10/23/2017

Aves migradoras (Conto), de Fialho de Almeida


Aves migradoras
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Mas tu és minha amiga, balbuciava a criatura querendo tomar-lhe as mãos numa súplica desolada. Devias ter dó desta fatalidade que me leva ao encontro de Rui. Oh, tu não sabes! A ideia dele tira-me o sono, embebeda-me, convulsiona-me, vai comigo a toda a parte. Tu ao menos tiveste família, irmãos, alguém. A mim nunca ninguém me quis. Os garotos puxavam-me os cabelos, meu pai batia-me em estando embriagado. Aos dez anos puseram-me fora, que fosse trabalhar. E andei descalça atrás dos porcos, ia aos sábados pedir esmolas às portas dos ricos. Um verão agarram-me a furtar uvas numa vinha: o vinheiro era um bruto, jogou-me um tiro; e cheia de sangue, quase morta, uns cavadores que passavam, foram levar-me a casa da minha madrasta. Mas à embocada da aldeia, como eu ia estendida numa padiola de ramos, a senhora marquesa viu-me passar da sua janela, e por caridade, recolheu-me. Ali se fora criando, a fazer companhia ao menino. Rui nesse tempo era um déspota, obrigava-a a saltar muros, a pendurar-se de cordas, a fazer de cavalo. E batia-lhe. Em compensação Luíza adorava-o com um amor de cadela agradecida. Do fundo da sua humildade, nascia-lhe um deslumbramento inexplicável, uma curiosidade, uma cegueira de Rui. E nervosa, franzininha, como a figura de uma borboleta na melancolia pálida de um sonho, adquirira já precocidades: e os seus grandes olhos remordiam na beleza do pequenito, substratos de muitíssimas aspirações. Na quinta, os trabalhadores às vezes perguntavam-lhe:
— Queres ser amiga além do menino?
Ela abria os seus olhos vorazes, dizendo com a cabeça que sim. Entrementes o pequeno ia crescendo. Era alto, delgado, divinamente perfeito. Tinha já essa atitude desinteressada de entusiasmos, indiferente aos impulsos fortes, desdenhosa, petulante, das criaturas nascidas em meios altos, e destinadas ao predomínio. As suas mãos davam cobiça, brancas de cera, e com detalhes mimosos de obra prima. Oh, mas a boca, inexplicável, trazia embrionada na escultura dos lábios, todas as florações misteriosas de uma ascendência patrícia — boca de chefe pela austeridade, de diplomata pela ironia, e de mulher pela doçura com que a descerrava, em sorrisos cicatrizadores das esgarçaduras que a sua altivez antes fizera. Quando ele veio do colégio a primeira vez, empalidecera: mas a expressão dos seus olhos era uma coisa indescritível de encanto, de melancolia e suavidade.
À enformatura tenra, oscilando como a haste anêmica de uma flor de estufa, viera juntar-se o mistério poético de um espírito insexualmente delicado, cujas infantilidades corrigia a cada instante um fogo-fátuo de ideia, e a graça grave, indecifrável cambiante, da esfinge que contempla, sem desmentir jamais a prega austera da boca. Era já, nessa idade, a criatura de gostos raros, avara de palavras e gestos, fria, correta, com preguiças de atáxica e relâmpagos de crueldade na pupila augusta de César, adorando o luxo dos Palácios antigos, tendo a mania do bibelotage, e antegostando, como todos os homens da sua família, uma espécie de deleite perverso no desnortear pelo testemunho das suas impressões prevaricadas, a sensibilidade reputada normal pela outra gente. Essa susceptibilidade depressa se embotava todavia, reclamando intercadências, e por vezes derivando em passageiras alucinações. Índole toda de nuances, refrangida de um sangue com predomínio de soro, como uma luz coada através da seda de um biombo, ele parecia arvorar o pálido como flâmula de guerra da hoste macabra dos nevrosados, cuja vida o tédio do vulgar envenena. Por seu lado, Luíza conseguira ganhar pela viveza dos seus expedientes e remoques, o espírito da senhora marquesa, ao tempo enlanguescido no estranho mal que ia varrendo as gentes da sua raça, mercê das alianças consanguíneas em que esta teimara-se. Em cinco anos, nada restava já da pequena mendiga chegada ao Palácio numa padiola de ramos, com os cabelos nos olhos, os pés enlameados, coberta de trapos, e numa magreza dolorosa. Era uma bruna de beiços rubros, dentes pequenos, com formas de escultura e sadias destrezas de amazona. Desde a partida de Rui para Campolide, que ela não tinha na casa ocupações definidas. Conservavam-na, um pouco por gratidão, e por amor também, um quase nada. E assim era um bocado de tudo — leitora, enfermeira, guarda das estufas, esmoler-mor, criada de mesa e bordadora — e assim pudera conservar a sua selvageria de origem, tão familiar aos serviços da propriedade.
Luíza era inteligente: ali se fora educando, aprendendo, adquirindo pela familiaridade da boa companhia e da riqueza esparsa em obras de gosto, através dos velhos aposentos, essa cultura interior de sentimentos, essa exoticidade de preferências, essa indiscutível distinção de conversar e receber, que a tornaram depois tão apetecida cá fora — isto realçado com a turbulência da criatura nascida em pleno campo, espojada nos fenos, e rebelde no sangue, longe das peias deformantes da sociedade. Só de longe a longe, à força de hidroterapias complicadas, a senhora marquesa obtinha uma ou outra hora de vida serena, e conseguia furtar-se aos lúgubres nervosismos da enfermidade. Era o feitio de Rui, menos a juventude, mais a impaciência. A custo lhe saía o espírito das abstrações e sonolências em que ficava embrenhado horas e horas; e exiguamente, destilando a lucidez como uma essência, gota a gota, num ting-ling monótono. A sua vida passava-se num canto de capela, entre sombras, enterrada num fauteuil com baldaquino, e só de lá saía para se entregar ao cultivo de quatro ou seis predileções extravagantes. Ressentia-se do claustro onde passara os primeiros anos de educanda, e da corte onde tinha gozado os primeiros meses de casada. Era uma natureza extática, adorando as pompas do culto, os requintes sutilizados da liturgia, os movimentos dramáticos do órgão no instrumental das grandes cerimônias — um pouco de misticismo, num pouco de miguelismo, num pouco de idiotismo,— com paixões de plantas monstruosas e aves singulares, alimentando-se de frutas, vestida de antigos damascos e pompadours de raminhos, e tendo sempre bolos de ovos no benitério do seu genuflexório. Era ver a ternura de Luíza durante as crises da boa senhora, e a meiga servilidade da sua voz rebuscando as mais enternecidas músicas, para pedir perdão de lhe não ter adivinhado mais cedo o pensamento.
Essa ternura, Luíza não a fazia nascer exclusivamente da gratidão que nutria pela castelã: vinha antes da emoção que Rui lhe dava, da febre que lhe produzia a lembrança da sua beleza fruste e singular. Todas as dedicações se fundiam nela, e assim todas as espécies de desejos inquietantes. Vinda de uma mancebia de aldeia, onde rolavam a toda a hora palavras bêbedas e ações quase medonhas, Luíza achara entre os moços da quinta, nas conversas surdas da cozinha e da arribana, à hora da ceia, a continuação do que vira e ouvira em casa da madrasta. Fora preciso um cuidado assíduo, nos primeiros tempos, para refazer-lhe o vocabulário, e transviar para intuitos mais límpidos, a tendência de vício que ela trazia no sangue, em purulentos coágulos. Se a educação e o mimo em que fora subindo, à proporção que se insinuava nas simpatias do Palácio, lhe haviam feito a língua casta, e a expressão virgínea, já por fim, no fundo, o terrível sangue conspirava nela, com as herdanças fatais da vida airada, fosforejando ardores que a nubilidade às vezes desencadeava em verdadeiras procelas. Inda criança, o seu amor pelo Rui já não podia dizer-se imaculado. Não era esse idílio de bambinos coligados na mesma adoração por uma boneca, nem a celeste comédia, inolvidável, de duas cabecinhas atentas para o mesmo malmequer que se esfolha à beira de um campo de trigo, sob o guarda-sol de seda que a ama balouça, sorrindo de os ver tão sérios, os dois noivos pequeninos. Mas uma paixão de inferior que se deslumbra pelos filhos da raça cujas perfeições não pôde igualar, paixão com haustos de posse, indeclinavelmente física, prematura, perversa, e cheia destonteamentos já torpidos. Com a idade, aquela ânsia de Luíza não se corrigia nem purificava, senão ia crescendo, acentuando, colorindo, na medida da sua adolescência cada vez mais radiosa em seduções.
Nas férias, mal se sonhava o dia em que Rui devia chegar, já ela não parava quieta em parte alguma. E ei-la passando os dias nos aposentos do menino, revolvendo alcatifas, mudando o lugar do leito, perturbando a ordem dos quadros, a disposição dos mobiliamentos, agrupando plantas, pelo que sabia das predileções de seu amo — pondo stores e biombos em todos os portais por onde francamente entrassem a luz e o ar. Na casa, os criados sorriam, como quem sabe de tudo — galinha canta... E os ditinhos pululavam. Mas um que era já ruço, muito gordo, quase sacerdotal pela rigidez da compostura, costumava deter-se à porta dos quartos, tossindo devagarinho, a vê-la trabalhar.
— É o Ezequiel menina Luíza.
