Obra completa
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O guarda dissera-lhe que se podia ir embora. Turíbio mirava-o, olhos abertos e fixos. Tinha uma expressão de doido. Ia para perguntar o quer que era, mas, a um movimento do outro, deteve-se, humilde. O guarda deitou-lhe a mão ao ombro, muito calmo:
Anda, põe-te lá fora...
— Lá fora...
Os olhos abriam-se-lhe desmesuradamente.
Hesitava; afinal decidiu-se.
Lá fora — e indicava a porta aberta, dando para o pátio — Lá, na rua?
— Na rua, sim... Anda, põe-te lá fora. Turíbio passava a mão pela cabeça, olhava estupidamente. Desceu a mão pela nuca, passou-a pela barba hirsuta e crescida. Olhava. E arriscou umas palavras, a medo:
— Posso ir para casa?
O outro desatou a rir
— Como é? Para casa? — e ria-se. — Queres ir para casa, não é?!
E achava-lhe graça. Queria ir para casa; era boa! Veio-lhe um acesso de tosse. E repetia:
— Com que então queres ir para casa, hein?
Turíbio calara-se, cabeça baixa. Esteve assim um pouco; levantou a cabeça por fim:
— Não senhor... — e desculpava-se, muito humilde. — Não queria ir para casa. Ia, mas era se vossa senhoria me desse licença... — e aparentava um sorriso; as palavras saíam-lhe a custo. — Não era porque eu quisesse, não senhor; — embargava-se-lhe a voz na garganta — ia porque vossa senhoria me estava mandando embora. Mas vossa senhoria me desculpe...
Falava como uma pessoa a quem se acenasse com uma esperança para fazê-la desaparecer desde logo. E repetia com a voz estrangulada:
— Vossa senhoria desculpe... Pois se eu nem me quero mais ir embora!
O guarda tinha os olhos cheios de lágrimas, à força de rir. Queria ir para casa, o diabo do homem! Enxugou os olhos, levou o lenço à boca. E, agarrando-o por um braço:
— Queres ir para casa, não é? Pois vai...
Tossia; levou outra vez o lenço à boca:
— É boa! Pois vai... Vai, se a encontrares! O que é preciso é que te não demores por aqui. Põe-te na rua, anda!
Empurrou-o, bateu-lhe a porta nas costas. Turíbio ficou parado, no pátio, a olhar para fora. Deu uns passos, correu os olhos pelas paredes, altas, distantes. Moveu os braços, respirou forte. Para lá da porta ficava a sala de espera, vasta, caiada de novo. Ele atravessou-a. Mas, pelo corredor ao lado, vinha um sujeito de óculos. Turíbio parou, tímido. Não fosse ele mandá-lo para dentro. E ficou à espera, trêmulo, resignado.
O sujeito vira-o, acenava-lhe com a mão:
— Seja feliz, hein, irmãozinho; seja feliz! Veja se nos não torna a ocupar.
Ele acompanhava-o com os olhos, indeciso, surpreso. Dum banco próximo, agarrado à parede, meio oculta pela sombra, surdira uma figura esquelética de mulher. Embrulhava-se num xale, tinha um pequeno ao colo. E foi para o dos óculos; cumprimentava com a cabeça, a fala em pranto, os olhos cheios d’água:
Senhor doutor... Eu vinha para visitar o 18...
— Às terças, filha; às terças é que são as visitas. Está lá na porta; é a ordem... Venha depois de amanhã. É a ordem; às terças é que são...
E sumiu-se por uma porta. A mulher teve um gesto de desânimo; ajeitou o pequeno ao ombro, pôs-lhe o xale pela cabeça, e saiu. À frente da casa, o jardineiro regava duas enfezadas palmeiras, em tinas, irrompendo dentre moitas de tinhorões rubros. Turíbio seguira; desceu os dois largos degraus de pedra da entrada, pisou o cascalho do jardim. Ia para transpor o portão, mas o jardineiro detivera-se e olhava-o. Ele arriscou um cumprimento:
— Deus Nosso Senhor lhe dê bons dias, patrão!
— Deus o salve a você! E que permita que nunca mais o vejamos cá por casa...
Turíbio agradecia:
— Muito obrigado ao senhor! Deus que o permita! enchia-se de coragem: — Deus que o permita... Olhe muito obrigado ao senhor!
