A pesca do Deodato
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O tenente-coronel Fernandes salivou com estrépito para
longe, a fim de salvar a esteira que se estendia por baixo da maqueira e,
ajeitando no longo taquari pintalgado a cabeça de barro topetada de tabaco
legítimo do Acará, prosseguiu:
— É como lhes digo. A
desobediência aos preceitos da igreja traz sempre após si a necessária e
indefectível punição. Bem o afirma o ditado: — Deus castiga sem pau nem
pedra. É certo que, quase sempre, a consequência lógica da culpa atrasa-se
tanto, que o pecador impenitente prolonga uma existência criminosa no meio da
mais impassível tranquilidade, como se possível fosse à justiça do céu
esquecer. Muitas vezes, porém, a pena sucede-se à culpa sem notável intermissão
e, em todo o caso, o espírito prudente só tem novo ensejo para arrenegar do
instinto maldoso do homem e colher no exemplo nova convicção da sabedoria
celestial.
Calou-se, pigarreou,
fitando com tenacidade, de um modo quase severo, o auditório resumido e
conspícuo: o Antônio Narceja, português enriquecido num barracão à entrada do
furo do Pajé; o Dr. Policarpo Varela, juiz de direito, cuja recente
remoção para Salinas filiava-se a memoráveis façanhas eleitorais, nos confins
do Paraná, ao expirar a situação conservadora, havia poucos meses e Felix
Jacaré, um caboclo muito republicano, sapateiro de ofício, avô do pequenito que
dormitava-lhe ao colo, esgaravatando maquinalmente o nariz com o dedo
titubeante, a cara suja, os lábios breiados de açaí, como breiado estava o
peito do camisão de riscadinho azul e branco.
Bateram nove horas
num relógio pendente da parede caiada. Fora, bramia o mar. Pela janela aberta
entravam, com a brisa, exalações salinas e esse burburinho confuso e
melancólico das noites em plena roça. No teto de vigamento visível, trilavam
grilos. E, por intercadências, a luz do candeeiro de
porcelana pestanejava de leve, como se também por ela passasse o arrepio misterioso
das coisas trágicas que ali se falava ou se o apavorasse o tom soturno das
considerações filosóficas do tenente-coronel Fernandes.
— Tem muita razão,
acudiu Antônio Narceja, oferecendo obsequiosamente um fósforo aceso ao Dr.
Varela, que sacara um cigarro de tauari.
— Conforme...
obtemperou o Jacaré, cujo espírito de contradição era conhecido na vila.
— Vou dar-lhe um
exemplo, compadre, retorquiu Fernandes, risonho e sereno.
Pigarreou de novo,
tornou a salivar. Depois, ajeitando-se na rede, enquanto os companheiros
aproximavam curiosos os bancos, principiou.
***
Há coisa de uns 25 ou
30 anos, vivia no Magoari um preto corpulento e encanecido, cuja idade ninguém
poderia calcular e que toda a redondeza conhecia como sendo o mais ousado e
feliz pescador da localidade.
Metódico, não passava
um dia sem ir à pesca; afortunado, não atirava a tarrafinha sem depois puxá-la
repleta de peixes! Era um assombro, um gosto admirá-lo em ação! Parece que
rejuvenescia-o o mar. Qualquer que fosse o estado do tempo, era infalível
encontrá-lo todas as noites, pelas duas horas, descendo ao pequeno porto do
barracão, a desencalhar a canoa e logo fazer-se ao largo.
E que saúde de ferro
tinha ele! Jamais conhecera um incômodo, uma dor de cabeça! Rijo como o acapu,
afrontava os temporais com a impavidez do fatalista. E pela madrugada,
quem saísse à praia, não deixaria de descortinar muito ao largo, no mar alto, a
pequenina luz intercadente da canoa do Deodato.
Era rendoso o ofício.
Quando voltava à casa, depois do nascer do sol, o pescador trazia atopetado o
fundo da embarcação. Ninguém o vencia na arte da salga, de tal modo que o seu
peixe encontrava sempre melhores ofertas do que o dos demais pescadores da
costa do Magoari, quando os procuravam os compradores que iam revender em Belém.