Ela gostava desse, que a defendia sempre das animadversões da criadagem, e por toda a parte a cercava de deferências tocantes. Mesmo, das suas palavras paternas, ruminadas num fundo de reflexão um poucochinho canalha, vinha-lhe uma sorte de lisonjeira coragem. Ezequiel era o único que parecia não por em dúvida a ascendência de Luíza sobre a outra criadagem. Entanto ele às vezes punha-se a esquadrinhá-la, na sua bonomia de velho, deixando cair palavras descuidosas aqui e além, para a fazer dar à língua, e espaçando reticências de propósito, no sítio onde a rapariga, simploriamente, logo ia prender revelações.
— Muitos parabéns, menina Luíza. Faltam só quatro dias.
Ela, fingindo não entender:
— Ora essa! Para que, Ezequiel?
Ele ia entrando, punha o espanejador ao canto da porta, enxugava os dedos da pitada ao avental.
— Estas raparigas, estas raparigas!... E daí que tinha? Não há tanta menina pobre casada com pessoas grandes? Eu sempre queria ver...
— Você, Ezequiel, nunca tem melhores lembranças. Ora o mofino!
E o velho, conciliador:
— Acaso admira que vossemecê goste de Rui? O contrário é que espantava. Criados de pequeninos, no mesmo berço quase... E olhe que têm muita força os beijos a que uma pessoa se acostuma de criança.
Ela empalidecia e corava sem escrúpulo, surpreendida no divino tormento que lhe extasiava o espírito em fogos multicores.
— Olhe cá, Ezequiel. Cada um no seu lugar. O que diriam de mim, santo Deus?
— Coisa nenhuma, coisa nenhuma. Todos veem como a senhora marquesa trata consigo. Zus daqui, zus dali, está-lhe sempre a chamar minha filha. Olhe que é muita amizade, é amizade de mais para uma servente. Eu sei que isto enfurece os invejosos. Não faça caso, menina Luíza, não faça caso.
— Ah, não tenha medo, Ezequiel.
— E o menino Rui então, não falemos. Esse gosta, e gosta muito. Até cartas lhe manda. Não se faça encarniçada, menina Luíza.
— O disparate!
— Já cá sabemos tudo; pois então!
— Credo! Santo Nome! São cartas que ele manda para a senhora.
— Para a senhora, sim, para a senhora mais nova. Eh! Eh! fazia ele batendo as palmas, num tom maligno de avô condescendente. Essa cama que fique bem fofa, essa campainha que fique bem perto. Rapaziada, rapaziada!
Ouvindo estas coisas, Luíza abandonava-se, perdia a cabeça. E do coração subiam-lhe à boca ondas de confidências, gritos da alma, brutais franquezas de rebelde. A intensidade do seu sonho interior era tão forte, tão sobre-excitado o delírio da sua imaginação, que para seguir-lhe a trajetória, Luíza comprometia-se mentindo, gabando-se de cenas imaginárias, sem quase perceber que se caluniava. Não, Rui não lhe escrevia. Não, Rui não gostava dela. Mas Luíza, Luíza morria por tê-lo ao pé de si. Esses dias eram uma doidice, e Luíza não dormia, Luíza não comia, Luíza não dava atenção à leitura, Luíza estava distraída à missa da senhora marquesa. A cada instante, omissões no serviço, pequenos confortos descurados nos aposentos, portas abertas deitando correntes de ar, stores erguidos nas janelas, que endoloriam os olhos da enferma, apenas familiarizados com as penumbras cinzentas do seu canto de oratório.
Então a fidalga impacientava-se: as impaciências traziam-lhe o nervoso. Era um horror. Para pousar os dedos no braço de Luíza, abrir o livro de rezas, dar uma dentada num bolo, a pobre criatura estava minutos em sobressaltos coléricos, debatendo-se contorcida, sentando-se e erguendo-se apenas se sentava, lançando da boca palavras impróprias, repetindo certos advérbios no meio das frases: e amargurada, presa de terror, por ter a consciência de não estar falando bem.
Raro, raro, o senhor marquês que residia em Lisboa, na roda dos alegres viveurs de então, se aventurava até àquele deserto da quinta, calado, religioso, e com uma expressão claustral de austeridade. Nessas poucas visitas, sua excelência não vinha por certo estancar saudades de sua mulher, senão solicitar da pobre dama, mais uma vez, assinatura para alguma hipoteca que o autorizasse a prosseguir na sua vida libertina de velho rapaz. Chegava então pela noite, em caminho de ferro, estava até ao outro dia, e na madrugada seguinte, zut! ele aí vai. As palavras que os dois esposos trocavam, eram uma simples fórmula de deferência imposta pelo orgulho às cogitações chocarreiras da criadagem, em que ela buscava mostrar o desdém que nutria pelo esposo, e o esposo parecia artificializar ainda mais, a sua amabilidade correta de marido desencantado. Na primavera contudo, a visita do marquês prolongava-se de alguns dias, como era o tempo das caçadas. Trazia então quatro ou cinco velhos amigos, alguns criados, e as matilhas de galgos requeridas para a diversão. A marquesa recluía-se mais, se é possível, no seu ângulo de Palácio, pretextando que a luz lhe encadeava a vista, que o ruído lhe exasperava a migraine, e o aspecto da alegria dos outros mais fazia contrastar a sua mortal e esmaecida tristeza de antiga moribunda. E os caçadores ficavam sós, livres inteiramente para deixar correr sem respeito, naquelas duas ou três semanas de campo, uma impetuosa existência de barões feudais, acesa nas risadas do bom vinho das cavas, nas correrias em pós das raposas e lebres, e castigando-se à noite, finda a ceia, Deus sabe, entre os braços das mulheres que Ezequiel recrutava discretamente pelo burgo, na grande sala de lambeis gobelinos, com mobílias marchetadas de quatro séculos. Todas as manhãs, Ezequiel ia aos aposentos da senhora marquesa deixar galantemente um ramalhete da parte de seu amo, que à volta da caça lhe mandava em plateau também, a melhor peça da correria. Os fidalgos de há trinta anos eram ainda mais inúteis que os de hoje. A mordomos e intendentes abandonavam a gerência dos seus negócios interiores. Restos de altivez faziam-lhes encarar desprezivelmente o que eles chamavam classes subalternas. Isto contrastando nas suas horas lúcidas com a intimidade que a mor parte abria a fadistas e toureiros, nos momentos de vinhaça, por esses bordeis que ficaram célebres em cantigas do fado. Este marquês de Selmes foi como os outros, um perdulário espargindo fortuna e forças no rodilhão dos prazeres mais em voga ao tempo. Em Lisboa, dava talher a uma turba de literatos, graciosos e moços de curro, com quem ele gostava de mesclar os seus jantares de íntimos, por manter o ar de um grande senhor amigo das artes, requestado pela popularidade dos vários conventículos elegantes da capital. E na quinta, aquele mundo heterogêneo de parasitas representava-se um pouco, mais resumido, pelo critico Lagoaças, Alberto M., Marquês das Flores, grande pegador de bois, pai nobre Cesário, e festejado Matos, que fazia rir a sociedade referindo histórias da Lisboa duvidosa, no seu aranzel cômico de tatibitati. Naquela primavera, a surpresa do marquês fora Luíza, a grande Luíza que lhe surgia de repente uma senhora, e cujas infantilidades o velho galante distraidamente afagara até aí. Lagoaças, que era forte apreciador de frutos no cedo, foi o primeiro a chamar-lhe a atenção para a deliciosa frescura daquela maçã proibida, que prometia com os seus acres sucos perfumar a boca de quem lhe cravasse os dentes primeiro. Foi então um movimento geral de galantaria no grupo dos caçadores, sobre Luíza. Com a sua nonchalance habitual, o marquês dava carta de corso aos amigos, admitindo-lhes correr Palácio a qualquer hora, em pós da famosa presa, se tudo fosse discretamente acontecido. Quem mais lesto e galanteador se antolhasse, mais esperanças poderia nutrir de sucesso. Alberto M. começou uma elegia.
Deliciosa aranha delicada,
E com penugens de ouro revestida:
Ligeira, doce, cetinosa e leve...
Tens a peçonha lúbrica metida,
Na carícia das patas cor de neve.
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Marquês das Flores era outro gênero: confiava na mocidade viril dos seus braços, e nas casacas vermelhas de caçador com que aparecia todas as manhãs no grande pátio da casa, soado o primeiro halali nas trompas dos monteiros. E a batalha começou, estando Ezequiel empenhado em fazer triunfar o marquês.
Uma manhã fazia Luíza o ménage dos pássaros, sobre o terraço, Ezequiel que chega de acaso. Bons dias de um lado, bons dias do outro, e começou uma conversa de introito, ao fim da qual, sem se saber como, Ezequiel já falava nas graças de seu amo, ideal dos fidalgos generosos, nata dos amigos cômodos, e non plus ultra dos amantes discretos. Não é verdade, menina Luíza, não é verdade? Ui! que gorjetas ele lhe dava! Pares de calças que lhe abandonara, novinhos em folha! E a sua maneira de tratar então, como de igual para igual!
— Boa pessoa, fez matinalmente a rapariga, é muito boa pessoa.
— Uma coisa não sabe a menina. Ele está doido por si.
— Ai! o tramouco do velho...
— Diz que a há de fazer muito feliz.
— Brr! Pois quem somos nós?
— Tanto que me encarregou...
— Você alcovita agora, Ezequiel?