Caiu; mas da rua voltou-se ainda para trás. O jardineiro curvara-se, cuidava das plantas. O sol caía do alto, rútilo, sobre o áspero cascalho do jardim. Perto, ao alto do morro, badalavam sinos; e da capelinha para cá derramava-se o casario do povoado, atabalhoadamente pintalgado de cores vivas. Turíbio mirava a casa. Há doze anos era acanhada e úmida; pelo telhado limoso e negro, à sombra de copadas árvores, desoladas plantas raquíticas finavam-se, baldas de calor. Agora, erguia-se para o sol, vasta e nova. E às janelas, as grades de ferro tinham uma coloração artística de bronze.
Abanou a cabeça; olhou ainda um pouco. Seguiu afinal. Ia embora. O jardineiro, porém, vira-o parado, e teve uma ideia. Correu à porta, chamou-o:
— Eh lá, Ó amigo! — e gritava — Ó amigo! — e, sardônico: — Onde diabo vai você assim?...
Ele parou. Fez-lhe um nó na garganta. Uma coisa gélida subia-lhe, rápida, à cabeça. Tremiam-lhe as pernas.
— Ó amigo! Olhe, faça favor...
Turíbio veio. O que ele entrevira há pouco, o que ele sonhara, tudo lhe desabava de repente. Sentia-o ruir no cérebro. Veio, não porque o quisesse; as pernas traziam-no, mau grado seu. Entrou. Tinha as feições desfiguradas. Passou a manga da camisa pelos olhos; ia para subir os dois largos degraus de pedra. O jardineiro agarrou-o:
— Onde diabo vai você, homem?
Turíbio sacudiu-se num ímpeto, para se desvencilhar do outro:
— Vou pra cima... Lá pra cima...
E num desabafo:
— Lá pra cima, pra o inferno!
— Ó homem de Deus! — e o jardineiro parecia arrependido de o ter chamado. Que pensa você que a gente lhe quer? — o outro olhava-o; não compreendia coisa nenhuma. — Você que ir embora? Se quer, olhe lá que já aqui não está quem falou... Co’os diabos! A gente até se arrepende de lhe querer fazer bem!
Fazer bem; queria-lhe fazer bem. Turíbio ficou olhando, calado. O jardineiro falava, batendo-lhe no ombro:
— Vai você por aí, sem casaco e sem chapéu; a gente chama-o; põe-se você com essa cara que até dá vontade de lhe voltar as costas, para a não ver.
E ele recordava-se. É, ia por ali sem casaco e sem chapéu. Mas tinha-os em casa. E concordava:
— É, vou... Mas tenho-os em casa.
— Em casa, onde?
— Em casa, lá em casa...
O outro sacudiu a cabeça:
— Qual! você até parece que não entende das coisas... Que casa é que você tem? onde é? Que diabo é que você tem em casa?
— A minha roupa... — e corno se lhe houvesse recordado alguma coisa melhor. — A minha filha!
Enchia-se-lhe o rosto de júbilo, àquela ideia da filha. Brilhavam-lhe os olhos. O jardineiro fitou-o; talvez duvidasse da seriedade do que ele estava dizendo. E não lhe tirava os olhos de cima; não lhe perdia uma contração, um movimento.
Afinal:
— Você está falando sério?
Turíbio nem lhe escutara a pergunta. Repetia muito baixo, somente para si:
— A minha filha!
O outro teve um gesto de piedade:
— Olhe, 22, venha cá... — e passou-lhe o braço pelos ombros. — Venha cá comigo. Você parece-me um bom homem.
Turíbio deixou-se ir; parecia que já se não recordava de mais nada do que lhe estava em redor. Calara-se, alheio a tudo, como quem mergulha num sonho. Foram pelo corredor, ao lado da casa. Ao fundo era o quarto das ferramentas, pequeno, de tábuas. Entraram. Dependurada do tabique, pendia a roupa de uso. O jardineiro tomou de um paletó esverdeado, roto:
— Escute, 22. — Turíbio olhava em roda, à toa.
— Escute... Leve isto para você... Tenho também ali um chapéu velho — o outro mirava-o, pasmo. — Está um pouco velho... — ele dizia-lhe que não, com a cabeça. — Está; mas que diabo! antes um casaco roto do que nenhum. — Turíbio fizera um gesto de recusa. — Leve-os, eu tenho outros; comprei-os há dias...
