A mais estranha moléstia
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Era o momento verde, o momento do aperitivo outrora absinto, hoje uma série de envenenamentos de cores variadas e de nomes ingleses, a que a leve estética sem inventiva dos cafés e das confeitarias continuava de chamar sempre o momento da água glauca. Por hábito, sentara-me a uma das mesas do terraço de confeitaria, os olhos perdidos na contemplação da Avenida, àquela hora vaga tão cheia de movimento e de ruído. No asfalto da rua era a corrida dos carros, apitos, trilos, largo bater de patas de cavalos, chicotadas estalando no pelo das magras pilecas dos tílburis, carroções em disparada, cornetas de automóvel buzinando arredas, gente a correr, ou parada nos refúgios, à espera de um claro para poder passar, o estrépito natural do instante, à hora da noite nas cidades. Nas calçadas uma dupla fila de transeuntes sempre a renovar-se, o cinema colossal de homens das classes mais diversas, operários e dândis, funcionários públicos e comerciantes, ociosos e bolsistas, devagar ou apressados ao lado de uma multicor galeria de mulheres, a teoria infinita do feminino para todos os gêneros: pequenas operárias, cocottes notáveis, senhoras de distinção, meninas casadeiras, simples apanhadoras de amor. As sombras, a princípio de um azul furfureáceo, depois de um cinza espesso, iam preguiçosamente espalhando o veludo da noite na silhueta em perspectiva das grandes fachadas. À beira das calçadas, a pouco e pouco os pingos de gás dos combustores formavam uma tríplice candelária de pequenos focos, longos rosários de contas ardentes, e era aqui o estralejamento surdo das lâmpadas elétricas de um estabelecimento; mais adiante, o incêndio das montras faiscantes, de espaço a espaço as rosetas como talhadas em vestes de arlequins dos cinematógrafos, brasonando de pedrarias irradiantes as fachadas. Ah! os contos de fadas que são as cidades! Os meus olhos se fixavam na confusão miriônima das cores, vendo em cada roseta um caleidoscópio, sentindo em cada tabuleta o sonho postiço de um tesouro de Golconda, a escorrer para a semi-opacidade da noite cascatas de rubis, lágrimas de esmeraldas, reflexos cegadores de safiras, espelhamentos jaldes de topázios, e eu recordava outras cidades, outras casas, o eterno boulevard, suprema orquestração do bom gosto urbano. Que fazer? Os meus olhos descansaram na multidão.
Algum tempo depois reconheci, como tendo perdido alguma coisa, os olhos à procura, o nariz ao vento, o delicado Oscar Flores, um ente muito fino, muito sensível, do qual diziam horrores e que de resto parecia ter na alma um fatigante segredo. Os segredos fizeram-se para ser contados. Tudo vai de ocasião. Que estaria Oscar Flores, com a sua palidez e as suas lindas mãos, a procurar assim? Esperei alguns minutos olhando a ver se via a causa daquela aflição e por fim, quando o jovem se resolvia a continuar, chamei-o ruidosamente. Ele voltou-se, como se fosse apanhado em flagrante. Estava visivelmente contrariado.
— Vem daí tomar um aperitivo.
— Não, obrigado. Tenho que fazer.
— Pois se já perdeste a pessoa a quem acompanhavas?...
— Viste? fez ainda mais pálido.
— Vi, isto é — sossega — vi que procuravas alguém.
Ele teve um suspiro, deixou-se cair na cadeira. Já agora tomava um cock-tail. O seu caso porém era outro. E fechou-se num silêncio nervoso, cortado de sobressaltos, alheado de mim — o seu habitual silêncio em todas as rodas, como sempre à espera de um sinal misterioso para partir e desaparecer. Olhei-o então com vagar. Era encantadoramente lindo com o seu ar de adolescente de Veroneso, a pele morena, o negro cabelo anelado. Como devia ser feliz assim rico e belo, com a sua bengala de castão de turquesa, a gravata presa de um raro esmalte, a atitude inquieta de um príncipe assassino e radiante, o Oscar Flores! E falavam tanto mal dele! Disse-lhe, íntimo e confidencial:
— Então, Oscar, onde estás? É por isso que te caluniam...