— Desejaria vê-la amparada, menina Luíza. Conheci-a pequena nesta casa, vi-a medrar e fazer-se mulher, e gosto de si como os avôs das netinhas tagarelas. Daí, não promete grandes dilatamentos a vida da nossa ama: cedo, tarde, quando menos cuide, aí vai ela caminho dos anjos. E falando claro: a situação que ela lhe fez nesta casa, é uma coisa postiça que lá fora a menina não poderá continuar sem uma proteção. Quer que mudemos de conversa?
— Posso, Ezequiel, isso posso. Não digo a servir, mas escolhendo rapaz com quem me case.
— Da aldeia, da quinta... Que criação é a desses homens? Afeitos ao trabalho das terras, querem mulher da sua condição, que sache, que monde, que moureje, e vista de estamenha, e tenha rijeza p'ra lhes parir um crianço, em todas as páscoas de Deus. Além disso, duas naturezas desiguais na educação — marido ciumento da mulher que não merece — mulher desprezando o marido que a não soube cativar. Daí zangas, ralhos, maus tratos, que sei eu? Ao passo que sendo rica, poderia encontrar um moço de estimação que lhe fizesse a vida doirada, numa casa cheinha como um ovo.
— Mas rica, rica... Você conhece a minha gente. Morrem todos de fome, lá por casa. Se me não comem os olhos, é que não podem tirar-mos sem que eu dê por isso. Ser rica, de que modo, por que processo? Diga.
— Eu a bem dizer, não tenho plano. Ideias vagas, muito de alto, que se não podem assim contar a uma rapariga nova e com princípios diversos dos meus. Ideias de velho que viu mundo e sabe chamar os bois pelo seu nome. Olhe. Quando eu era rapaz tive uma patroa viúva, entradota, mais que medonha — inda esbraseada por noivar, pobre senhora! — que uma noite me beliscou o assento, de passagem por um corredor às escuras. Eu não quis: gostava muito mais da cozinheira: opiniões de galucho, menina Luíza! Fui p'ra rua como era de justiça. Quatro anos depois estava o cocheiro nomeado visconde do apelido da minha antiga adoradora. Perdidinha por mim, menina Luíza, perdidinha. Carago! E eu tão bruto que não quis! Se lhe ponho as calças em cima, andava agora de sege por essas capitais.
— Falando claro, o teu sermão quer dizer: amiga-te com o senhor marquês, rapariga. Não é isto? Por sua morte, talvez sejas rica; em vida dele por força hás de ser feliz.
Ezequiel não retrucou, mas pôs-se a contar histórias de raptos, vergonhosos amores, coisas cínicas e patuscas, sem aparente coligação de sentido. A voz fizera-se-lhe surda, de uma firmeza espaçada que lhe espargia na face aspectos graves de pregador e de magistrado. E recapitulou da prédica, pitadeando, que a vida era um quotidiano mercado onde a gente adquiria o que por acaso tivesse de sobre-excelente. Manoel Antônio Ferro, saíra da aldeia com ele, Ezequiel, em 40, com três pintos no bolso, e o saquito da roupa branca. Entrado marçano numa loja do Porto, roubou o dono: primeira façanha, vá vendo... Foi ao Brasil mercandejar nos escravos, volta milionário. Chegado a Lisboa num estadão de príncipe, recomendado até aos olhos, nenhuma casa se abriu para o receber. Trazia na consciência duas mortes, ao que se contava, e uns poucos de processos por contrabando e moeda falsa. O homem não se ralou muito com a recepção dos patrícios. Fez tranquilamente um Palácio na Junqueira, talhou jardins, comprou herdades, derribou azinheiras, plantou vinha, fez eleições: e um belo dia, quando já entrava a ser necessário, deu doze contos para escolas, reclamando farda de moço fidalgo, pelos Ferros de Santo Tirso, que eram ladrões de estrada e sapateiros. Toda a gente entrou a chamar-lhe venerando, desde os doze contos. Hoje, ninguém funda um banco sem o nomear diretor, e não se inaugura uma escola sem ele lá ir botar discurso, com os seus ares de pai-avô. Está par, está conde; e se ainda não põe na cabeça a coroa real, é que já tem uma de cornos, mimo da mulher, a sogra deste Marquês das Flores que aí está de visita. A duquesa de Montes, menina Luíza, hoje velha, e tão virtuosa senhora, que manda rosários da Terra Santa a nossa ama... era uma dançarina do primeiro café-concerto que se fundou em Lisboa, cheia de moléstias. Depois da dança, vinha p'ras mesas embebedar-se com genebra, sentada no colo de quem lhe desse dois pintos. Eh! Eh! Tudo se vende e se compra: caras jeitosas, virgindades velhas e novas, família, pátria, salvação, condecorações, reputações, sapatos de ourelo e garrafas de vinho. Quer um bom camarote no reino dos céus, menina Luíza? Dê quatro contos ao papa: manda-lhe a chave na volta do correio. Faz-se de cores? Ora adeus! Não digo que seja dos Evangelhos, esta doutrina. Mas é o resumo de cinquenta anos de trambolhões e misérias. Seja-me rica! A primeira felicidade é ter que vender. Mas a única, a verdadeira, é poder comprar.
— Ezequiel, você tem a alma ruim.
— Por lhe confessar que só os imbecis se portam bem? Por lhe dizer que este mundo é dos descarados? Ai, se eu tivesse podido convencer-me destas coisas na sua idade! Não traria agora senão a libré de mim próprio, e o mundo havia de fazer o que me viesse à cabeça. Faça o que quiser, menina Luíza. Mas esta fábula é clara como água. O senhor marquês gosta de si. Qualquer dia a senhora marquesa, trrr... foi-se. Que há de fazer a Luizinha? Estará resolvida a dar-se por mulher ao primeiro labrego que venha? Mas criatura! Voltar para os casebres da sua madrasta, de onde fugiu a honra com medo aos piolhos? Brada aos céus! Viver pura como a luz, uma vida escura como a noite? Olha a tolice! Despir trajos de senhora, deixar este Palácio e os confortos da vida farta, a que se afez desde pequena?... Bau! Bau! não tem coragem. Isso sim! Vá, tane as mãozinhas em trabalhos que humilham e não salvam da pobreza e da fome. Hum! Hum! menina Luíza. Esses olhos não mentem no que deixam adivinhar. Venda, venda! O senhor marquês gosta de si.
As lágrimas saltavam já dos olhos de Luíza.
— É mais fácil morrer, disse ela.
— Pois minha rica, não será rondando o Rui noite e dia, mais de noite que de dia, que a menina há de ir à cova de capela e palmito. Gostar do filho, tem todos os inconvenientes de gostar do pai, menos as vantagens. Esse pequeno é um cabeça louca; pode fazer apetite ao femeaço — o que não faz com certeza é uma bizarria que a deixe independente a si. Porque não pode! Porque não tem! Daí, tarefa inútil persegui-lo. O fedelho por ora não larga os amiguinhos do colégio. A menina não tem fortuna, parece-me ambiciosa... Venda. O seu gênero está na alta. Dezoito anos. Uma lindeza! Venda. Boca de morango, voz de serafim... Venda, venda. O senhor marquês gosta de si.
Era o tempo das florações e dos ninhos. Divinas juventudes explodiam de amor nas seivas da terra, na luz e nos perfumes do ar. O céu doce, todo o campo uma destilaria de essências: lá baixo, na aldeia, as romarias começavam, e os casamentos também. Luíza guardava silêncio, com os olhos longe, vendo subir a manhã pelo cantar dos pássaros. Comprar e vender. Vender e comprar. Uma carinha bonita, um corpinho perfeito. O senhor marquês gosta de si. — E Luíza chorou todo o santo dia.
Nessa cabeça de fogo entretanto, surgia cada vez mais fascinadora, a imagem de Rui, toda abrasada de estranhos prestígios: e diante dela ardendo sempre o lampadário de um culto cego e inexorável. Com o pequeno tinham vindo à quinta passar as férias da Páscoa, três ou quatro dos seus companheiros mais íntimos — Palhalvo, já gordo aos quinze anos, cujas bochechas tinham o jeito de estarem soprando uma desconforme trombeta, à semelhança desses anjos papudos que fazem apoteose ao cálix místico, nos frontões das capelas-mores — Matoso, filho de um criado velho, que a senhora marquesa destinava ao sacerdócio, e dominava o grupo com os seus modos severos de preceptor — Jorge Forjaz, primo de Albertina, era o literato, e recitava Rodrigues Cordeiro e Palmeirim nos banhos da Nazaré e Praia da Vieira — enfim Biscaia, espécie de aranhiço adunco, cor de feno, sempre tossindo, era um enjeitado que o marquês recolhera e mandara ensinar, e cuja maldade e azedume transpareciam já nos seus dichotes de gaiato. Esta ronda de meninos bonitos, uns mais precoces do que outros, alvoroçava o Palácio logo ao romper da manhã, extravasando nos pátios em exercícios de força e ginástica, furtando beijos às moças por onde quer que as topasse, partindo numa algazarra, em carretas de lavoura, para as searas onde mondassem raparigas, ou organizando correrias, de onde os cavalos voltavam desferrados e cobertos de espuma. Pode-se calcular o que estes diabos acrescentavam de desordem à volta dos festins do marquês: exceto Rui, que ia ao almoço e jantar fazer companhia a sua mãe. Era a única imposição também da boa senhora, ter o filho em toilete, defronte de si, nas refeições. E isto enchia de importância o pequeno, todo esforçado em infiltrar na melancolia austera da enferma, um raio da sua graça juvenil. Mesmo, o seu respeito por ela, timbrava em mimos, pieguices, ternuras, pequenas dedicações que a velha dama absorvia sem transluzir na face exangue emoção de espécie alguma.