E pôs-lhe o casaco aos ombros; ajudava-o a vestir as mangas:
— Você há pouco estava com medo, não era?
— É que... O senhor sabe; é que às vezes a gente... — passava a manga do casaco pelos olhos, para enxugar as lágrimas; ria-se. — A gente, às vezes, sabe lá o que tem...
O jardineiro examinava-lhe a roupa:
— Fica-lhe a matar! Olhe, é só para ver...
Foi a um canto da parede, agarrou lá um pedaço de espelho, colado a um retalho de cartão, preso por tiras de papel de cor; pô-lo diante dos olhos de Turíbio, obrigou-o a segurá-lo:
— Veja só... Olhe que nem de encomenda!
Fê-lo voltar-se de costas. Olhava.
— Nem de encomenda! Parece que foi feito para você!
Turíbio tomou do espelho, fitou-o um pouco, levantou-o mais, para ver bem. Passava a mão pela barba, pelo rosto magro, pelos cabelos crescidos. O rosto dele, muito pálido, muito grave, contrastava com o do outro. Palpava com os dedos as covas amarelas da face. Ficou muito tempo, olhando. E abanava a cabeça, com um ar desolado, em silêncio.
— Hein? — perguntava-lhe o jardineiro. — Que tal? Está-lhe a matar!
— É — e Turíbio voltava-se para ele, muito sério. — É uma esmola que eu lhe hei de pagar. A gente neste mundo sempre se encontra, mais dia, menos dia... — olhava para a porta. Bem, eu vou indo... — e esperava a ver se o outro lhe não dizia nada. — Eu vou indo... Muito obrigado ao senhor!
— Nem por isso!
— Deus Nosso Senhor é que lhe há de dar o pago.
Saía, chapéu na mão. O jardineiro acompanhou-o; levou-o até a porta, à entrada. Ele voltou-se ainda:
— Deus lhe dê muito ao senhor, e que lhe não falte...
Demorou-se um pouco, a olhar para os lados, como quem se orienta. O caminho fazia uma curva à esquerda; seguia, ladeando cercas; súbito, descia para o vale. A direita, era o povoado, em morro íngreme. E abaixo dele, para longe, através dos campos, quase na orla azulada dos montes longínquos, sumia-se a linha de postes da via férrea — onde, por neblinosas madrugadas e ásperas tardes frígidas, férreos, pesados comboios rolavam, abalando o silêncio de em redor...
Turíbio tomou à esquerda; andava a custo, com esforço, com fadiga. Por vezes, iluminavam-se-lhe os olhos, murmurava muito baixo — “A minha filha!” Num ponto, deteve-se, mirou o sol — “Pra mais de onze...” E seguiu. A estrada, em declive, ajudava-o a descer. Puxou o chapéu para o rosto. Embaixo, onde começavam os campos, deteve-se ainda. O caminho cansava-o; respirou comprimindo o peito. E foi por um atalho, por entre terras úmidas, para lá, muito longe, onde árvores se erguiam e uma torre tocava o céu.
Mas, dentre sáfaras moitas híspidas de híspidos espinheiros, uma dulçurosa, trêmula toada surdiu:
Peito que foi magoado Bote pra fora a paixão...
Um homem vinha, pela estrada próxima. Passou através dos espinheiros, desapareceu numa curva, surgiu afinal, adiante. Cantava. E a voz dele, nostálgica e saudosa, espalhava-se, nítida, pelo ar:
Peito que foi magoado
Bote pra fora a paixão;
Amor não pode morar
Onde mora a ingratidão...
Demorava-se, numa última nota, e, numa outra nota prolongada, repetia:
Aaaah...
Amor não pode morar
Onde mora a ingratidão.
Turíbio parou; o homem vinha para ele. Tirou o chapéu:
— Com perdão do senhor, hein... Fazer parar assim uma pessoa... É que eu queria ir para Santa Tomásia... Já nem sei mais onde é.
— Santa Tomásia?
— Santa Tomásia. Eu tenho lá uma filha.
O homem refletia — “Santa Tomásia... Santa Tomásia.” E, alteando a voz:
— O senhor quer ir para a Santa Tomásia?
— E...
— Veio de muito longe?
— Vim de lá de cima.
Turíbio apontava o morro, distante, para lá da linha de postes da via férrea.
— Da banda da Cadeia Nova?