— Ah! tornou sorrindo, ainda falam de mim?
— Cada vez mais. És o leit-motiv da falta de assunto. De resto há sempre na voz do povo um pouco de razão. Estou a acreditar que realmente tens um segredo. Ora os segredos deixam-se para as mulheres e para os homens sem interesse, os homens vulgares...
— Mas não tenho segredos, protestou cansado. Tenho apenas a mais estranha moléstia nervosa — que ninguém sabe. Curioso, hein? Diante de mim toda a gente sente a anormalidade, outra esfera, outra vibração. Que será? Os mais espessos — e dessa espessura intelectual se faz a opinião da massa — pensam logo nas degenerações normais, no centro das loucuras que é a cidade. E não é nada disso, é outra coisa — é a minha moléstia. A existência concentro-a nela, no desejo de domá-la e na irresistível vontade de satisfazê-la. Tenho estudado, tenho lido, tenho feito observações a ver se encontro outro tipo igual. Absolutamente impossível...
Tomou um gole de cock-tail com evidente prazer, sorriu mais acalmado.
— Todos pensam que é um segredo porque ninguém imagina. E eu sofro desde criança. A princípio, na mais tenra idade, apareceu como escandalosa precocidade; até a adolescência tive-o como um crime horrível, castigo e prazer do pecado. Com a razão — porque eu sou um sujeito muito razoável e muito refletido — vim a descobrir que era um desequilíbrio dos sentidos, a exaltação lírica, o desenvolvimento assustador de um dos sentidos, capaz de dominar os outros, submetê-los e virar aos poucos em fonte de todos os prazeres, em único foco das sensações agradáveis, em tirano da impalpável luxúria.
Já decerto conversaste com os artistas jovens, os que falam na realização da arte, no ideal que jamais se corporifica e é na nossa alma como o perpétuo sonho irrealizável. A minha moléstia, o meu desequilíbrio, o império de um único sentido no meu organismo e nesta sensibilidade caldeado numa ascendência de requintados, deu-me da vida íntima uma prévia noção incorpórea, deslocou-me para um mundo de fantasia exasperante, fez-me o lascivo da atmosfera, o gozador das essências esparsas, o detalhador do imponderável, o empolgado da miragem da vida.
Emborquei tranquilamente o veneno que me tirava o apetite, e murmurei:
— Meu caro Oscar, tenho uma profunda simpatia por ti, em primeiro lugar porque és belo, em segundo porque tens espírito, em terceiro porque nem a beleza nem o espírito conseguiram reduzir-te à atroz banalidade de ser totalmente feliz. Daí o poder ouvir sem comentário todas as narrativas lindas com que me queres honrar. Esse teu desequilíbrio é de fato de uma psicologia muito sutil, muito trabalhada.
Oscar teve um gesto de impaciência.