Desde que Rui chegara à quinta, a marquesa dispensava Luíza de lhe ler as orações e velhos livros de pastorais, vilancicos ou novenas aos santos patronos mais diletos. Era então Rui o encarregado de lhe percorrer as passagens estimadas. Ele a tudo se prestava, com um tocante respeito de pajem amoroso, tentando seguir nos olhos dela o grau de satisfação que promovia, e evitando as crises com uma ligeireza da alma adorável e compadecida. Imóvel por traz da cadeira da marquesa, Luíza servia-os, interpondo a enferma como medianeira inocente, no jogo galante em que ela buscava encasular a adolescência do rapaz. Alguma vez este lhe dirigia a palavra, a buscar apoio numa asserção, a preferir o conselho de Luíza no tocante a qualquer pormenor de solicitude para com a mãe. E a alegria da pobre criatura, quando ele erguia aos olhos dela, os seus olhos picados de centelhas leais! Nessa alma de colegial, toda escrupulosa no froufrou da sua alvinitente plumagem, parece, nenhuma ideia de mulher passara ainda. E Luíza interrogava-se, sofreava-se, confusa, estonteada, aterrada das suas audácias, e sem coragem de revolver com a sombra de uma coqueterie, o lago azul daquela pureza celeste.
Uma manhã, cedo ainda, Luíza ia acordar Rui para um almoço na horta, antes da caçada, quando se deteve à porta do quarto, sentindo rir e cochichar por entre as cortinas do leito. Talvez que Palhalvo, madrugador, a tivesse antecedido. Uma avidez de saber espicaçava-a entretanto. Pé ante pé, esgueirou-se por entre os batentes da porta, franzindo pouco o reposteiro, para se ir acocorar, sutilosa, por traz do grande biombo de couro que resguardava a entrada. Era um diálogo abafado, de um tom unido, e com palavras expirantes que às vezes se perdiam entre murmúrios de suspiros e beijos. Luíza avançou traiçoeiramente a cabecita de víbora para fora do esconderijo. E os seus olhos estavam como uma interrogação rancorosa, através das fantásticas elegâncias dessa câmara, que nos seus mais pequenos detalhes evocava em estátua a organização desconexa, fruste, misteriosa, desigual, que lá vivia. Bem podia a estranheza da instalação ser tomada em amostra de faculdades singulares. Daquelas formas erráticas e sinfônicas de cores amortecidas, via Luíza exalar-se, sob um dia novo, a alma exótica a que elas serviam de invólucro. As paredes eram forradas de veludo sombrio, já desbotado nos sítios do sol, e com pinturinhas vaporosas de figuras e flores. Sombrios tapetes, quase uma relva, amorteciam a bulha dos passos, até aos degraus do imenso leito toucado de escuro, à laia de eça, e com cercaduras à moda das da armação mural. Uma quantidade de móveis singulares: credências de ébano sobre ligeiros pés, trabalhadas como uma renda preciosa de volutas, entre ferrarias de prata batida a martelo; nudezas de estátuas aos cantos, brancas de insônia no rasgo genial das suas atitudes, servindo de cabide a chapéus de mil formatos: grandes jarrões sobre cubos esculpidos, em cujas arestas notiluziam douradas vagas de pregos: e mesas carregadas de estatuetas, marfins, velhas miniaturas, bocetas escultadas: espelhos de metal, tenebrosos, por cima dos canapés, fazendo surgir da sua água verde, esquálidos fantasmas de enforcados: roupões de grandes desenhos na espalda dos tamboretes: e defronte do leito, um enorme divã com os coxins em desordem, alguns atirados, e livros por cima, cujas folhas os galgos iam passando entre as patas, por distrair-se, nos intervalos da soneca. De cada um desses pormenores, um braço saía e apontava um capricho, escaninhos velados de religião instintiva, qualquer coisa de cavalheiroso em que palpitava uma raça, ou se iam espreguiçando as passivas molezas da anemia hereditária. Lentamente, os olhos de Luíza afizeram-se a divagar por toda aquela confusa penumbra. Pela direita, acima do genuflexório, numa espécie de trítico negro, havia um quadro: era estranho: duas mãos brotavam da carbonosa noite do fundo, implorativas, mãos de asceta devorado pela tentação: uma cabeça fúnebre movia-se nas sombras de um capuz, insistindo em afirmar o quer que fosse de aspérrimo — se a lâmpada gótica de três bicos, caída do teto, oscilava, no tom mortiço que as luzes têm de dia, mesmo às escuras. Aquilo parecia um templo, sob a agonia terrível da lâmpada. Mas já lambendo o muro, o clarão dela fazia valer troféus de armas, radiando de estapafúrdias panóplias: a mitra de um bispo, cravejada de joias, um parasol de couro arrancado às escavações de um templo romano, em Évora, peitorais de uma antiga cota sarracena... E dir-se-ia uma sala de armas então. Porém do outro lado, a luz ia aclarar perto do leito, um perfumador de cobre sobre tripé de bronze. Luíza reparou. Ligeiros fumos fugiam à tona da caçoila, espojando aromas de flores de Takeoka, bolas de stirax, couro da Rússia, jasmins... E santo Deus! a narina farejava lupanar. De quando em quando, as cortinas do leito mexiam, e pelo ar respirado da peça, aqueles perfumes tórpidos erravam, nessa calentura das alcovas habitadas pela reminiscência de muitos amores sobrepostos. Luíza sentia-se desfalecer, à ideia de outra mulher antes dela, ter cativado o estudante. Mas que mulher? dizia a camareira emparvoecida. O nome dela? O feitio dela? Dentro do Palácio, por mais que procurasse, não descobria uma rival. Sua irmã não era bela: e fatigada, arrastando saias de barra imunda... Na cozinha, as criadas, todas feias de perder os sentidos. Alguma criatura de fora? Isso é que não! De noite, Luíza rondava os corredores: a galeria que abraçava exteriormente o quarto de Rui, era Luíza que lhe fechava a grade de ferro, aberta sobre os jardins. E irresoluta, tinha um suor na raiz dos cabelos. Aquele sonso! Aquele vil! — A sua primeira gana tinha sido correr ao leito, afastar as cortinas, ir contar tudo à senhora. Mas um terror apoderara-se dos seus membros. Que medonha noite na sua alma, que singular e pérfida violação do seu destino, quando ela visse com os seus olhos, palpasse com os seus dedos, o que já alcunhava de traição a uma fé que ninguém lhe havia ainda jurado! E lá dentro, naquele infame ninho de volúpias, sempre o murmúrio de beijos e suspiros. Urgia entanto chamá-lo para o almoço. Já no pátio havia rumores de vozes e relinchos de cavalos. Luíza saiu pé ante pé, para entrar outra vez com grande ruído de portas atiradas. Mas ainda ela não transpunha a área de resguardo marcada pelo biombo, Rui saiu do leito com ímpeto, muito pálido, vestido apenas de uma camisa de seda: e vindo a ela, volubilmente, abraçou-a a plenos braços, deu-lhe um beijo furioso na boca, e de rodilhão pô-la fora, fechando a porta sem mais explicações. Foi naquele idílio triste a única impressão feliz que ela sentira: e todo o dia, toda a noite, lhe sabia a boca àquele beijo de rapaz que lhe entrara na carne pela fúria virulenta da língua.
Dali a pouco, os caçadores deixavam o pátio direito ao laranjal. Luíza chegou-se ao terraço a vê-los partir. Era o resto. Alberto M., empurrava para a porta Marquês das Flores, retardado em dizer madrigais à camareira. Festejado Matos ia bifurcado num burro, imóvel como um bonzo por baixo de um grande chapéu de esteira do Algarve, entre cabazes de provisões. Marquês de Selmes fora o último a transpor a porta. Reparando em Luíza, gentilmente:
— Tira a cabeça do sol, não adoeças.
E mandou-lhe um beijo nos dedos. Então ela alongou a vista para além dos muros do pátio, viu Rui pelo braço de Matoso, conversando a passos vagarosos.
— Menina Luíza.
Era Ezequiel com uma caixa de marroquim.
— Da parte do senhor marquês.
Luíza abriu o cofre, na ingênua expansão de Margarida ao atacar a ária das joias, na cena do jardim.
— Joias, joias! e houve no orgulho dela, um romper do sol vertiginoso.
— Para começo, é do melhor, dizia Ezequiel. E Luíza tocava num bracelete ao acaso, com safiras e pequenas pérolas d'água duvidosa. Havia mais um afogador, seu par de brincos, outra pulseira... E a sua boca sorria de pasmo, na sua cara enxovalhada de pejo.
— Vale quarenta libras, toda esta caganifância, quarenta. O homem faz limpamente os seus negócios, dizia Ezequiel. Eh! Eh! ponha lá as pulseiras, menina Luíza: — abriu uma. — Que lindeza! Meteu-lha no braço. É para ver como fica.
Luíza toda se arrepiava ao frio do metal na pele trigueira do seu punho. Lembravam-lhe aqueles beijos na câmara de Rui, pela manhã. E fechou o cofre de repente, dizendo a Ezequiel que o tornasse a levar ao marquês. Com certeza houvera engano. Ela não podia aceitar presentes daqueles.
Então com o gesto grave, Ezequiel:
— Nada, nada. Seu amo ficaria fulo, se visse as joias recambiadas.