— É... Da banda da Cadeia.
O homem fazia por se recordar onde era a Santa Tomásia:
— Santa Tomásia... O senhor já lá esteve?
— Há tantos anos!
— Muitos, pra mais de dez?
Turíbio encolheu os ombros:
— Já lá se vai tanto tempo!
O outro ficara em silêncio; mas afinal:
— Pois, por aqui não há nenhuma Santa Tomásia, não.
— É que o senhor não se lembra. Havia lá uma fazenda, grande. Era a um bocado do cemitério. Até a capelinha pegou fogo.
— Ah! a capelinha pegou fogo? Pegou.
— Se sei! O senhor dizia que era Santa Tomásia... Água Nova sei eu que é! Fica perto da fazenda da Saudade, não fica?
— Fica logo adiante.
E até a capelinha pegou fogo?
— Pegou fogo.
— Não havia eu de saber onde é a Água Nova! Pois se foi até lá que mataram o filho da fazendeira...
Turíbio fez-se pálido, voltou o rosto, levou a mão à barba. Depois, muito tranquilo, muito devagar:
— Houve lá uma morte, na Água Nova? Agora, há pouco tempo?
— Pouco tempo! Só doze anos sei eu que há.
— Doze anos... — e ele contava pelos dedos.
— Doze anos... E mataram um homem?
— Mataram.
— Mataram... — e ele continuava, a meia voz. — Mataram... Quem sabe lá se o teriam morto agora! Quem sabe lá!
Depois, mais alto:
— E o que matou foi preso? — O homem dizia-lhe que sim. — Foi preso... Sabe o senhor o que é ser preso, hein? Sabe o que é? Preso sempre, sempre, sempre... Ah! — e rangia os dentes, de raiva.
— Sabe o que é?
O outro olhava-o, desconfiado, muito sério. Turíbio calara-se; fitou-o um pouco, baixou a cabeça. Acalmava-se. Depois:
— Mataram-no à toa?
O homem sorriu:
— À toa! Quer saber o senhor? Eu tenho lá uns parentes...
— Na Água Nova?
— Sim, na Água Nova. Agora mesmo vou eu para lá... — Turíbio ouviu, muito atento. — Tenho lá uns parentes. Pois eles sabem de tudo; não viram, mas lá toda a gente conta. Era uma coisa de fazer virar o sangue à gente. O que morreu enganava o outro, sabe?
Turíbio repetia:
— Enganava o outro...
— É, enganava-o com a mulher. Metia-se lá dia e noite. Todo o mundo via; o marido é que não via nada. Mas um dia... O senhor sabe; lá vem um dia em que a gente descobre tudo. O marido apanhou os dois, em casa...
Turíbio deitou-lhe a mão a um braço, rápido, com um relâmpago nos olhos:
— Com a filha ali perto, não é? Com a filha ali mesmo, deitada ali, vendo tudo, aprendendo tudo. Não houve um raio do céu que os matasse! Acredita em Deus, o senhor? Acredita, hein? Pode-se acreditar, pode-se ter fé, assim?
Tremia, de cólera. O homem puxou o braço:
— Como é que o senhor sabe que ele tinha uma filha?
Turíbio voltou a si. Disfarçava:
— Eu ia lá, às vezes... E depois, lá — e indicava o caminho, para trás — lá toda a gente conta; todos sabem... O senhor mesmo disse, inda agora...
— É... — e o outro concordava. — Na Água Nova, então, toda a gente sabe. Não vê mesmo que aquilo era para se esquecer assim! Que morte! Picou-o todo, a faca; todo! No peito, nos olhos, na boca...
— Na boca, no peito... Nos olhos... — e acentuava aquilo. — A boca era falsa, os olhos enganavam... Sabe o senhor? Enganavam... Olhavam para o outro assim... — e puxava as maçãs do rosto para baixo, com os dedos; deixava os olhos a descoberto. — Olhavam assim, claro, puro... Falava tão doce, tão sério... Falso, tudo falso! Pensa que ele tinha coração? Tinha coração como o senhor, como eu? — e levava a mão ao peito. — Tinha coração, aqui? Ah! Quem o tem faz aquilo? Agora não há de fazer. Está morto, pagou tudo.
