10/03/2017

Catimbau (Conto), de Humberto de Campos


Catimbau

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Belém, 18 de janeiro — Os jornais desta capital noticiam a trágica morte ocorrida há dias nos campos da ilha de Marajó, município de Soure. O destemido vaqueiro Narciso Viana, aí cunhado Catimbau, famoso domador de touros, prometeu à sua namorada que, em troca de um beijo, laçaria um touro bravio que esta lhe indicou.

Narciso perseguiu o animal, fez prodígios de equitação, rivalizando em rapidez com a destreza do touro. Afinal, atirou o laço, enrolando-se este acidentalmente, em torno do vaqueiro, que foi cuspido da sela. Estando a ponta do laço presa à cilha foi estrangulado o bravo sertanejo, sendo arrastado pelo cavalo cerca de légua e meia.

Os companheiros da fazenda do infeliz cavaleiro, conseguiram, depois de grande correria, apoderar-se do sangrento cadáver de Narciso Viana, entregando-o à sua namorada, que, involuntariamente, causara a sua morte (Telegrama da Agência Americana).

Entre os vaqueiros do Campo-Alegre, a famosa fazenda marajoara, era Catimbau, sem dúvida, o mais destemido. À tarde, quando a campina, extensa a perder de vista, começava a cobrir-se da cinza tênue com que a noite polvilha o seu caminho, era ele o primeiro a esporear o cavalo na extremidade da planície, e a estacar, de repente, no alpendre da casa, o chapéu de couro para a nuca, o chicote na mão, disposto, após doze horas de campo, como se voltasse de um passeio domingueiro.

Era um caboclo forte e ágil. O rosto moreno, queimado de sol, que os olhos risonhos alegravam, iluminava-se todo, quando com a dentadura sã, das raças primitivas. Toda a sua figura constituía, enfim, uma festa de bravura e de saúde, que enchia de inveja os homens e matava de paixão as mulheres.

Na sua vida de herói, filho e rei daquelas amplidões verdes, havia, contudo, tristeza secreta: a que lhe nascera há dois anos, pelo São João, na festa do Aquiri, fazenda do Joaquim Inácio, quando conhecera a Rosinha, caçula do João Soares e o botão que ia ser, no ano próximo, a rosa mais linda, e mais fresca daquelas redondezas.

A filha do João Soares era o tipo clássico da cabocla paraense. Cabelo escorrido e longo, atirado em cascata para as costas; morena, como as rolas do terreiro; nariz correto e fino; olhos negros e úmidos; era, toda ela, candura e tentação. Duas coisas, porém, não saíam da imaginação de Catimbau: o colo farto da rapariga, arfante como as ondas do rio depois da "pororoca", e aquela boca miúda e vermelha, de uma mobilidade atordoante e que mostrava, ao menor sorriso, dois rosários de dentes pequenos, que eram, aos seus olhos de homem do campo, como pingos de leite no focinho rosado de um bezerrinho novo.

Beijar aquela boca, sugar aquelas gotas de leite, tornara-se para o vaqueiro a maior ambição do seu destino. Para ver a rapariga, mesmo de passagem, viajava cinco léguas, três vezes por semana. Para isso, inventava os pretextos mais ingênuos: ora perseguição a um garrote da fazenda, tocado à força naquela direção, ora a caça a uma novilha que ele sabia onde se achava, mas que ia procurar, sempre, para as bandas do João Soares. E cada uma dessas vezes, eram horas perdidas de conversa no alpendre: ele, escanchado no cavalo, o cotovelo esquerdo pousado na lua da sela, a curva da perna direita dobrada, em posição de descanso; ela, feliz, assustada, risonha, esmagando os seios virgens na tábua escura do parapeito.

A despedida era todo um poema de ternura que, quase, não tinha fim. A mão na mão, os olhos nos olhos, ficavam assim minutos seguidos, sem uma palavra nos lábios. Até que, fria, trêmula, numa sacudidela violenta dos nervos, Rosinha pedia, fechando os olhos e soltando-se violentamente da férrea pressão dos seus dedos:

— Ande... Vá embora!

E, esporeando o cavalo, em dois corcovos, o caboclo partia.

Certa vez, a voz cortada pela emoção, Catimbau resistiu:

— Não vou!

E enunciando um desejo que lhe estava, de há muito, no coração:

— Só irei se você me der um beijo!

A resposta, dessa vez, foi uma carreira, rápida, de veadinha arisca, para o interior da casa. De outra feita, porém, Rosinha prometera, corando:

— Olhe, agora, não... Pelo Natal... Pelo Natal eu dou... Serve?