Mas Luíza não o escutava, nem ouvia. De novo, o ciúme lhe fizera derivar a atenção por outra corrente.
Oh, a mulher que estava com ele! Não poder ela agarrá-la sem testemunhas! Não lhe poder tomar o nó da goela entre os polegares furiosos; e desagregar-lho, e esmagar-lho fazendo-lhe espalmar a língua para fora da boca, até à base toda sangrenta nas mordeduras da agonia! Via-o então aparecer dentre as cortinas — como ele vinha, lesto, branco, em sobressaltos! — na sua esguia camisa de seda, vermelha e longa, muito franzida à volta do pescoço, e toda ela moldando a estatura elançada de algum desses reizinhos louros das fantasmagorias poéticas de Shakespeare. E o beijo que lhe dera, tão sápido de delícias inéditas, boca a boca, Luíza tinha-o sempre no frêmito dos seus lábios, e guardava-lhe o perfume no hálito, como se o embalsamara uma pastilha de harém.
— Além de que, tenho fé que a menina vai daqui a pouco mudar de tenção. Olá se vai!
— Que está a rosnar, Ezequiel?
— Nada, nada. Aceitar, que quer dizer? É um presente: meu amo não pede nada por ele. Daí, seria a primeira vez... Eu cá recusei deitar-me com a viúva, que era barbosa e medonha, mas sempre lhe fui recebendo bom relógio de ouro. Gente pobre põe de banda orgulhos tolos. É meter na algibeira, menina Luíza. É de boa criação.
Luíza ficou cogitando. Joias tinha-as ela visto nos gavetões da marquesa, em grandes cofres de cetim desbotado: estilos modernos, velhos estilos, todos os metais, todos os esmaltes, pedras de todas as águas e de todas as cores. O mal da pedraria, que faz cúpida a mulher do alto luxo, Luíza não podia sofrê-lo ainda, no seu humilde papel de camareira. Vagamente ela entrevia a sedução daquelas faiscantes areias, que os romances aclamam como talismã de todas as concessões, sem todavia desconfiar que atmosfera mordente põem de roda à beleza, as fulgurantes pedras lapidadas. Ir contar tudo à senhora marquesa? Boa ideia. Luíza foi aos aposentos da enferma. Aí lhe daria o ataque de nervos, desarmonia na casa, e talvez para ela o olho da rua... Muito embora! Entrou. Mas logo ao entrar ouviu tossir. A velha passara mal durante a noite, vômitos secos, uma ponta de febre, e a manhã passou-se nisto. A marquesa não tinha querido erguer-se da cama, e ouviu missa mesmo deitada, pela porta entreaberta do oratório. A cada momento, Luíza tinha que voltá-la, trazer-lhe um livro, executar uma ordem, aconchegar uma cortina, ver o tempo. E só pelo meio dia pôde tirar um bocado para se ir vestir. O quarto dela era junto aos aposentos da senhora, com uma porta sobre o grande corredor que levava aos quartos de Rui, não longe dos quais demorava Ezequiel. E Luíza começou um toilete minucioso e cuidado. Ao canto fumegava o banho, em que ela entornara meio frasco d'água florida. E sobre a cômoda, o cofre aberto, deixava ver os presentes do marquês. Das gavetas sacou Luíza a roupa que precisava: uma camisa de abertos, bem fina e trabalhada por ela, saias brancas — era um domingo — e de uma gaveta pequena, o retrato de Rui que pôs à vista, sobre o pequeno móvel de cabeceira. Já uma a uma, as saias dela iam caindo, diante do espelho, com a friorenta graça, um pouco crispada, de um faisão que se banha no regato, ruflando as plumas, depois de haver bebido. E ainda apoiando ao seio a camisa, que despira, espremeu do alto, vagarosamente, sobre a tina, a esponja ensopada em água tépida. Desnastrara os seus cabelos, que eram grandes, espiralados, bem fartos, reluzentes e negros, torcendo-os após sobre a nuca, num grande molho de serpentes, como nas estátuas clássicas, os cabelos da Vênus afrodite. Espiralitas doidas, carrapitos finos, muitos frisados, soltavam-se-lhe do turbilhão de cabelos, por brinquedo, cocegando-a na pele doirada do pescoço. Enfim a camisa caiu; e era assim adorável de nudez, triunfante de mocidade, cheia de revelações e surpresas virginais. Quase morena, a sua pele vestia uma carne rija, simétrica, cantando sonatas pérfidas de volúpia, em que ressoavam estribilhos de dentadas, gritos histéricos, espasmos e soluços de insaciável pecado. Mesmo, à volta da banheira, diríeis que as coisas abriam pálpebras, e por entre as pálpebras, olhos que a fitavam, furiosos de deboche, gritando infâmias por centenas de bocas invisíveis. Ui! como a sua divina garganta, rapazes, parece cristalizar em belezas inéditas, toda a luxúria em que as gerações têm urrado, sedentas da forma, há tantos séculos! Que bazar de tentações delirantes era o seu peito, que duas pétalas de rosa maculam, tão altas, tão iguais, tão eréteis, que antes pareciam beicitos de criança, estendidos num momo cândido para aceitarem o beijo de um velho amigo da casa. — E mergulhou, espanejada, dilatada de prazer, cantarolando baixo uma cantiga. A espaços chapinhava a água, imergia, tornava a cair, amolecida num desejo, sonhando noites de núpcias com ele, sobre o leito de cortinas sombrias, onde as suas respirações se estrangulassem entre um murmúrio de beijos e suspiros. O retrato de Rui nem a fitava, receando a perscrutação impreterível dos seus olhos, e o jugo daqueles braços, absorvente e pantanoso.
Uma hora no relógio do corredor.
Ainda agora Luíza não sabe explicar, como é que tendo jurado a si mesma, recambiaria o estojo ao marquês, se encontrou no fim do banho em frente ao espelho, nua como Cípris na areia de Cítera, ensaiando o efeito do afogador e dos braceletes, na pele rosada ainda dos atritos da esponja. À medida que ia fixando sobre o espelho, tantos e tantos detalhes de perder a cabeça, passava no clarão dos seus olhos o mudo êxtase de si própria, e a coriscação do ouro novo, nas flocosidades brunas da garganta e dos ombros. E consigo mesmo acabou por achar razão a Ezequiel. Por fim de contas, aceitar que quer dizer? É um presente. O senhor marquês não pede nada em demasia da oferta. Virava a cabeça para ver o luzeiro dos brincos, ajeitava o colar, punha as pulseiras... Deliciosa, fascinadora, apetecível! Se Rui pudesse vê-la a plena luz, assim despida, e sem a hipocrisia do mais ligeiro véu, talvez que ele sustasse de vez tantas repulsas — aí, talvez! — e viesse cair-lhe aos pés absorvido na sua beleza imortal. Oh, como da esbelteza nervosa dos dois corpos, ventre a ventre, se evolaria o poema de misteriosas carícias nesse instante, rimado a beijos, lábio a lábio; esse divino poema, através de cujas estâncias rola a batalha do gozo, e do cálice de cujas imagens goteja a tripla-essência das mais celestes devassidões! Duas vezes ou três desenrolara a camisa, esfregando-a da goma entre as mãos sobressaltadas: e ainda por fim se adorava no espelho adulador, furiosa por dar-se, num paroxismo que ia até ao deslumbramento. De repente pareceu-lhe ouvir rumor no quarto próximo. Enfiou a camisa à pressa, atarantada; pé ante pé foi indo de mansinho até à porta, receosa, de ouvido à escuta ocultando a nudez por traz dos reposteiros. Não se enganara. Estava entreaberta a porta do corredor. Então lançou um xale pelos ombros, enfiou as chinelas à pressa, sem se atrever a perguntar quem andava lá. Mas deu um grito de susto, vendo Ezequiel diante dela, lívido de morte, trêmulo e babado como um sátiro decrépito.
Luíza apenas tivera tempo de acocorar-se a um canto da peça, buscando encobrir-se toda no xale, pálida de vergonha e gritando ao malandro que se fosse.
Porém este, apoplético, nem falar podia, fulminado por aquela visão de mulher nua, e com o cuspo a espessar-se em grossos fios nos cantos da boca.
— Aquele ruivo, menina Luíza, tartamudeou ele por fim, rolando os olhos,— o que faz versos... Entregou-me este papel para vossemecê.
— Bem, bem, vá-se embora. Ande! Não há maior atrevimento.
— Ouve, Luizinha, rica filha, eu já me vou. É uma coisa que eu trago aqui guardada. Desde que te vi. E tão nuazinha, tão boa, Jesus do céu!
— Daqui p'ra fora! Já! Ou chamo gente.
— Os outros querem-te por uma vez, pai, filho, moços e velhos, anda tudo atrás de ti. É uma canalha, já t'o disse, é uma canalha. Até me propuseram que te amordaçasse, uma noite, p'ra se refocilarem contigo, aqueles ladrões.
A sua voz rastejava, o seu aspecto era terrível.
— Pelo amor de Deus! suplicou ele. Ouve-me ainda. — Estou quase rico. Estou velho. Oh, chega-te a mim! Podemos casar. Amanhã. Hoje mesmo. Filhinha! Que és bonita de ofender a Deus no céu.
Estendia os braços para cingi-la, com a língua seca na boca, e alongando os beiços lívidos contra os claros de nudez que lobrigava.