Mas tinha um defeito
o Deodato: — era um ímpio. Deveria possuir a alma igual à cútis, porque
desprezava as leis de Deus e zombava impertinente de todos os mistérios da
religião e de todos os atos do culto católico.
Em balde buscara
algumas vezes o padre Simplício — conheceram? — trazei-o à reflexão e
demovê-lo ao respeito pelo Senhor. De tudo escarnecia o infeliz e, o que é mais
revoltante, possuía frases curiosas, sofismas fustigantes, objeções
irrespondíveis, para combater os conselhos do sacerdote. Tudo era inútil. Não
havia razão que o impedisse de ir à pesca ao domingo e dia santificado como em
qualquer outro de trabalho.
— Você há de acabar
mal, — avisava o padre, entre carinhoso e recriminativo.
— Milhor p'ra mim, —
retorquia o herege, sarcástico.
***
Ora, uma tarde, era
véspera de não sei que dia santo grande. Creio que a Igreja rendia culto à
Virgem sob a invocação de Senhora de Belém. Fazia um calor enorme. O céu
estava claro, limpo, muito azul e tranquilo, como tranquilo estava o mar. Na
praia arenosa, as ondas vinham desdobrar-se preguiçosamente, numa languidez
inefável. Mas, ali perto, nos matos, estalavam os galhos, causticados pelo sol.
E muito ao longe, na linha do horizonte, alguns pontos sombrios, a custo
avistados a olhos nus, pareciam nuvens vagabundas no espaço ou podiam ser
barcas de pesca paralisadas à míngua de brisa.
No barracão, Deodato,
seminu, fumava, destrançando as redes. De vez em quando, assomava a cabeça à
porta, a inspecionar o céu.
Com a grande prática
que possuía, adivinhava, pressentia calma quase completa para toda a noite. Era
isto decerto que lhe dava esse pequeno rictus
à comissura dos lábios e lhe encrespava levemente a retinta fronte. Maior
trabalho seria o seu, pois far-se-ia necessário o remar por longo tempo. Enfim,
nem tudo podia ser feito à mercê dos desejos humanos... E volvia à faina, de
todo absorto, fumando sempre.
À boquinha da noite,
apareceu um visitante inesperado à porta do Deodato:
— Pode-se entrar?
Era o padre
Simplício.
Sob o pretexto de uma
visita casual, pelo fato de passar ali próximo, ao regressar da roça do Xico
Sete, o sacerdote penetrava com o intuito de verificar se o pescador iria
aquela madrugada entregar-se ao costumado trabalho.
A ocupação do Deodato
mudou-lhe a suposição em certeza.
— Não faça isso,
homem de Deus; olhe que a festa é da padroeira da cidade. Nossa Senhora
não lhe perdoará a falta de respeito...
— Ela bem que se
importa com a minha vida! — respondeu o preto, com um encolher de ombros que
também poderia significar ao padre Simplício o fastio que as suas observações
lhe causavam.
— E se eu lhe pedisse
que ficasse em casa, que viesse à minha missa, em vez de ir amanhã à pesca; se
eu invocasse a nossa amizade, a fim de ser atendido...
Teve Deodato um
sorriso franco, dilatado, apresentando entre a dupla polpa dos lábios os largos
dentes alvos e disse com uma convicção profunda, com um tom sarcástico e
decidido:
— Eu ia mesmo, sim,
senhor!...
Não houve razões
lógicas, pedidos, ameaças de penas eternas que o demovessem. O negro era teimoso.
Retirou-se o padre amuado, quase colérico, benzendo-se repetidas vezes no meio
da escuridão do caminho, tauxiada de pirilampos loucos e murmurosa do longínquo
coaxar de rãs, nos lameiros.
***
Ficando só, Deodato
franziu a testa e, mordendo o lábio, lançou contra o padre a reprovação tácita
de um gesto enérgico dos braços. O diabo do padreca que tratasse dos seus
negócios. E esta!
Depois, comeu
frugalmente, como de costume, um pouco de tainha moqueada e logo atirou-se à
rede, vencido pelo sono.
Aquela alma de
incrédulo estava entorpecida inteiramente. Do contrário, teria tempo de
refletir nas observações do sacerdote e quiçá algum sonho o prevenisse da sorte
que aguardava a sua irreligiosidade. Mas o infeliz dormiu como uma pedra até
que os galos das roças próximas soltaram no ar sossegado os seus cantos da
madrugada, despertando-o.