— Olhe lá, hein? Promessa é promessa! observou o vaqueiro.

De agosto a dezembro o pensamento de Catimbau não se prendeu a outra coisa. Agitada pela esperança da felicidade, a sua imaginação galopava mais que o seu cavalo. Para que o beijo prometido fosse mais doce, e não comprometesse outros, pela repugnância talvez despertada na rapariga, deixara de fumar. Para perfumar a boca alimentava-se de coalhada e comia, no campo, das frutas mais cheirosas da ilha. E foi assim que, com o coração aos pulos como um potro bravo, chegou, enfim, ao mês do Natal.

O dia da Conceição, oito de dezembro, era de festa, de novo, no Aquiri. De toda parte da ilha iriam vaqueiros e moças, para a festa de Nossa Senhora. E lá estaria, também, a Rosinha, cuja beleza se acentuava à medida que se tornava mulher e o amor penetrava, como uma aurora, aos abismos floridos da alma.

Quando Catimbau chegou à fazenda do Joaquim Inácio, a casa já estava cheia de gente. Dançava-se na sala, no alpendre e, na cozinha. Ao ver, de longe, o movimento dos pares, o coração do caboclo apertou-se. Rosinha estaria dançando? E com quem? Ao aproximar-se, porém, da casa, a alma se lhe desabrochou no rosto franco, num sorriso de felicidade: resistindo às solicitações dos outros rapazes, Rosinha estava a um canto do alpendre, à sua espera. À tarde, com o sombrear da campina, os convidados saíram, todos, para o alpendre para o terreiro. Para aguardar a noite, e dar um pouco de repouso aos músicos, sugeriu-se uma pega aos novilhos. E a ideia recebida com uma salva de palmas pelas mulheres, e por um gesto de entusiasmo pelos vaqueiros, sempre dispostos a pôr em evidência a sua bravura na carreira e a sua destreza no manejo do laço.

Em frente a casa, a uns cinquenta metros, ficava o curral, onde uma pequena boiada que chegara pela manhã aguardava o dia seguinte para continuar a viagem, rumo do Soure. Estalando os chifres, amontoando-se ora a um canto do cercado, ora noutro, as reses permaneciam de pé, sem repouso. À menor aproximação de uma pessoa, agitavam-se todas em redemoinho, na previsão instintiva da fatalidade iminente.

Um dos vaqueiros encaminhou-se naquele rumo, para escolher um barbatão. A porteira entreabriu-se, e o primeiro boi que estourou no pátio, foi um garrote alvação, de chifres tortos e pescoço de touro precoce. Ao sentir-se em liberdade, o animal estacou, irresoluto, como se procurasse destino. Ao ver, porém, a poucos metros um vaqueiro que corria ao seu encontro, atirou-se pela planície em carreira desabalada, levando na esteira, cada vez mais próximos, cavalo e cavaleiro. Este era Ventania, campeiro famoso da fazenda Água — Doce, e rival, nas "pegas", do Catimbau.

Curvado para diante, apoiado apenas nos estribos, em poucos segundos o rapaz alcançava o garrote, emparelhava-se com ele, segurava-lhe a cauda distendida na carreira, enrolava-a na mão, e, num movimento súbito, atirava o animal ao solo, pulando-lhe em seguida em cima, paralisando-o de focinho no chão.

— Catimbau!... Catimbau!... — gritavam as moças e os outros vaqueiros, partidários do campeiro do Campo-Alegre.

Ao lado da namorada, o caboclo mostrava-se indiferente a tudo aquilo.

Que lhe importavam a glória, a fama de vaqueiro, se ele possuía, ali, o coração da Rosinha? Que o Ventania lhe arrebatasse todos os louros, mas deixasse aqueles, de homem que ama, e que é amado... Ademais, enchia-lhe a alma um pressentimento doloroso. Parecia-lhe que, se saísse dali, do lado da noiva, lhe aconteceria alguma coisa.

A sua indiferença ao feito do outro começava, porém, a causar estranheza. Onde estava, então, a sua coragem tão proclamada? Os partidários do Ventania principiavam a sorrir, vitoriosos; os dois amigos Catimbau murmuravam, contrafeitos. E quem deu por isso, por essa atmosfera de prevenção que se formava, foi Rosinha.

— Por que você não vai? — indagou, mimosa.

— Para não sair de junto de você.

— E se eu lhe pedisse que fosse?

— Eu ia... Mas, com uma condição... Que você me desse hoje o beijo que me prometeu para o Natal...