— Quando digo! É tão inverossímil que ninguém acreditaria. Entretanto tens diante de ti o homem que analisa o seu tormento e não lhe resiste. Sabes que é o sentido soberano? O olfato, apenas o olfato. Sou como o escravo, o ergastulado do cheiro. Tudo é cheiro. É o cheiro que guia, repele, atrai, repugna, o cheiro é o condutor das almas. As nossas impressões são filhas do cheiro que atua como a luz e muito mais porque há cegos e não há ser vivo que não respire e não sinta o cheiro. O cheiro plasma, porque está no ambiente. Os caracteres dos homens são feitos de essências, as profissões dão aos entes certos e determinados cheiros. Vive oito dias numa casa de perfumes ou no boudoir de uma mulher galante, e as tuas ideias tomam o aspecto de ideias com pó de arroz, de ideias efeminadas, made expressely para uma certa roda pueril. Sente o cheiro dos marinheiros, com o cheiro do mar e três ou quatro escalas de cheiros de óleos refrescados pela viração larga. Um homem sensível não pode viver muito tempo nesses lugares porque o cheiro permanente dá-lhe como uma continuidade da visão oceânica e um estado trepidante que lembra a vagabundagem de grandes navios por mares ignotos. A alma dos entes revela-se pelo cheiro. A das coisas também, só pelo cheiro. Conheço os interiores das casas, o gênero, a classe das pessoas que as habitam pelo cheiro, como de olhos fechados dir-te-ei a casa vazia apenas aspirando-a. Posso mesmo dizer-te que cada cidade tem um cheiro próprio, e que eu os sinto ao aproximar-me, ao saltar no desembarcadouro, cheiros que conseguem dar a impressão geral dos habitantes, cheiros honestos, cheiros voluptuosos, cheiros de seio...
— Mas, realmente, é delicioso.
— É atroz.
— A hiper-acuidade de um sentido dirigida com estética. És o homem dos perfumes.
— Não me fales de perfumes, do perfume com a significação normal de extrato fabricado para o mercado. É outra coisa. Sou a vítima do cheiro. Para mim não há cheiros repugnantes, há cheiros desagradáveis. Tenho a sensualidade dos cheiros os mais diversos, do cheiro da terra, do cheiro da erva, do cheiro dos estábulos e do cheiro das rosas. Como comecei a sofrer desse desenvolvimento paroxismado do sentido olfativo? Sei lá! Não foi o perfume, foi a extensão vasta dos cheiros que não são perfumes. Em criança, antes de levar qualquer gulodice à boca, instintivamente cheirava-a de olhos cerrados, para sentir bem e prelibar deliciosamente o prazer de degustá-la. Depois, quando me tomavam ao colo, ao beijar-me, achava sempre meio de cheirar, de aspirar as pessoas agradáveis. Cada Pessoa tem um cheiro diverso. Na minha infância a perversão — sê-lo-á de fato? — surgiu ensinando-me todo o pecado. Gostei da carne porque cada nuca é um pouco do olor da natureza, e há bocas que são como orquestrações de odores. Ah! esse tempo ainda ingênuo, esse tempo instintivo... Eu me envolvia nas roupas brancas que as raparigas já tinham usado, pendia para as cabeleiras com tal ânsia aspiradora, tinha uns modos tão pouco normais que a família se assustava e as raparigas achavam uma infinita graça. Ah! que pequeno vicioso! Elas diziam convencidas de que eu gostava apenas do cheiro das suas roupas. Não era, porém. A minha nevrose olfativa se acentuava cada vez mais, cada dia mais com caráter desabridamente sensual, e já rapazola, não distinguia o que me poderia conceder o prazer: a erva molhada, o cheiro dos estábulos, um cheiro de nuca, um cheiro de corpo, e já começava a sentir as cruciantes necessidades de certos cheiros, que eram tão violentas quanto a fome ou o amor. Então era preciso alhear-me, deixar a roda dos conhecidos, sair por aí a ver se descobria o cheiro que eu precisava, o cheiro que não sabia qual era, mas devia tranquilizar-me.
— Tinhas a obsessão de um cheiro nunca sentido?
