Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Quando um
homem se apega à terra, ela é por vezes de uma ingratidão que chega a revoltar.
Com a sua impassibilidade de coisa morta irrita o amor até ao fanatismo, leva à
loucura.
O Manuel
Carpinteiro não tinha mulher, nem filhos, nem sobrinhos, ninguém que lhe
ajudasse a levar a vida alegremente, que pelas manhãs o acordasse com sonoras
alvoradas de risos.
Vivia só,
num casinhoto ao cimo da vila. Ele mesmo fazia o caldo e cosia umas batatas; a
broa comprava-a de caminho em casa da Sra. Cândida, quando à noite recolhia de
enxada ao ombro, tristonho, indiferente, para ali uma coisa sem nada lhe
importar. Passava pelas mulheres com uma completa indiferença de desconhecido.
Era um simples cavador, mas chamavam-lhe carpinteiro porque o pai o tinha sido; já em garoto
alcunhavam-no de Manél do
carpinteiro; depois, com o tempo, por abreviatura, ficara com aquele nome.
À custa de
muita avareza e muita miséria arranjou meia dúzia de vinténs, e tanto pediu,
tantos empenhos meteu, que na Câmara lhe emprazaram um bocado de serra. Mas,
como a pobreza é muita naquela região, o povo miserável toma os maninhos como
próprios. Ninguém lhes pode tocar, sob pena de revoltas e gritos do mulherio,
dos sem eira nem beira, que por
vezes têm percorrido a vila esbracejando, cabelos desgrenhados, lenços
escarlates a agitarem-se como bandeiras de guerra.
Os invernos
são rudes e os desgraçados vivem da serra como animais inferiores. Queimam
pelas noites bravas de invernia os sargaços verdes, que enchem de fumo os
casebres e nem ao menos se desfazem crepitando risos de ouro. Vendem aos
lavradores molhos de fetos para comprarem o pão de cada dia e as ovelhas
têm o seu magro pasto por essa serraria além, entre pedreiras e pinhais.
Temendo um
levantamento, os graves senhores da Câmara emprazaram ao Manuel carpinteiro uma
courela de terreno inculto — aquilo que não prestava para os outros.
O povo todo
explodiu numa sonora gargalhada: — que ia fazer aquele maluco com um bocado de
maninho tão seco? Por mais que se matasse nunca lhe daria senão uma reles terra
centeeira...
O Manuel
arreliou-se fortemente com esses ditos e, cabeçudo como um verdadeiro beirão,
arranjou uma cabanita, no meio da belga e ali vivia como um selvagem.
Trabalhava
desde que o sol vinha, irrompente, até que se escondia nos poentes gloriosos
dos dias longos do estio. No inverno apanhava a pé firme as chuvas, a neve, o
vento e o frio. Era um labutar sem descanso, e ela, a ingrata, pagava-lhe com
umas anêmicas paveias de centeio, que ondeavam palidamente, mostrando a terra
branca de seixos como dentes descarnados de rapariga tísica. Ele mesmo
assim a adorava, a essa belguita que ia fazendo com o seu trabalho, regando com
o suor do seu rosto. Em metade plantou um bacelo, mas a uva não amadurava;
deu-lhe um vinho palhete muito
leve, muito agradável, mas para vender era uma desgraça — nenhum negociante lhe
pegava. E no entanto ele amava-a como se fosse uma mulher formosa, sempre
pronta a pagar-lhe em sorrisos os cuidados de que a rodeava.
O que lhe
falta é só água,— dizia ele sombriamente — o mais é uma terra nova, boa de lei.
E continuava a revolvê-la com a ânsia de quem procura tesouros. Vinham homens
entendidos, os vedores, ensinar
o bom sítio para fazer os poços, mas tinha que os entulhar logo, quase
desanimado. Água, onde é que ela aparecia ali?! Só a tal profundidade, que era
absurdo pensar nisso.
E o povo a
rir, a rir perdidamente do desgraçado!...
Picado por
esses risos, foi hipotecar a belga e meteu jornaleiros a cavar, até darem com o
sangue da terra. Pedras e só pedras é que apareciam, depois, rocha viva,
que foi preciso despedaçar a tiro. E ele chorava, o pobre homem!
A face
distendeu-se-lhe pela primeira vez, num sorriso satisfeito, no dia em que um
delgado fio d'água borbulhou no fundo do poço. Balbuciava coisas sem nexo ria
por entre lágrimas que lhe avermelhavam os olhos. Nem parecia o mesmo; a
alegria quase o endoideceu. Depois de ter o poço completamente forrado, tinha
ainda pedra de sobejo para murar a territa; e ele tudo era pensar em grandezas.
Porque o
povo começava a invejá-lo, quis ir até ao fim, começando pelo largo portal para
carro...
Mas a terra
não dava os juros a dez por cento que o triste pagava — ela que apenas rende,
quando muito boa a cinco. Falavam-lhe em penhoras, desgraças... e o rude
campônio começou de andar aturvado de juízo.
Passava dias
a olhar o fundo do poço onde a água se mostrava estagnada, negra, e ao mesmo
tempo fascinante — como a prometer-lhe descanso no interior da terra bem amada.
A
propriedade era tão nova que nem os fetos denticulados em primorosa renda
o revestiam de verdura, nem a avenca delicada lançara ainda entre o musgo as
suas hastes muito finas!...
E horas e
horas que ele levava sobre uma frágil tábua, agarrado à varela do engenho com os seus braços cabeludos e fortes,
fazendo descer o balde ao fundo para o tirar cheio d'água fria, que, entornada
na piasita ao lado, se ia perder na terra empapada!...
Queria
muita, muita água — era a sua ideia fixa. Parecia-lhe que só assim ela lhe
daria todo o seu dinheiro. Os paus do primivo engenho, friccionados no balanço
compassado, rangiam lúgubres soluços, atiravam para o espaço uns gemidos
estertorosos.
O desgraçado
até já metia medo, com os olhos encovados e enfebrecidos, com a magreza
musculosa do seu corpo afeito a trabalhos e fomes.
Levaram-no
então para a vila; mas os cuidados de indiferentes servem de pouco. Ninguém
mesmo se atrevia a guardá-lo de noite porque as passava a gritar — que o diabo
estava ali, que um gato pátio o queria afogar, que lhe roubavam a fazenda!...
Mal o sino
das ave-marias dava a última badalada — que se envolve já nos murmúrios
nostálgicos da noite que se avizinha; o chocalhar dos rebanhos recolhendo ao
curral, os carros chiando torturadamente, as cantigas e os risos das raparigas
na fonte, as rãs, os grilos e ralos que despertam para a sua faina palreira —
fechavam-lhe por fora a porta do casebre e deixavam-no sozinho esbravejar e
gritar à vontade.
Até que um
dia saltando da cama conseguiu arrombar a porta e a correr chegou à
propriedade.
Quando de
manhã deram por falta do Manuel, foram procurá-lo à fazenda. Decerto que não
fugiria para outro sítio. Todo o camponês compreende aquela loucura. Foram
encontrá-lo no fundo do poço. Um rictus
medonho mordia a sua face desvairada — nem a morte conseguira pacificar aquela
fisionomia roída de ambições e terríveis desenganos!...
***
No fim de
tudo, quem ganhou foi o usurário que lhe emprestara o dinheiro e ficou com a
belga, já feita, pela dívida pequena do pobresito.
Até faz pena
vê-la agora, com o seu portão de ferro pintado de fresco, a nora cantante,
o ar de quinta de ricaço que vai tomando.
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