— Anda comigo. Sairás desta espelunca. Só em Lisboa, tenho doze contos no banco, à minha ordem. Pratas, inscrições arrecadadas ao canto do meu baú. Ouve, Luíza! Tu matas-me, diabo! tu estás deitando a minha alma no inferno. Um beijo só nessas carninhas. Deixa dar. Que mal te faz?
E vergado à tremura senil dos debochados, Ezequiel cambaleava, crispava-se, indo para ela de rastros, assim como um cão leproso conquistando a côdea que lhe negam, sob golfões de chicotadas.
— Não tenho herdeiros. Um pobre velho! De hoje pra amanhã posso morrer. Lembras-te do que te tenho dito? Os conselhos, os mimos... tristezas que eu sofro por causa de ti. Eh! Eh! Está decidido que aceitarás.
Então conseguiu agarrar-lhe um braço, o que desligou Luíza das algemas nervosas que a sustinham, estarrecida, perante o sapo de cujo visco escorria tanta lascívia torva de impotente. Houve uma luta. Os cabelos de Luíza rolaram.
— Larga-me, ladrão! dizia ela num choro baixo, rápido, soluçando em convulsões. Contigo, nem morta, estupor! Doura-te, a ver se eu te não cuspo nessa cara. A tua vida, todos a conhecem. Devias andar na costa da África, amarrado com cadeias a algum canzarrão da tua parecença. Larga-me, larga-me, quando não dou cabo de ti!
Ele porém, retendo-a, sem violência ainda:
— Tu deves lembrar-te, Luizinha, do bem que eu te tenho feito. Os teus desejos, ando a adivinhá-los. O teu nome é-me sagrado em toda a parte. Pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus!
— Rua daqui! De quem eu gosto é do menino. Eu hei de ser dele por força. Inda que eu haja de entrar na vida depois.
Os dentes do velho rangeram. Chorava, ria, esse homem, cobrindo o peito de baba; era assombroso de vexame! Luíza conseguira libertar uma das mãos; e pregou-lhe nas ventas uma bofetada medonha. Àquela afronta, Ezequiel perdeu a cabeça. As obscenidades golfaram-lhe da boca, como granizos espessos, pintando toda a decrépita infâmia da sua alma. Ela estava de pé junto da porta, quase nua, sem se importar. Tinha no colo e nas orelhas as joias que lhe mandara o marquês. O velho viu-as.
— Eh! Eh! Sempre aceitaste o cofre de meu amo. Já lhe posso ir contar que o mais difícil trabalho está vencido. É melhor ser amásia de fidalgo que mulher de criado de servir. Inda tu procedeste com brio. Há marafonas honradas! Podias ter escolhido as duas profissões ao mesmo tempo. Ela ria-lhe na cara. E o miserável, volvida a crise, apresentou-lhe as últimas concessões. Ajoelhara. E jurou-lhe consentiria o adultério. Dava-lhe as suas riquezas por uma noite só de intimidade. Casada com ele — ao dia seguinte, podia partir com dinheiro dos seus cinquenta anos de escravidões e economias.
Luíza não retrucou: agarrara um papel de cima da cama.
Deliciosa aranha delicada...
Mas casualmente, erguendo os olhos, viu na bandeira da porta três cabeças gravemente assestadas à vidraça, gozando a comédia com a paz da alma de bons espectadores das galerias. Marquês das Flores tinha um grande binóculo com que a mirava. O poeta estava em êxtase. Do festejado Matos mal se via a careca luzente, como era mais pequeno, e uma ponta do nariz guloso que vinha adejar contra os vidros, como um focinho de morcego encandeado contra a luz de uma fogueira. 
Perto da quinta, sobre um outeiro coberto de cevada verde, do outro lado da aldeia, houvera de tarde uma festarola de ermida. Todas as criadas tiveram licença para ir até lá, depois do jantar, exceto Luíza que estava de serviço à marquesa, e Ezequiel que, já velho, quisera ficar junto de seu amo. Dos terrados do Palácio via-se, já noite, a foguetaria estrondeando no adro, e clarões de fogueiras lambendo as saias das moças na sarabanda dos bailaricos. De quando em quando, uma labareda mais clara desenhava no azul profundo a branca fachada da igreja, de onde saía um campanário em agulha, cujas sinetas desde a manhã tagarelavam festivamente. Extintos os rumores das oficinas, no andar térreo, silenciosas as cocheiras e mais dependências da casa, toda a enorme residência dir-se-ia acachapada numa sonolência lúgubre, entre a confusão dos arvoredos. Apenas nos quartos da fidalga cochichavam três ou quatro velhas damas das quintas perto, que tinham vindo de visita, aproveitando a aberta do dia santo; e na casa de jantar, logo depois do café, o jogo começara entre os convidados do marquês.
Sozinha no terraço, Luíza seguia a curva dos foguetes no céu primaveril, esmagada pela espantosa cena com Ezequiel. Queixar-se... ela tinha pensado em queixar-se. Mas Ezequiel contaria a cena do afogador e das pulseiras, a sua loucura pelo Rui, e todas as tagarelices que a pobre caíra em confiar-lhe. À tardinha, vencida de remorsos, ainda ela ousara ir com o estojo ao marquês, a recusar-lhe nitidamente aquelas oferendas que não merecia. Ele olhou-a com a bondade um pouco irônica que costumava ter.
— Meu padrinho, eu vinha...
— Ah, não me agradeças, pequena. Sei da companhia que fazes à senhora. É uma lembrança de minha parte. Nas raparigas bonitas é que essas coisas dizem bem. Vai.
E Luíza não tivera coragem de insistir.
Essa noite, Rui que passeava, fumando, ao longo da balaustrada, observou-lhe:
— Estás com pena de não ter ido ao arraial?
— Eu cá sim! respondeu ela. Olhe que há de ser por lá uma balburdia. Se lá estivesse, o que eu fazia era voltar.
— Ainda é tempo, se queres. Minha mãe dá-te licença.
— Ai, não. Gosto pouco de romarias.
— O que é que tens então? Pareces triste. Pareces doente.
— Eu não tenho nada, menino.
Ele fez mais duas vezes o comprimento da balaustrada, lentamente, fumando: e o seu passo não fazia ruído sobre o xadrez da plataforma.
— Só se te zangaste esta manhã... Foi brincadeira minha, não faças caso. — Mas Luíza sorriu-se: zangar, por quê?
— Eu sei! Podias não ter gostado.
— De um beijo? Ora! não vinha talvez p'ra mim.
Rui tossiu um pouco. De cada vez que ele dava costas, os olhos de Luíza seguiam-no. E a sua figura perdia-se no escuro, ficava um instante indecisa entre as sombras das árvores. Luíza aguardava então que ele voltasse, com êxtases de devota, e quando o lume do seu cigarro aparecia, ela retomava a sua postura de Manon batida.
— Já sei, que tem um namoro, disse ela em voz baixa, ao fim de um esforço.
Ele voltou-se. — Eu!
— Tem, tem.
Rui estava muito familiar.
— Pode ser. Na vizinhança há bonitas raparigas.
— Não, não, cá em casa.
E o pequeno rindo. — Então és tu.
— Ai, a mim ninguém faz festa. Acham-me feia.
— Ao contrário. Toda a gente anda por aí a fazer-te a corte. Eu percebo.
— Esses!... disse ela, fazendo olhinhos de gata sobre Rui. E encolheu desdenhosamente os ombros.
— Mas, enfim, quem namoro eu?
— Não disfarce. Quando entrava no seu quarto esta manhã, ouvi... — Já ele prosseguia no giro interrompido, como se entendera a indiscrição. Essa vez demorou-se mais. E ao topá-la, bruscamente:
— E tu que recebes presentes! Dizes que não.
— Ah, sabe.
— Esta manhã.
— à hora dos beijos... juntou Luíza para lhe meter ferro.
Ele tinha ficado nervoso. — Hein? presentezinhos...
— Quem mos deu explicou-me o motivo porque mos dava. A minha recusa seria prova de soberba, e tinha de passar por desagradecida aos olhos de meu padrinho.
— Quero dizer, eu não me importa...
— O tal Ezequiel que enxafurda os outros na calúnia, devia lembrar-se das muitas infâmias da sua vida. Olhe que se eu quisesse falar!
— Não. Isso cautela. É um criado velho, ele prudente, ele fiel... Enfim, agrada-me.
— Deus fará com que se desiluda, menino, quanto mais depressa melhor. Mas ao menos, devia ter-lhe contado tudo, o intrigante.
— E achas pouco? tornou ele em ar de mofa.
Luíza interdita, não sabia bem ao que ele se estava referindo. Ficaram calados.
Até que resoluta, um pouco trêmula, pondo-lhe as mãos sobre as mãos:
— Há uma pessoa só de quem eu gosto, disse ela.
— Cá em casa estão muitas. Provavelmente gostas de todas.
Ela dava grandes suspiros, aflita: e desatou num choro subitamente.
— Mas vamos! Que é isso? Porque choras tu?
— Não é nada, não é nada...
— Não, isso hás de dizer.
Ela deitou-se-lhe aos joelhos, e numa ansiedade:
— Oh não me deixe! Não me deixe! Se ele soubesse! Era tão desgraçada, tão maldita! Todos na casa queriam perdê-la; Ezequiel antes de todos, lhe infundia um pavor fúnebre e desgrenhado. Que mal fazia ela? Porque insistiam em lhe fazer sentir a sua falsa posição naquela casa?
— Mas cita os nomes, conta o que te fazem, insistia Rui por acalmá-la.