Levantou-se o negro
e, acendendo o farol, saiu com direção à praia.
Trilavam grilos, como
neste momento em que lhes falo. Na noite calma, rebrilhavam estrelas,
espelhando na superfície lisa do mar as suas cabecinhas irrequietas. Nenhuma
aragem movia os arbustos, as árvores do matagal. Coaxavam sempre as rãs,
enquanto os sapos cururus dialogavam com entusiasmo. E, ao longe, dominando
esses mil arruídos da noite, vibrava ainda o cantar dos galos, com um não
sei que de profundamente triste, numa plangência de alma condenada.
Instantes depois, a
canoa do Deodato fazia-se ao largo. Não havia sopro de brisa. A calmaria era
completa. Ele, desde a tarde, esperava aquilo mesmo.
Mas, apesar da idade,
tinha ainda bons músculos o velho pescador. Remava à direita, remava à esquerda
e o seu barquinho a pouco e pouco se afastava, impávido, cortando a vaga
indolente.
À popa, como de
alcateia, velava o farol, ia deixando pela esteira da embarcação um rastro
luminoso, que se prolongava desmesuradamente, em direção à terra.
Além deste, nenhum
outro sinal de vida poderia enxergar-se mais em toda aquela extensão de costa
nem sobre a linha do horizonte, do lado do mar alto. Quem se atreveria a
ir pescar na madrugada do dia festivo consagrado à padroeira de Belém?
Disto mesmo deveria
recordar-se o Deodato, quando se achava já a mais de duas milhas de distância,
porque, fazendo meia volta ao corpo, olhou para traz e teve no rosto renegrido
uma suprema expressão de ironia sorridente.
— Tolos! — rosnou,
volvendo logo a remar com fúria, cravando a vista nas redes colhidas ao fundo
da canoa.
***
Meia hora depois,
algumas pequenas nuvens sombrias tinham-se erguido lá muito ao longe, escalavam
o céu, vinham galgando distâncias, desdobravam-se assombrosamente. Fitou-as o
pescador, desconfiado.
— Ué! — exclamou.
Vento ou trovoada?
Apesar da incerteza,
ergueu o mastro, preparou a diminuta vela de muruxi. E estava contente, porque
já não precisaria de empregar maior esforço. O remo já começava a cansá-lo, que
diabo...
Mas convinha
aproveitar o tempo. Levantou-se ainda, tomou uma das redes e, com um gesto
largo e fácil, fê-la descrever um círculo por sobre a cabeça, lançando-a depois
à distância que reputou conveniente.
Colhendo-a, sentiu-a
leve sobremaneira e não tardou em verificar que a estreia fora de todo
improdutiva. Não viera um só peixe!
Era estranho, porque
aquele sítio já tinha fama de rico em cardumes.
Longínqua fulguração
de relâmpago fê-lo erguer o olhar. As nuvens tinham subido ainda mais,
haviam-se estendido em quase dois terços do espaço, pareciam agora as pesadas
colgaduras de uma câmara ardente. Segundo relâmpago, muito distante, cintilou
então. E uma pequena aragem soprou fresca do lado do poente.
Decididamente, ia
cair a trovoada. Não podia Deodato perder um segundo: içou a vela, manobrou no
sentido de aproveitar o vento. E assim afastou-se ainda mais de terra. Iria
experimentar o mar a meia milha dali.
Quando, depois de
lançar a rede em outro sítio, se dispunha a puxá-la, pareceu-lhe estar
extremamente pesada. Um sorriso de alegria entreabriu-lhe os grossos lábios. E
então? Ele bem sabia que aquilo era infalível!
Mas imaginem o seu
assombro quando, depois de longos esforços, conseguiu trazer à flor da
água a rede que julgava repleta e de repente sentiu-a tornar-se completamente
leve, encontrando-a logo de todo vazia, sem uma única pescada!
Deodato não era homem
para impressionar-se, porém não deixou de achar bastante estranho semelhante
fato.
Nesse momento, o
espaço iluminou-se com um grande relâmpago, seguido do estrugir medonho do
trovão.
