluços.
Invadiu então o coração da moça sentimento tão intenso de
compaixão e remorso, que, sem saber bem o que fazia, foi sentar-se junto do
mísero apaixonado e fez-lhe pousar a cabeça sobre um dos joelhos.
E ficaram os dois imóveis, ele a chorar em Silêncio, ela a
acariciar-lhe os cabelos com muita meiguice, ambos num enlevo de indizível
doçura.
Ah! Ciganinha, Ciganinha, que perigo!
Que te podia salvar em momento tão extremo, quando tu mesma, a
escorregar por misterioso e irresistível declive, te entregavas ao entontecedor
esmorecimento de toda a tua energia, da tua vontade, tão imperiosa, instantes
antes, quão vencida agora e conculcada? Pois, senhores, não lhes conto nada;
ouçam, porém, o que sucedeu.
Já quatro ardente lábios bem próximos se iam abotoar, naquela
sugestiva solidão, no mais sequioso beijo, quando, com bastante estrepito, um
animalzinho correu ali perto, algum guaxinim ou jaguatirica, e foi quanto
bastou para que Gêgéca voltasse a si e de um pulo se pusesse de pé.
Quem sabe se não lhe valera a velazinha de cera, que, dias antes,
for a levar e acender, na igrejinha com toda a devoção, aos pés da sua
protetora, a Senhora D. Rita de Cássia, santa de muitos milagres e bondades?
Em todo o caso, estava desfeito o terrível feitiço. Aclararam-se
as posições.
— Adeus, disse a Ciganinha.
Siga o seu caminho, Anselmo, parta quanto antes, amanhã se for possível. É de
fundo d’alma que lhe desejo todas as felicidades! Esqueça até que existo neste
mundo.
Estava o moço positivamente apavorado.
— Não, não, dizia ele agarrando-lhe nas mãos e de joelhos, mil
vezes, não!
E, no auge do desespero, exclamava.
— Que fazer, santo Deus, que fazer? Você quer a minha morte, quer
com certeza!...
Calava-se Gêgéca, como que a meditar.
Afinal:
— Levante-se, ordenou, e ouça-me com algum propósito e sossego.
Pergunta-me que fazer, não é? Pois lhe respondo: coisa muito simples, muito
natural: case-se comigo.
Em qualquer outra circunstância simples gargalhada teria acolhido
semelhante alvitre; mas Anselmo estava tão atarantado e abatido que se
contentou com abrir uns olhos muito espantados.
— Eu... eu? balbuciou, casar... com você?
— Por que não?
E vendo mil dúvidas nos olhos desvairados do moço:
— Há de, acrescentou com altivez, achar-me digna de si... Não
tenha susto...
— Mas... meus pais, você nem imagina, tão cheios de si... bons, de
certo; pacíficos, mas orgulhosos da sua família, do seu nome...
— E eu, charqueou ela irônica mas já aí jovial, valho pouco? Minha
mãe, sim, é uma pobre coitada, mas quem lhe diz que meu pai não era algum rei
ou príncipe entre os ciganos?... Aquela gente é toda de grandes segredos...
Sinto Ter jogado no Paranaíba uns papéis de família...
— Gêgéca, implorou Anselmo, deixe de debicar-me... Responda, que
dirão meus pais... vendo-me casar consigo...
— E levarei a mamãe, aditou logo a Ciganinha... Não me separo dela por nada deste mundo...
— Então?
— Ora, então? Hei de enfeitiçar seu pai, sua mãe, toda a sua
gente; fica por minha conta. Olhe, Anselmo, nunca lhe meterei vergonha... Você
me ensinará muita coisa que não sei, e Santa Rita me ajudará.
— Casar, casar, repetia assombrado o outro. E os papéis?
— Não lhe dê cuidado. Mando um próprio chamar o meu padrinho
vigário e tudo se arranja num momento. Bem, concluiu! Se você me procurar mais,
há de ser para levar-me à igreja. Do contrário não lhe mais para mim. Adeus!
E, correndo para a casa, passou Gêgéca a noite em claro, sem um
momento de sossego, resolvida porém de pedra e cal, como se diz, a não dar o
braço a torcer.
XIII
Mil projetos fez Anselmo, do seu lado. Chegou até a arrancar-se
daquele pouso fatal, mas, dois dias depois, voltava à Santa Rita, aniquilado,
desfeito, devorado de mortais saudades, em estado positivamente lastimável – um
joguete da mais infrene paixão.
Pensou até em matar-se, atirar-se ao Paranaíba, acabar de vez com
aquela situação infernal, em que não via saída possível, o menor postigo
entreaberto, que lhe permitisse olhar mais desassombrado para o futuro.
Que luta ingente!
Afinal, numa bela manhã em que a natureza seria inebriante, feliz,
bondosa, a aconselhar a todos os seres alegria, expansão e gozo, tomou a
suprema resolução e, batendo à porta da miserável choça das duas mulheres,
pediu solenemente à D. Cula a mão da sua filha, a Ciganinha!
Como foi acolhido!
A recompensa foi também deslumbramentos sem par, além de um beijo,
no fim da visita, bem em cheio nos lábios, capaz de deixar tonto de orgulho o
tzar de todas as Rússias.
Para que contar mais o que se seguiu? Como tentar descrever o
pasmo de toda a povoação? E, no dia do casamento, o resplendor de Gêgéca, no
seu vestidinho branco de cassa fina, todo enfeitado com muitas flores naturais
de laranjeira? Sabem os leitores se tinha ou não direito de carregá-las.
E o dia da partida? Ela a cavalo, D. Cula em solene banguê, toda lavada em lágrimas, e o
Nhônhô Frutuoso como capataz da tropa?
Ainda hoje se fala de tudo isso em Santa Rita de Cássia.
Quando desfilava o préstito, não pode José Bispo, correspondendo
enfarruscado ao cumprimento dos que seguiam viagem, deixar de exclamar:
— Lá se vão as alegrias de Santa Rita!
E, para espairecer a tristeza, deu, nesse dia, formidável surra à
pobre da Perpétua.
Entrou por uma porta e saiu pela outra, e acabou-se a história.
Ficaram contentes? Não?
Pois então peçam ao Afonsinho, ao Celso, que lhes conte outra.
Ninguém como ele para saber mil coisas do sertão; e as narra com muita
singeleza e graça, num estilo meigo, atraente, cristalino, assim à maneira de
límpido regato a sussurrar entre margens floridas, mágicas, encantadoras.
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