“Pagou tudo!” Turíbio cerrara os punhos, com força, com ódio. Cravava as unhas nas mãos. Via-se-lhe nos olhos uma terrível expressão de fereza. Esteve assim um bocado; voltava o rosto para um lado, para outro; não via bem, faltava-lhe o ar. Sentia um quer que era que lhe apertava a garganta. O homem recuara; parecia disposto a ir embora; estendeu-lhe a mão:
Bem... Então até, hein?
Turíbio serenava, pouco a pouco. Fez-lhe sinal para que esperasse. O olhar dele voltava à primitiva expressão de doçura. Respirou muito, quanto pôde. A camisa afogava-o; ele rompeu-a, de um gesto rápido. E levava a mão ao peito, hauria o ar balsâmico de em redor:
— Perdoe. A gente pode lá ouvir tudo, assim, a sangue-frio... E dizem que há um Deus no céu! — soluçava, mal podia falar — um Deus, dizem que há um Deus! — levou a mão à cabeça em fogo, fechava os olhos; e, ao cabo de um momento. — E... E a filha do outro? E frisava bem aquele do outro:
— A filha do outro? Era tão pequenina, tão loura!
— A filha? Coitada! Andou por aí... Não vê que a mulher pôs fogo à casa, sabe?
— Andou por aí, a filha?
— A mulher pôs fogo à casa. Dizia que no quarto onde o tinham morto, depois daquilo tudo, só o fogo é que ainda lá podia entrar. E então, levou a pequenina; deu-a numa casa, para o alto... Depois, foi embora. Tem andado por aí; está agora com um, está daqui a bocado com outro... É uma desgraça; mas há gente que é assim mesmo.
— A pequenina ficou, lá no alto?
— É... Mas davam-lhe muito, davam-lhe à toa... Coitada! A mãe tinha-se ido embora, o pai estava preso. Era uma desgraça! Pobre de quem não tem nem uma pessoa por si... A mãe dela, então, foi por aí; estava com um, com outro...
— Eles davam-lhe muito?
— Em quem?
— Na pequenina.
— Davam-lhe tanto!
— Davam-lhe! Mas a mãe dela, por que é que lhe deixava dar? Tão pequenina, tão loura!
— Pois a mãe já não estava mais lá, na casa. Pôs-lhe fogo e foi embora. E então, a pequena ficou. Antes não ficasse! Davam-lhe tanto...
— Davam-lhe muito... E agora?
— Agora — e o homem apontava para o céu, alto. — Agora, está lá, está nos ouvindo...
Turíbio agarrou-lhe na mão, puxou-o a si. Cravava-lhe no rosto o olhar fixo, acerado, lúcido:
— Está lá! — e mostrava o céu — Está lá?... Morreu?
— Morreu.
— Morreu!
Lágrimas lhe brotavam dos olhos, rápidas, ardentes. Escaldavam-lhe o rosto, punham-lhe como que pequeninos diamantes disseminados pela barba hirsuta. Quedara-se em silêncio. Por fim:
— Eles davam-lhe muito?
— Se lhe davam! Até nem parecia gente cristã...
Turíbio murmurava — “Davam-lhe!” E, com os olhos vagos, absorto:
— E ela morreu?
O homem afirmava que sim. E ele levantou os ombros, num soluço:
— Assim até foi melhor!
O outro fitava-o, comovido. E depois:
— O senhor gostava da pequenina?
— Pois se ela era... — e calou-se; desvairava-se-lhe o olhar, levou a mão à boca, olhava em roda. E aos poucos: — Vim por aqui muito... Muitas vezes! Nestes braços andou ela. Era assim — e fazia-lhe o tamanho com a mão. — Tinha uns cabelos que só vistos, de lindos! E davam-lhe! Se eu estivesse lá... Juro-lhe pela minha alma! Levasse-me um raio se mais algum dia se levantasse a mão que lhe estivesse batendo!
Baixou a cabeça; tinha os olhos cravados na terra, direitos, fixos. As lágrimas corriam-lhe grossas, rápidas, contínuas. Soluçava. O homem estendeu-lhe a mão:
— Desculpe, hein? Mas, eu vou indo...
— Eu vou também... O senhor disse que a Água Nova é para lá, não é? — e mostrava-lhe o caminho, longe. — Eu vou... A mãe dela, então, ficou lá na casa?
— A mãe da pequenina? Turíbio fazia-lhe que sim; o outro sorriu. — Foi embora... Pois ela deitou fogo à casa e foi embora.