O vento aumentara,
passava agora sibilando nas cordas do pequeno mastro, enfunando a vela com
raiva, arrastando a canoa numa fúria, numa vertigem, à luz dos relâmpagos
sucessivos, no meio de coriscos que esfuziavam caprichosos por todos os lados.
Compreendeu o negro
que a trovoada ia ter maiores proporções do que as que lhe atribuíra ao
princípio. Nada mais poderia fazer nessa noite. Aquilo era praga do Simplício, pensava.
Bem descontente, resolveu regressar. Quis passar o pano para bombordo, porém
não teve a precisa ligeireza e o vento, já de todo impetuoso, quase invencível,
arrancou-lhe das mãos o chicote da espia e num momento arrebatou a vela em
farrapos, num redemoinho sibilante pelo espaço.
Só lhe restava o
alvitre da resignação. E ele, habituado às inclemências, afeito a mil e uma
tempestades, sentou-se sereno à popa, depois de abaixar o mastro: resolvera
esperar o desenlace da crise.
O que presenciou
então foi horrível. Choviam raios à direita, à esquerda, por toda a parte. O
céu estava negro, agitado de ribombos infernais, a cada minuto iluminado tetricamente,
deixando a descoberto as grossas massas das nuvens fugidias.
E o preto, longe de
assustar-se, ali estava na barca, de braços cruzados, sorrindo com cinismo. O
mar tinha um aspeto que se casava com a atitude hostil do espaço. Por toda a
parte erguiam-se compactas colinas líquidas, escancaravam-se horríveis, hiantes
vales fosforescentes. Não chovia ainda, mas o vento, que zunia aos ouvidos do
negro incrédulo, cuspia sobre ele milhares de gotas salitrosas tiradas às ondas
frenéticas, trementes.
De súbito, a amplidão
toda se convulsionou, vibrou num estrepito pavoroso, repercutindo um som
inominado, jamais percebido pelo Deodato em situações idênticas. Avermelhado
clarão iluminou tudo, revelou aos olhos do negro toda a majestade daquela
cena para a pintura da qual, meus amigos, não tenho senão palavras
inexpressivas e frases sem colorido.
Ficou estarrecido o pescador.
Sentira que a frágil embarcação era com vigor sacudida! Mas a força que assim
operava não vinha decerto do embate das ondas. E a canoa tremia toda, rangia,
vibrava incessantemente, como se um braço de Adamastor a agitasse nuns empuxões
ciclópicos e intermináveis.
— Que diabo é is...
Não pode continuar.
Diante dele, rodeado de uma auréola de chamas, tresandando a enxofre, emergia
Satanás! Levantou-se indizível alarido: os raios duplicaram o faiscar, ribombos
estalaram mais cavernosos. Por seu turno, o vento engrossou ainda mais as
vagas, que chegaram quase a cobrir o barquinho.
Porém só durou um
segundo o estupor de Deodato. Qualquer outro homem sucumbiria de medo. Ele,
entretanto, como envergonhado desse instante de susto que tivera há pouco,
arrastou-se com esforço, ergueu a meio o corpo ensopado e transido. Depois,
levantando o olhar e o punho para o céu, proferiu, ou antes bramiu feroz
imprecação satânica.
O diabo, — porque era
ele em pessoa que assim surgira do mar, — empunhara uma espia e, correndo,
cabriolando por cima das ondas loucas, entrou a puxar o batel para o lado de
terra.
Aquela corrida
frenética durou um momento. Dali a pouco, barco e tripulante desfaziam-se de
encontro às pedras de uma enseada, perto da capelinha do lugar. Viram os meus
amigos a ação da justiça de Deus?
Calou-se o tenente
coronel Fernandes. Estava ofegante, com os lábios secos, o olhar animado.
Mas ressoou no
aposento uma gargalhada estentórica, que despertou o molequito no colo do avô.
Era este próprio, o
Felix Jacaré, quem zombara daquele modo. Logo, com entonação escarninha,
ponderou:
— Não creiam nessa
balela de seu c'roné. O tar Deodato não foi pescá, ficou na rede muito
sossegado e despois sonhô essas coisa, 'hi 'sta. Seu padre Simprício, antão,
arranjô o resto...
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