— Não sei, não sei, dizia a rapariga: e soluços bruscos abalavam-lhe o peito. Era uma angústia que a tomava, uma tristeza que lhe vinha sugar o coração. De noite acordava espavorida, com um novelo nas goelas, sem poder respirar. Tinha que dormir fechada à chave, por sentir passos de roda do seu quarto, sombras fugindo na curva dos corredores... Tudo lhe parecia hostil naquele Palácio agora... os olhares dos homens, as tagarelices das criadas, os próprios rumores indistintos de altas horas. — Ezequiel dissera que a havia de perder.
— Olha a mania! Ezequiel não passa de um pobre velho.
Ela quase o cingia pela cintura, estreitamente, fazendo-se pequenina, e como se quisesse abrigar-se no côncavo das suas axilas. Suplicava em voz surda, com a boca colada ao peito dele. Diríeis uma liana de martírio enlaçando a haste flexível de um cipó.
— Não, não, menino Rui. Luíza bem adivinhara os intentos daquele homem sinistro. Ele queria-a. E ousara dizer-lho com que palavras, sabe Deus! — E outros ainda. Marquês das Flores, que outro dia, ao encontrá-la no jardim... Finalmente Biscaia vinha arranhar-lhe à porta do quarto... O ruivo mandava-lhe poesias... Nas cozinhas, em ela entrando, todas as moças tossiam como se lhe soubessem de um podre. Até os da cocheira tinham ousado chalaças cruas, quando sucedia toparem-na de perto. E Luíza tremia, Luíza perdia a cabeça! — Uns por ciúmes da proteção que os senhores lhe dispensavam; outros por maus desejos que ela sempre tinha repelido; e todos buscando precipitá-la da simpatia de Rui e da marquesa. Oh, já não sabia como fugir àquela calcinante atmosfera de ódio e rancor.
— Casar, disse ele. É o que deves fazer. E o seu olhar evitava-a.
— Casar, ela! quem queria uma mulher sem fortuna, e com a educação mais alta que o nascimento? Os hábitos que contraíra naquela casa proibiam-lhe de se unir a um qualquer homem do campo que ela de resto não saberia amar sinceramente. Esses mesmos hábitos haviam comprometido a serenidade da sua consciência, e quem sabe se autorizado os desbragados propósitos dos que buscavam perdê-la? Mesmo, a sua razão tresvairava: era necessário um esforço desesperado para varrer da cabeça as loucuras que por lá corriam.
Loucuras, sim?
Ela não delirava. Casar com este ou com aquele, tudo era cair do sonho radioso a que se afizera primeiro. O homem que ela adorava, jamais poderia sem descer, tocar-lhe com os lábios na testa. E o seu futuro, ela bem no via, descendo numa espiral de angústias e desalentos. Em criancinha, quando o menino estava ausente, Luíza dir-se-ia no Palácio a filha única da marquesa, que todos acariciavam de passagem, buscando por ela captar a benevolência da fidalga. A felicidade era tão fácil de aprender! Assim se fora educando, como se a destinassem a algum homem de condição superior. Até a familiaridade de Rui, naquele tempo, lhe ajudara a fomentar a sua ilusão de grandeza. Agora Rui estava um homem-adeus encantamento! Luíza teria de voltar a ser uma guardadora de porcos.
Ele apadrinhou-a com um magnífico gesto fidalgo. Quase nem metade das suas palavras ouvira, porque havia um instante, surpreso, se escutava, sentindo-se invadir de um sentimento indefinível, delicioso, inquietante, que lhe ascendia no sangue, e o esbraseava no mais recôndito da sua carne, e lhe punha fervores pela nuca, até às fontes, como se fora um veneno. Aquilo espraiava-se nele em bruscas ondas: era uma sensação inexplicável de vaga delícia, sobressalto, receio, queimadura... Já trinta vezes quisera afastar Luíza, sacudir os filtros que vinham da sua provocadora beleza, retomar o seu belo ar de príncipe herdeiro, impassível aos arrulhos do serralho: e outras trinta sentira faltar-lhe a coragem. Entrou então a dizer-lhe consolações ao acaso. Ela estava por força na sentimentalidade efêmera de um mau momento, vendo cor de cinza por uma enublação instantânea da sua viveza de rapariga — nem admirava, com a doença da senhora marquesa... E senão, que queria dizer tudo o que lhe ouvira? Das suas palavras, não resaia uma só causa de sofrimento legítima. Era quase tudo pesadelo romântico, traindo a crise dos nervos convulsivados, hemorragia sem lançada, prelúdio de amor latente, que flutuava ainda sem escolha de ídolo. No fundo dessa avenida de projeções melancólicas, era evidente que a sombra de um homem adejava, mas sem fisionomia, sem cabeça... uma insurreição do feminino em cata de núpcias. As mulheres aos vinte anos vibravam todas naquela passageira crise do sexo reclamando o culto para que foi votado. O necessário agora era por uma cabeça sobre os ombros daquela translúcida aparição, dar-lhe face, dar-lhe caráter, dar-lhe nome... Finalmente, tornar o fantasma em homem! — E sorrindo: hei de procurar-te um noivo, deixa estar.
Luíza erguera a cabeça.
— Tu?
Surpreendido, ele encarou-a. Viu-lhe o perfil dealbado por um lampejo da sulfatara interior, e a lascívia da boca aspirando o hálito das suas benignas palavras.
— O meu noivo, balbuciava ela numa espécie de amoroso delírio, poetizado pelas cadências da voz debordando em melodias. Procura-o perto. Talvez te não responda, apesar dos meus suspiros que o chamam, noite e dia. É uma estranha criatura, esse noivo, bela como a aparição do Cristo a Santa Tereza, porém fria e fatal aos que se lhe aproximam. Só prostrada na terra eu ouso chegar-me a ele, como um réptil a uma corça branca dos bosques. Entre nós, eu bem conheço, há o boqueirão de uns poucos de séculos de cultura. Quero preencher com a minha beleza esse formidável precipício que me proíbe de o adorar. Ai de mim! Embalde os meus braços trêmulos se lhe estendem, e os meus olhos extáticos vão pousar-se, como pombas, no esplendor da sua beleza tão pura. Ele não quer ouvir os meus soluços, nem derramar nos meus cabelos a calorosa unção das suas carícias. É nobre, é altivo. O seu destino o preserva das minhas traiçoeiras ciladas. Todas as aflições da minha alma, todas as relutâncias da minha juventude, dias de esperança, noites de delírio, nostalgias a olhar do ângulo de um terraço o cotovelo da estrada por onde a sua carruagem se sumiu... tudo aí fica murcho e desfeito no caminho dos seus passos, sem que ele volte a cabeça para me ler no branco dos olhos a cruciantíssima dor que a sua pisadura fez verter. Anos e anos, esta cegueira lutou por cativar-lhe a misericórdia, sem reparar nas concessões infamantes que a minha alma ia fazendo aos desejos que a torturavam. Quis transfigurar primeiro o meu amor num celeste e casto poema, todo espiritual, todo íntimo; sutilizá-lo em dedicações, impor-lhe sacrifícios... devotar-me enfim à sua felicidade, calando o grito do meu coração que reclama sem partilha, essa criatura em que ele não pode pensar sem deslumbramentos. Protesto inútil! Filha de grosseiras gentes, puídas de miséria, e fazendo do vício desforço para amordaçar o desespero, estava escrito que eu havia de andar a rojo, como a serpente, tentando a claridade imortal da sua adolescência.
Luíza calou-se, arquejante. E os seus cabelos roçavam pela boca de Rui, mordicando-lhe a pele do queixo com uma titilação imperceptível.
— Enfim, a minha paixão chega a um limite e rebenta, prevendo o instante em que ele me vai fugir para não voltar. Oh não me abandones tu!
— Vem gente, tornava Rui num sobressalto.
A mesma loucura os tomava e fazia pulsar estreitamente unidos, assim como numa boca muda, um lábio a outro lábio.
— Não! É um minuto mais, dizia ela. Eu já não sei o que digo. A ideia de que outra mulher terá beijado a tua boca tira-me o sono, e o meu sangue tumultua e alucina-se desde que perdi a esperança de te cativar a um simples frêmito das minhas sobrancelhas. Eu não te peço um desses amorfos e dessorados amores que sob a umbela da igreja podem mostrar-se a toda gente, na atonia estúpida em que a lei amosenda as fioriture do coração. Tornei-me um animal de luxo, não é assim? cuja posse disputam em tua casa esses homens. Então escolho-te! Estou no meu direito. E como uma escrava, estatelo-me no chão que tu pisas, para que me esmagues a cabeça depois de me haveres cingido, uma vez só que seja.
Ela caíra-lhe aos pés, e beijava-lhos com a exaltação de uma louca e os frenesis de uma enfeitiçada. Naquele instante, Rui nem sequer teve um gesto para apanhá-la do chão. Fizera-se muito pálido. Os seus braços tinham caído. E um terrível sorriso zigzagueava na sua boca enigmática. Diríeis uma criança, que chegada ao fim de um belo conto, súbito se desencanta do entrecho, e passa adiante, sem lhe ligar mais atenção. Assim ele entrou nos quartos da marquesa, bruscamente, deixando-a prostrada nos primeiros degraus da escadaria.