— Exatamente. Ainda era romântico e até aos dezoito anos tentei com um pouco de literatura e alguns conhecimentos químicos, o prazer dos perfumes, dos cheiros artificiais. Arranjei catálogos, estudei longamente, tive baterias de perfumes em frascos de cristal, fiz como todo sujeito lido em livros franceses, a sinfonia dos perfumes, a alegoria dos perfumes, a pintura sugestiva dos perfumes, combinando essências, renovando as camadas de ar do aposento com pulverizadores cheios de misturas sábias ao lado de incensários a queimar olências exóticas. Era perturbador e era irritante. O meu olfato desejava, tal as marafonas que a sorte eleva ao grande luxo, excessos de natureza, virilidades de ambiente. Esses perfumes que as mulheres usam, esses perfumes com que vocês se civilizam e se friccionam são ignóbeis. Na composição química da enorme quantidade por mim aspirada senti apenas que poderia fazer um catálogo, dividindo em classes de almas a diversa temperatura: perfumes quentes, semi-oleosos, perfumes tépidos, perfumes frios. Os perfumes de Haubigant dão sempre a impressão de calidez, de calor opressivo. Os ingleses e os americanos fazem-nos frios, desses que a gente ao aspirar pensa em águas geladas e madrugadas hibernais. Meia dúzia de refinados franceses conseguem a meia temperatura, evolando-se lentamente. E há também os medíocres, os reles, os que lembram montras de boulevards em blefes de luxo e de conforto, elegâncias por todo o preço de armazéns duvidosos.
Quer uns quer outros, entretanto, acabaram por me fazer mal, dores de cabeça, apertões nas têmporas, uma impressão angustiosa de acachapamento. Mas era muito artista. Um amigo, de volta do Oriente, trouxe-me então uma coleção de perfumes. Eram maravilhosos. Andei doente e morno, com uma alma de serralho e de mel por aspirar um frasco de essência de rosas. Esses perfumes entravam — me no crânio como estofos bordados de pedraria, como broqueis incrustados de gemas coruscantes. Deixavam-me sonambúlico, com frases de antifonário e sonhos de rosas de Shiraz, de Kernar, de Kashmir. Vi então que a minha doença não amava as concentrações mais ou menos industriais.
— Príncipe encantador, havia as flores...
— Sim, as flores, amei as flores, tateando na sombra do mal. As flores são as caçoulas dos perfumes naturais. A natureza condensa nelas o olor das suas paixões, a alma dos seus desejos, as recordações das tonturas, de frenesis ou de grandes repousos celestes. Não sorrias. O que eu sinto não o dizem palavras. É preciso descobrir frases prismáticas como certos cristais e vê-las à luz do sentimento, que percebe para além das coisas visíveis. Os deuses gostavam de perfumes; o perfume exorta e exalta. Por que lisonjear os deuses com perfumes, se não tivéssemos a ideia do sacrifício, do grande pecado da natureza, que ele representa? Há flores cujo perfume é cínico, outras cujo cheiro é banal, outras cujo olor se celestisa, outras ainda que nos dão desesperos de carne. É possível ter à lapela uma gardênia sem sentir cefalalgias horas depois? É possível cheirar certas rosas sem odiá-las?
— Mas, meu querido, procuras apenas pretexto para dizer coisas infantilmente interessantes. Olha que antes de ti outros estetas falaram... Odiar as rosas!
— Sim! Odiá-las. Há flores carnudas, as rosas, as rubro negro como sangue coagulado, que a gente aspira, absorve o odor, cheira, cheira, e depois estraçalha com ódio porque prometem mais do que dão, porque deixam em meio o gozo, não nos completam o prazer anunciado pelo cheiro. Ah! essa aflição que dá aos sentidos o cheiro de algumas flores, as violetas, cujas emanações são como sons de violino em noites de luar, as tuberosas, crispantes de cio, as rosas chá que cheiram como carnes morenas, o resedá, a flor do resedá que o Fezensac cantou idiotamente num trocadilho e que entretanto guardam um frio e exasperante odor de gérmen fecundante, cheiro de marfim raspado... E, para notares a correspondência de cheiros idênticos nas coisas mais diversas, a flor que cheira a marfim, é também, cheiro resumo do cheiro inicial da vida, irmão odor do odor da semente criadora, estranhamente perdido entre as ervas...
Oscar caíra num abatimento. Eu começava a temer o delírio.
— Então, se não amas os perfumes que te fazem mal, se odeias as flores que te exasperam, em que consiste o desproporcional domínio do olfato sobre os teus sentidos? É decerto um estado de anemia, uma grande fraqueza que te adoece e te faz sensível aos odores. Não amas os cheiros, temes todos os cheiros desde que eles se especializam, se individualizam.
