Variação
sobre um tema de Buffon
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A
tia Luzia, lavadeira que morava acerca do açude, recebera em pagamento uns ovos
de pata, e, como não tivesse patas nem chocas nem pondo, deitou-os sob uma
galinha arrepiada. Tão poedeira era esta ave, que a tia Luzia ensaiou
substituí-la por um capão; e, pois, estava no ninho ora uma, ora outro; a
galinha com seu forte calor faria os ovos no dia marcado abrirem-se às
picadas, o capão afeiçoando-se àqueles bolões brancos acamados entre capins
secos, tomar-se-ia de paternal pachorra pelos bolõezinhos cor de gema de ovo
que dali sairiam a andar.
Que
pasmo para o Sr. Capão, quando os pequenos vieram à luz! Era mesmo um cura,
ele, nédio, com sua crista raspada, risonho e afável.
Daí,
a galinha foi metida num banho, para largar o choco. E, depois, — amarrada por
um pé debaixo da ateira, — avistava com uns olhos muito compridos o capão muito
ancho com os patinhos. A pobre fazia por livrar-se do maldito cordel que a
prendia, dava empuxões, beliscava o nó. Enfezada e rouca, estava muito falta
de sangue, com as penas muito secas e encardidas.
O
Sr. Capão? Este sim! Liso, ameno, asseado, solícito, feliz! Talvez nunca
houvesse reitor de seminário tão satisfeito assim com os seus educandos.
Estava pesado, com sua grande batina de penas.
Os
pequenitos piavam muito, com um som plangente, andavam quase arrastando o
papinho no chão, uns atrás dos outros; tocavam a rebate por qualquer sombra que
voasse, e se apavoravam do mais brando ruído. Mas o pedagogo os achava uns
meninos morigerados; e, se falasse, gabar-lhes-ia a inteligência perante a
senhora Luzia.
Dias
passados, a dona, arriando um braçado de lenha no terreiro, disse, muito
admirada: — Oh gentes, estes corninhos inda não sentiram o ar do açude?! E,
apanhando a saia na altura dos joelhos, sacudiu-a repetidamente, para fazer
espantalho, caminhando e dizendo: — Chô patos! Chô capão! À borda espraiadinha
do açude os pequenos, uns atrás dos outros, com instintivos pipilos de alegria,
naquele passinho balanceado que lhes é de natureza, caíram na água
naturalissimamente, aos olhos do capão, como se o líquido é que fosse o firme. Primeiro
o preceptor pensara que aquilo fosse brincadeira. Mas depois, os palmípedes,
continuando a velejar triunfalmente a um lado e a outro, o pedagogo levou o
caso a sério.
Girava,
acima e abaixo, já aflito, a percorrer a trincheira que isolava o abismo
líquido. Agachava-se para entrar, recuando hidrófobo; olhava por baixo como
galo a brigar; açoitava-se com as moles asas; eriçava a penaria do pescoço;
ciscava nervosamente e penicava no chão, a chamar aqueles traquinas,
cacarejando, gorgolejando, com a sua tocante responsabilidade de educador e
aio.
As
crianças, porém, os pipis de bico chato, mergulhavam o pescoço na água
bolorenta, não cogitando sequer de que o pai putativo morria-se de angústias no
seco. Alardeavam, nos tons esverdeados da água, a sua pelúcia cor de flor de
algodoeiro, com manchas vivas cor de café — lindos flocos a flutuar; suas
patas de remos tangiam apressadamente a água para trás; seus biquitos roçavam
pela tona à cata de insetos que boiavam; sulcavam entre os fiapos de lodo;
passavam tempo sem tempo a fervilhar no sujo — porcalhões!
A
galinha arrepiada estirava o pescoço como quem se põe na ponta dos pés e diz
consigo: — "Senhor, o que será aquilo?" O capão resolvera deitar
sobre a tábua de bater roupa, onde havia umas ramas de melão silvestre
enroladas em uma libra de sabão.
Os
círculos de pequenas ondas, da mansa agitação dos nadadores, iam quebrar-se na
praiazinha do açude.
Ao
longe os guinés cantavam estou
fraco, estou fraco, como dizem as crianças; e batia um machado na mata onde
borboleteavam as flores do pau ferro e do pau-d'arco sobranceiros.
Um
burro apeado abeberava, com um grande chocalho no pescoço; e, de quando em vez,
avistava-se o chifre de uma vaca em uma capoeira próxima, cujo cercado, de
grandes paus em bruto e tostados, um homem estava desmanchando em lenha. Em uma
árvore despida pousava um gavião. Siá Luzia vinha vindo com uma trouxa de roupa
suja, rogando pragas à ave de rapina. E dando com os olhos no capão tristemente
a chocar sobre a rama de melões, largou uma gargalhada das suas. O ambiente do
açude refrescou-lhe o rosto que vinha a arder com o sol.
Ficou
em camisa e desenfiou o braço direito para lhe dar livre jogo. Deu de garra ao
cacete, e, de cócoras, na posição para ela a mais cômoda deste mundo, meteu a
roupa na água, e tocou-lhe o pau e melão para abrandar o sujo, peça por peça.
O
gavião voou para a mata.
Os
patinhos saíram ensopados que ninguém os podia pegar. O capão alegrou-se muito quando
os viu saltar para fora, mas eles não queriam saber de ninguém porque
precisavam secar-se, puxando a água da penugem com o biquinho, expostos ao
sol.
Na
areia adormecida à sombra rala das ateiras ciscavam pintainhos ao redor de suas
próprias mães, e siá Luzia, com um enorme chapeirão de palha, sob a ramagem da
gameleira de grandes músculos pardos e redondas folhas verde-escuras,
prosseguia a sua alegre faina de lavadeira, com a sua golada de aguardente e o
seu cachimbo de cabo curto.
O
galo do terreiro deu uma corrida no capão, com grande alarido para todos, ao
que a lavadeira, como um Deus que lá num momento pouco se importa que os seus
mundos se esboroem, gritou: — Haja pau no terreiro, corja!
E
continuou a deitar água com a mão e a arrumar na roupa jazente sobre a tábua
sonoros golpes de cacete.
A
lisa tona do açude eriçava-se de juncos para o longe. O fundo céu azul minava
os menores interstícios da água, salpicada de estrelas de sol, com grandes
seções de sombra e de imagens de brandas cores.
A
galinha arrepiada, agora solta, espojava-se na cinza da barrela.
As
coisas nos seus eixos, o capão voltou às boas com os seus pupilos.
E
Siá Luzia, contando o caso à mulher do inspetor do quarteirão, quando foi
levar-lhe a roupa, este senhor, que era ferreiro, e conhecido por muito
engraçado, estabeleceu um paralelo entre o capão, o professor da vila e o
vigário, que também praticava ensino e dizia que ia montar um colégio na
capital.
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