Algarve
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Algarve era
o seu nome. Tinha nos olhos leais uma tal expressão de bondade, que inspirava
logo confiança aos tímidos, aos pobres, às criancinhas.
Era muito
distinto, com seu ar de grande senhor dos tempos passados. Ao atravessar o
corredor para vir deitar-se aos meus pés, dir-se-ia um velho diplomata
acostumado às etiquetas palacianas.
Não fazia
barulho; aparecia junto de nós como uma sombra. Nunca lhe vi aquela alegria
ruidosa que faz bem ver, mesmo nos cães. Era silencioso, meigo, taciturno —
como se uma saudade ou um remorso lhe pesasse na alma.
Ás vezes,
quando a dormir, tinha sonhos aflitivos, gemia baixinho, com estremecimentos
bruscos em todo o corpo — como se quisesse lançar-se numa corrida para salvar
alguém que visse em perigo...
Todas as
tardes saía. Fechava-se-lhe a porta, saltava pela janela. Era a única ocasião
em que mostrava a energia da sua vontade decidida e teimosa. Voltava às dez
horas, impassível e sereno, tal qual como se tivesse ido ao club fazer dois dedos de conversa.
Um dia quis
segui-lo; pressentiu-me e veio ter comigo fazendo-me festas, como a pedir que
voltasse para traz. Não quis compreender e ele então acompanhou-me
disfarçadamente, algum tempo, e logo que me viu distraída fugiu a bom correr.
E às dez
horas, inalteravelmente, voltava, sereno e grave, como homem elegante que atira
o charuto e descalça a luva da mão direita, antes de entrar em casa.
Mas —
coitadinho! — era já muito velho e a sua mocidade parece ter sido um tanto
aventurosa. À mão me veio ele ter, já cansado, quase sem dentes, o pelo a cair.
Nos olhos do
pobre Algarve queria eu ler
toda a sua história. E, quem sabe, talvez que me não engane muito contando o
que li, tudo o que adivinhei nos olhos bons do meu pobre amigo — que um gênio
altivo e independente levou a uma triste morte.
Veria pela
primeira vez a luz num país branco, todo branco de neve. Grandes montanhas, de
uma transparência ligeiramente rosada quando o sol muito pálido as ilumina,
avançam lentamente, num deslizar de fadas em doce ronda noturna... e lenta, mas
seguramente, caminham para o seu fim— o grande leito amargo do Oceano.
Muitos
navios vinham todos os anos à pesca; então, lembrava-se de ver homens que, de
quando em quando, vinham a terra e tristissimamente iam depositar o corpo de um
companheiro, no cemitério branco picado de cruzinhas negras que lá em cima se
via... E a mãe, uma famosa cadela preta de pelo luzidio ligeiramente ondeado,
acostumara-o a seguir aqueles cortejos fúnebres, com respeito, quase com mágoa...
Depois, ao
primeiro anúncio do inverno, os navios fugiam, como as andorinhas voam ligeiras
para a doce paz dos seus ninhos de lá baixo — andorinhas aventureiras que todos
os anos voltam, mas à custa de quantos sacrifícios! Quantos ficarão perdidos
por esse mar sem fim! E esses homens rudes, que tanto e tanto trabalham por um
pedaço de pão, seriam a melhor lembrança do meu pobre Algarve...
Quando
maior, levaram-no um dia esses mesmos pescadores que ele se habituara a amar e
a seguir humildemente. E então foi uma vida de sobressaltos e perigos, passada
sobre as quatro tabuas de um navio, tal qual um velho marinheiro muito afeito a
perigos e tempestades.
De um
naufrágio se salvou, salvando o capitão. Apareceu não sei como em Setúbal.
Depois, de mão em mão, chegou à minha.
Que
nostalgia profunda a do seu olhar, quando se fitava nessa baía eterealmente e
incomparavelmente azul! Com quanta saudade ele recordaria esses mares tão
diferentes, por onde a sua mocidade se passeara, sobre a tolda dos navios?!...
Nas longuíssimas
tardes de maio, sempre as mesmas, sempre doiradas e tépidas, eu gostava de me
ir com ele até à praia. Ali, na aureola de ouro fulvo com que o céu santifica o
mar, ficava-me sonhando, os olhos fitos no farol do Outão, que era um ponto
mais brilhante na glória do poente.
Oh! as
lindas tardes, as lindas manhãs, as lindas paisagens que nós contemplamos em
êxtase; veem-nos passar com a mesma serena indiferença e assim continuarão a
encantar os homens na sua rápida passagem pela terra. E mais rápida ainda a
desses pobres animais tão inteligentes, tão bons, tão dedicados — e que tão
poucos dentre nós têm alma para compreender e amar!
Uma noite
o Algarve não apareceu às
dez horas regulamentares. Um palpite de tristeza me anuviou o espírito...
Faltou essa noite e faltou em todas daí em diante. Um bêbedo tinha-se posto
diante do seu caminho, numa estúpida e humana graça. O cão voltou, para seguir
por outra rua, e o homem, numa selvageria que envergonhava o animal, agarrou-o,
entre as gargalhadas dos espectadores que da taverna próxima assistiam ao
espetáculo — que na verdade devia ser de uma infinita graça! O cão filou-o
rijamente, sacudiu-o com os dentes e passou.
Mas a
injustiça e o ódio dos homens torna-os mais ferozes do que os próprios animais.
A alma — se homens como aquele a têm — apenas lhes serve para mais
conscientemente fazerem o mal.
Ao outro dia
o meu pobre Algarve tinha
desaparecido para sempre, levado para a suprema ignomínia da sepultura dos cães vadios.
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