— Ao contrário, fez, de novo animado, ao contrário. Tenho entre mim e a vida comum um como véu de talagarça espessa. E tudo quanto na vida se faz, eu sinto pelo cheiro, pelos cheiros, como um “setter” humano, amarrado à corrente da conveniência. É a existência de miragem olfativa, uma existência em que os cheiros visionam ambientes, descrevem as almas dos tipos que me rodeiam, dão-me sensações de cor, porque há odores de todas as cores; de sons, de músicas, porque cada cheiro é como um som diverso e o cheiro da baunilha é bem uma nota abemolada diversa do cheiro do cravo vermelho, esse sustenido de clarim; de gosto, porque os cheiros têm gosto; de excitação, porque todos os sentidos calcados por tamanha acuidade vibram a arcada furiosa de um desejo incompreensível, perpétuo, demoníaco, no meu pobre corpo. Oh! não estejas a olhar para mim assim irônico. Há uma íntima correlação entre as sensações do homem normal, que o faz amar a harmonia das coisas e o faz pensar na beleza esplendente. Quando ele ama e sente assim, na floração da arte, que é o arrimo da vida, minhando o seu pensamento sutil e vaga essa misteriosa afinidade entrelaça os sentidos, para que o homem sinta numa curva de anca a música das linhas, na carne de uma espádua o perfume da rosa, no entreabrir de um lábio o sabor dos frutos, na criatura que se desnuda o bruto. Desejo cego, caos das sensações... Quando é como eu, porém vítima de um só sentido, morbidamente absorve os outros e leva louco, no delírio perpétuo, a tentar reaver a harmonia.
— Daí...
— Daí, fez Oscar afastando nervosamente o cock-tail em meio, daí para a minha sensibilidade compreender que a natureza é inconsciente, que todos esses perfumes elas os espalhou brutalmente, desvairadamente, e que só um instante a razão lhe voltou, quando fazia a carne, quando criava a criatura, onde todos os cheiros da terra se encontram em suaves nuanças. O que eu amo é o olor da carne, sempre uma orquestração, uma sinfonia de recordações de outros cheiros, o cheiro das bocas, o cheiro dos cabelos, o cheiro das nucas, o estonteante cheiro das axilas... Há cabelos, sabes? que relembram o aconchego arminoso dos ninhos dos pássaros, cabelos em que a gente se perde como num imenso oceano de olências reparadoras, cabelos musicais que fazem pensar em manacás e em magnólias, cabelos que são o tecido de todos os cheiros reconfortantes. Há carnes douradas, carnes feitas de leite e de sangue de cerejas que ao aspira-las pensa um pobre no descanso dos bosques, em ragais, em fraudas rústicas, em grandes abraços pagãos sobre as liras. E as bocas? Já reparaste nas bocas? há bocas quentes e frias, bocas sem cheiro algum, e bocas que quando falam junto a ti têm um cheiro íntimo de rosa murcha, quando te beijam parecem feitas de pétalas de rosas, e quando as sugas transfundem a alma como uma essência especial que parece o mel feito de todos os perfumes dos campos. As criaturas são as ânforas da harmonia dos cheiros. Cada carne tem o seu corpo odico que é o cheiro, cada ser faz-me sentir a alma pela veste incorpórea do cheiro, desse cheiro que cada um tem próprio e jamais igual ao do outro, do cheiro que se procura para aquietar e amar...
— Realmente, com um pouco de “toilette”, cada qual faz o seu cheiro.
— Não! não é isso. Talvez pela toilette e a perfumaria sejam-me indiferentes as formosas mulheres que deixam rastilhos de perfumes industriais e parecem feitas para os retratos de Heleu ou do Amoedo. Não as amo, porque, maceradas de essências, com os vestidos pulverizados de perfumes, a boca lavada por águas e pós brilhantes, os lábios carminados, a face empoada, são como os manequins da moda. O cheiro é a alma dos seres. Elas afogam a alma no artificial para encantar os simples, os brutais. Os meus instintos gelam-se, morrem em frente dessas baiadeiras mascaradas com a máscara transparente de outros cheiros. Houve um silêncio pesado.