A moça ficou toda vermelha. As orelhas pequenas tornaram-se-lhe de lacre, como duas cristas de galo garnizé. Meditou, porém, um instante. A fama, a nomeada, a dignidade de vaqueiro do seu namorado, do seu noivo, do homem que era o seu orgulho, estavam em perigo. E foi resoluta, decidida, que, numa violência sobre si mesma, prometeu:

— Eu dou... Vá...

De um arranco, pulando sobre o parapeito, estava Catimbau escanchado no seu cavalo castanho, o sorriso nos lábios, um brilho estranho nos olhos, o laço enrodilhado no arção. Uma salva de palmas cobriu-lhe o gesto inopinado.

— Solta o touro! — gritou o caboclo.

Um momento mais, e, arrancando pela porteira meia-aberta, sacudindo-lhe os paus para os lados, irrompia no campo a maior peça da fazenda, um touro negro, de sangue crioulo, que, após vários meses de vida arisca e selvagem, havia sido, na véspera, recolhido ao curral.

Pernas estendidas, o corpo ligeiramente vergado para a frente, as mãos na rédea, o olhar de ave de rapina que espera a passagem da presa, a corda do laço pendente da sela, Catimbau aguardava o arranco do touro. E quando o bicho estourou fora da cerca, só se ouviu uma dupla exclamação, rápida, seca, repentina, como um grito de guerra:

— Upa!... Upa!...

E o cavalo partiu, depois de dois galões, com uma assombrosa elasticidade dos músculos, no encalço da fera.

Levando o touro uma vantagem de trinta metros, o cavaleiro alcançou-o, em dois segundos. Negaceando, virando, torcendo, o boi dificultava a pega, que o próprio vaqueiro evitava, preferindo demorar a batalha para dar maior campo à variedade da destreza. De repente, no meio da várzea, em uma grande manobra elegante, Catimbau deixou o touro distanciar-se.

— É o laço... É o laço!... exclamaram todos, que conheciam, ponto por ponto, os processos do vaqueiro famoso.

E não se enganavam. Ao fundo da planície imensa e verde, que se tornava azul na proporção da distância, o touro e o cavalo eram como duas formigas em uma grande bandeja de esmeralda. Arrancando o laço à ilharga da sela, sentindo-lhe a extremidade bem amarrada ao arção, Catimbau cravou as esporas no cavalo, apertou os joelhos à barriga do animal, e soltou o grito clássico do momento de perigo:

— Ecooo!...

Compreendendo o sinal, cavalo e touro dispararam no máximo da velocidade e do esforço. Duas flechas que cortassem o ar, impelidas pelo arco de um gigante, não seriam mais rápidas. Não era uma carreira: era uma vertigem.

— Ecooo!...

A cinco metros da rês, viu-se, ou imaginou-se ver, do alpendre, a corda rodar, num círculo, sobre a cabeça do vaqueiro. E a um impulso violento, justo, certeiro, aquele arco partiu, rodou, desceu, indo cair, preciso, sobre a cabeça do touro.

— Laçou!... Laçou!... — gritaram vozes nervosas, no alpendre e no terreiro.

Súbito, a corda esticou. Dir-se-ia que ia partir, rebentar, estalar.

Cavaleiro e touro, ao choque formidável, estremeceram, sem parar. Mas, a este choque, correspondeu uma nova cena imprevista: o corpo de Catimbau, arrancado da sela num salto sinistro, foi postar-se, de pé, entre o touro e o cavalo!

— Nossa Senhora!...

— Meu Deus... — gritaram quarenta vozes, no alpendre.

As mãos nos olhos, as mulheres não queriam ver. Olhos arregalados, porém, os homens compreenderam tudo: ao atirar a corda, esta dera volta em torno ao pescoço do vaqueiro, o qual, ao esticar o laço, fora arrancado da sela, estrangulado!

Ao longe, na campina, o touro e o cavalo presos um ao outro pela corda distendida continuavam a correr, em direção à mata distante. E, de pé, sustido pela corda, arrastado como um bólide, pela várzea, corria, também, com eles, o cadáver do vaqueiro.

Cavaleiros partiram, céleres, com estrépito, em uma nuvem de poeira. Ao alcançarem o touro e o cavalo, estes aproximavam-se da mata misteriosa, mas, já sem o companheiro sinistro. A cabeça do vaqueiro foi encontrada primeiro, coberta de sangue e terra. O corpo foi achado depois.

Uma hora mais tarde, a cabeça decepada de Catimbau recebia na boca sangrenta, no alpendre da fazenda, diante dos companheiros comovidos, o seu prometido beijo do Natal...

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