Por conseguinte, Rui tinha-a recusado, depois de a ouvir monolugar como uma atriz fastidiosa. Interdita e buscando vencer o asco que de si mesma lhe vinha, Luíza escutava o furioso debater da sua vaidade sacudida na estriadura daquela humilhação. Saíram as visitas, voltaram da festa os criados, que pouco a pouco, ceia finda, iam desertando para os seus dormitórios. Luíza trouxe o caldo à marquesa, vazou-lhe o cálice de Madeira com a mesma solicitude maquinal, sem ter reparado na escarradeira cheia de sangue, na sonolência e na palidez da pobre dama. Renovou o azeite da lâmpada do oratório, desceu à cozinha onde sua irmã pela centésima vez insistia em lhe aconselhar o casamento com Ezequiel, como mastro de cocagne para a família inteira: e de joelhos, na capela, para as rezas da noite, por mais que fizesse, o seu espírito perdia-se em oceanos de mágoa: até que afogueada, estúpida de cismar no seu destino, veio ao terraço banhar a cabeça nas brisas da noite.
Os últimos romeiros desciam do monte, e amadornavam por esses caminhos os ecos das cantigas, deixando atrás de si numa expectativa lúgubre, a sonolência espectral dos arvoredos. Uma lívida noite amortalhava o imenso descampado. Entre cerraceiros de névoa, a lua minguante subia por ondas de claridade torva, gordurenta, sem reflexos, como uma água-forte sinistra que rolasse as suas tragédias de cinzento, desfazendo nos maciços as últimas nuances de paisagem. Ai, pobre Luíza! Aquela repulsa fazia-a rolar na sua ideia a uma condição, além de cuja ignomínia ela julgava se não podia descer mais. Quanto daria ela agora, a pobre tonta, por voltar a ser na estima dele a sua companheira de brinquedos, a sua pessoa de confiança, a sua amiga, a sua irmã?... e poder encará-lo com os olhos límpidos de outrora, sem corar por aquela cena de sedução premeditada, que até na própria consciência a envilecia! Agora ela olhava à roda de si caída da exaltação que a levara a cingir-se com ele, interrogando-se, perscrutando-se, dizendo-se indigna de todas as comiserações. Era uma mulher sem vergonha, quase ignóbil, que inspirara o nojo, mesmo formosa, mesmo intacta, ao primeiro homem a quem estendera as pomas dos seus desejos. Podia aceitar quaisquer das infamantes soluções que lhe propunham: ser a amante do criado, ou ir saciar o deleite efêmero de um dia ao marquês e aos mais debochados do seu séquito. O seu desejo extinto, tudo o mais lhe era indiferente; e a morte começava dali por diante, com a frialdade do seu coração proibido de bater por alguém. Mesmo, não via outro destino além de prostituir-se ou matar-se. Para ela o mundo começava em Rui, acabava em Rui, e só durara no ciclo em que ele a trouxera enfeitiçada. Rui sequestrado ao seu amor: adeus mocidade, alegria chilreante, manhãs no terraço à hora de dar alpista aos canários, projetos, ardores, fantasias, esperanças! Ele recusara-a: de que lhe serviam pois as túrgidas pomas, a cinta ondulosa de serpente, e o divino ventre de gerânio e espuma, todas as expansões, todos os calafrios, todos os mimos, de que a adolescência aveluda e povoa o corpo da mulher? Na contensão capitosa dos seus êxtases, Rui vira apenas a selvageria do gozo que extravasa em gestos de braços e na efervescência tórpida dos beijos. Além da grosseira exterioridade lasciva e cálida, tudo o mais lhe escapara daquele amor confessado violentamente, refinamentos, frêmitos, intelectuais sobressaltos... o prazer dos sentidos vibrantes à visão da pessoa que se adora... os infinitos respeitos, súplicas balbuciadas por entre os dentes cerrados, transluzindo ameaça — e delicadezas submissas de escrava — e esse fluido que sobrenada da alma amorosa, e enche de poesia tudo o que se palpa e respira, em torno dela.
Desceu ao jardim, direita ao poço. Havia um silêncio opaco e terrível, que pesava no âmbito à semelhança de um remorso que fibra a fibra estivesse roendo um coração. O poço era largo, com uma nora por cima, e a amura de pedra escancarada ao ar. Se ao menos ele diria “Coitada!” quando lhe fossem contar como ela tinha morrido!... E inalava para se dar alento, grandes haustos de ar frio. Os seus olhos deram com as janelas do Palácio, iluminadas ainda. Eram, de uma banda, as janelas de Rui, e da outra a lâmpada do oratório, cuja porta abria sobre o quarto de dormir da senhora marquesa. Vamos! era preciso ser forte. Nossa Senhora estenderia os braços para impedir que ela se despenhasse no inferno. E pôs-se a medir a queda, esburcinada no bocal de pedra da nascente. Atafulhada de sombra, a pavorosa goela não mexia. De quando em quando, uma gota escapava-se dos alcatruzes da nora, indo fazer lá no fundo um plhau! glacial. Entretanto a névoa fazia aos arvoredos, toiletes de gaze, para a festa fúnebre de Luíza. Solicitamente o luaceiro vinha, aqui, além, tocar o bojo de uma pérola de orvalho, as transparências de uma renda de bruma, os claros da argêntea brancura imaculada... Ela desfolhou a rosa que pusera nos cabelos. Ergueu o espírito para o alto, com uma doçura branca de mártir; e persignando-se, enxugava as últimas lágrimas. Na calada começou então a retinir uma campainha. Nos quartos da marquesa? Era a chamar Luíza. Oh pobre madrinha! Luíza estava já sentada à beira do poço, pronta a escorregar-se à água. Porém uma instantânea sombra tinha passado nos stores do oratório, cujas vidraças soaram no terraço em bocadinhos. Que era aquilo? Alguma coisa de anormal se estava passando. Quem gritara? Engano? Alucinação? Luíza fez um salto, esquecida da morte, e deitou a correr para de onde o barulho partia. Quando entrou no quarto da marquesa, caíra pelas escadas, derribara Ezequiel que vinha pelo corredor, rasgara as saias nas portas, tropeçando nos móveis umas poucas de vezes. Viu a cama vazia e toda cheia de sangue nos travesseiros. A porta do oratório estava aberta, e sobre a alcatifa, entre portas, a pobre senhora estorcia-se, quase nua, vomitando sangue em espumosas golfadas. Luíza agarrou-se a ela, gritando que lhe acudissem: e em toda a casa, de repente, tinha sido um alvoroço extraordinário. Ezequiel, que foi o primeiro a chegar, inda viu a velha revolver os olhos, dar um estremeção que lhe retezou as pernas ao comprido. E de repente ficou-se.
— Coitadinha, coitadinha! Está pronta, dizia o velho em tom beato. Eu bem previa esta desgraça! Mas Luíza barafustava para que ele fosse chamar depressa o marquês, e mandasse à vila buscar o doutor Souza. — Depressa, depressa que ela vai-se-nos aqui sem sacramentos! Ele abanava a careca, tendo remodelado na face a máscara patriarcal dos dias serenos. Desolava-se muito pelos cantos. Como aquilo fora depressa! Uma coisa que ninguém esperava! Lá conseguiram transportá-la para a cama. O corpo estava frio. Um dos braços, levantado, caiu inerte nas roupas, apenas o deixaram. — Está morta! Mas ninguém vinha acudir! Que estava fazendo nos quartos toda aquela gente que não ouvira os gritos de alarme? Ezequiel entrava e saía, ia a uma porta, voltava à capela, idiota de espanto, abanando as mãos, sem saber. — Ah menina Luíza, menina Luíza; eu bem lhe disse esta manhã. Chegou-se a ela: — O que há de ser agora de ti?
A camareira não ouvia, agarrada à marquesa, e seguindo a instalação da morte naquela fisionomia de cera. A sua rica madrinha! A sua amiga! A sua única afeição!
— Casa comigo, insistia Ezequiel. A minha vida é pouca coisa. Deixo-te tudo. Casa comigo.
Já o marquês vinha entrando, com Rui e os seus amigos, e toda a gente da casa àquela hora estremunhada.
O fidalgo curvou-se para o leito: dizia frases de espanto, alucinadas e de um grande efeito decorativo.
— Mas, senhores, ela resfria! Oh fatalidade! e outras muitas, que os amigos, um pouco lassos na digestão da ceia, trocavam por outras da mesma polida complacência. Compusera um rosto de aflição reprimida, conforme de rigor na circunstância, e que foi muito apreciado pelo que dizia dos seus afetos maritais. Lagoaças e pai Cesário tinham-no abraçado a três quartos, dizendo — coragem! num magnífico acento de contra-basso.
Quando de repente Luíza deu um grito, vendo os olhos da marquesa irem ficando vitrosos. Alguns curvaram-se a ver. Ezequiel e Lagoaças trouxeram velas acesas. E o choro das criadas abriu de repente no quarto uma ladainha horrífica de lamentos. Uma espécie de teia de aranha revestia devagar as pupilas pálidas da morta.
— O espelho, o espelho.
Ezequiel trouxe do gabinete um espelhinho de punho ornado; puseram-lho à boca.
— Inda respira!
Mas o pulso perdia-se. O coração queria calar-se. A aura histérica descorrelacionava os movimentos de Rui, cujas mãos buscavam juntar-se numa súplica frenética de que ninguém fazia caso.
— Jesus! dizia Luíza erguendo os braços, entre as mulheres de joelhos. Onde está o nome de Jesus não há perigo à salvação. E as rezas perdiam-se em ondas de soluços. Então o marquês tirou a boina da cabeça, avançou dois passos com o espelho que já não embaciara, colado à boca da fidalga. E num tom alto:
— A senhora marquesa de Selmes morreu. 

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