— Ah! disse eu vendo a expirar a confissão, é grave...
Oscar olhou para mim, cândido como Adônis, e cansado como se sustentasse nos ombros o mundo.
— Por isso, murmurou, procuro — é horrível! — procuro as criaturas simples, as que não se perfumam, as que ignoram o postiço ignóbil da civilização, e guardam o próprio cheiro: as crianças, as adolescências rústicas, as criaturas que saem do banho brilhando mais e cheirando mais, os que não sabem se cheiram bem porque pensam que o cheiro é a falsificação dos perfumistas. Um lindo corpo, um corpo branco, cor de leite, que tem todos os suspiros campinos das boninas, dos malmequeres, das margaridas, o sonho casto das violetas brancas e o anseio tranquilo, o cheiro animal de qualquer coisa que se não sabe! Um corpo moreno, feito de um raio de Sol, guardando a carnação das rosas e o cheiro da lascívia!... Beijar corpos assim, aspira-los, aspira-los... É quando há a simpatia do cheiro, que é o irmanamento das almas. Tudo quanto toca a pessoa fica com o seu cheiro, o lenço esquecido, um pedaço de móvel. Parta ela, desapareça, cheira aquele pedaço. O poeta sensual já escreveu:
Ela andou por aqui, andou. Primeiro
Porque há vestígios das suas mãos; segundo
Porque ninguém como ela tem no mundo
Este esquisito, este suave cheiro.
E é. De chofre, à calentura do cheiro dela, uma onda de gozo nos transmuda, faz-nos reviver delícias e nevroses da gama que se acordava com o teu desejo. É a música mortal. Que digo eu? A roupa? Os trastes? Não! Basta o lábio cansado de roçar, basta o contato das mãos pelo seu corpo. Nós não conhecemos a própria alma porque não sentimos o nosso cheiro, enigmas para nós mesmos indecifráveis. O cheiro dos outros fica, impera. De volta de um cheiro amado, é cheirar as mãos e sentir o olor do amor como um velador nos próprios dedos. Ah! não! E dizer-te que eu uma vez, há quatro anos senti esse cheiro, o cheiro do meu amor, numa criatura miserável, dizer que não me lembro das suas feições pelo muito que me lembro da completa satisfação do meu desejo, dizer que nunca mais a vi, que a procuro, que a procuro e jamais a encontro... Como queres tu que eu ouça as conversas idiotas, como queres tu que pense noutra coisa? Vou em busca do meu perfume, do perfume que amo, da urna desse sonho, do corpo dessa alma. E degringolo a razão, a moral, o respeito da sociedade, rolo o abismo dos lugares pouco distintos, dou-me a relações pouco brilhantes, aspiro todos os corpos a espera de um dia encontrar o perfume incomparável, a essência doce dessa carne de ouro.
— Curioso.
— A mais rara moléstia que ninguém sabe.
De repente, porém, os seus olhos chisparam. Ergueu-se. Sorriu.
— Espera um instante.
Sumiu-se apressado. Eu também sorri então. Não voltada. Alguém passara que se parecera com o seu cheiro. Pobre rapaz! Talvez fosse na desvairada luxúria o grande sensual do ideal. E talvez não, talvez fosse um louco. Somos todos loucos mais ou menos. Foi então que vi serem oito horas. Como o personagem do poema, Oscar procurava novos perfumes no seu cheiro ideal e os prazeres não sentidos, sempre mais amargos e menos consoladores. Ergui-me. Já com toda a Avenida, centenas de lâmpadas elétricas acendiam a sua grande extensão no clarão da luz, — “a mensageira da verdade visível”...
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