— Deitou fogo à casa... Ardeu tudo?
— Tudo.
— E foi embora! Contanto que a não tenha tragado o inferno... Vê o senhor? Tanta miséria!... O céu cobre tudo, azul, azul... A casa era lá pra cima, não era? Uma, de tábuas, com um mamoeiro à porta, uma hortazinha ao fundo? Tinha-a feito ele mesmo... Ele, sim; ele! Muita terra cavou pra a fazer...
— O marido era da lavoura?
— O pai, o pai da pequenina? Era da lavoura... Duma outra lavoura; também se cava a terra, também se planta, mas não se colhe. Cavou muita terra, muita! Ah! assim a estivesse ele agora cavando para a que foi embora!
O homem achava que sim:
— É mesmo, antes trabalhasse para a filha. Quando se tem mulher assim...
Mas Turíbio interrompeu-o:
— Para a filha, não! — E com a voz em lágrimas: — Para a filha, coitada! nem foi ele que a cavou. Atiraram-na lá para o fundo, à toa. Para a filha, não; para a que foi embora! Deitou fogo à casa e foi embora... Antes para ela! Bem larga, bem funda! Lá, bem embaixo...
E dentro em pouco:
— A casa era lá pra cima?
— Inda lá está o terreno... É perto. Eu é que já vou indo...
— Também eu vou.
E foram ambos. Turíbio calara-se; por vezes, ouvia-se-lhe um soluço. O homem apertava o passo. Numa curva, por uma aberta de cerca, mostrou-lhe o caminho adiante, o terreno da casa, o mamoeiro à porta, longe, mal distinto. O sol caía agora do alto, por sobre a terra úmida da geada; áureo e tardio, retardatário sol benéfico de junho...
Turíbio reconhecia a estrada, alegravam-se-lhe os olhos. Já nem sentia o cansaço de há pouco. E marchava calado, com pressa. Num ponto, o homem agarrou-o, fê-lo parar:
— Olhe, vê ali, agora...
Era o terreno próximo, o mamoeiro à entrada. Onde a casa estivera, por sobre a massa disforme do entulho, daninhas plantas se enredavam, subiam, avassalavam tudo. E dentro elas, apenas, a espaços, carbonizados caibros emergiam do mato crescido e ruim.
Pararam à porta. O homem voltou-se para Turíbio:
— Não era aqui?
— Era... — e ele fitava o terreno desolado e lúgubre. — Era aqui! — e enchiam-se-lhe os olhos d’água. — Contanto que a não tenha tragado o inferno! Olhe, tem a sua vida segura, o senhor? — o outro não respondia. — Tem-na segura? Deixe-a andar... Segura para quê? Um dia desaba tudo. Está ali, queimado, podre... E o céu cobre tudo, azul, azul...
Passeava os olhos em redor. Súbito:
— O cemitério é pra lá, não é?
— É lá adiante, no fim daquele caminho; lá por trás daquela mangueira grande...
— Lá adiante, por trás da mangueira? Olhe — e acenava-lhe com a mão. — Deus que o acompanhe!
E deixou-o. “Deus que o acompanhe!” Foi embora. O homem ficara, pasmo; abanou a cabeça, sorrindo:
— Qual!
E seguiu. Turíbio embrenhara-se pela estrada. Tinha as pernas trôpegas, como as de um ébrio.
Gelava-se-lhe a cabeça; esvaíam-se-lhe as forças. E aos olhos dele, o campo em roda, as árvores, os morros, tudo se ia de ténebras cobrindo.
Deu ainda uns passos, mas dobraram-se-lhe os joelhos, fez-se-lhe um vácuo em torno. Caiu para a frente, e ficou inerte, ao meio da estrada, ao sol.
Névoas caíam do alto, quando se lhe descerraram os olhos. Vinha a manhã nascendo, longe. O orvalho alagara-lhe a roupa. Tiritava de frio. Despiu o casaco úmido; sacudiu-o com força, vestiu-o de novo. Tumultuavam-lhe ideias no cérebro. Sentou-se; fitava a estrada adiante. E a pouco e pouco, foi-se-lhe aquietando a cabeça. Lembrava-se devagar: — “Pôs fogo à casa.” Lembrava-se. “O cemitério é pra lá...” Ergueu-se; sentia-se fraco, com fome; respirou, tirou o chapéu. E pôs-se a caminho. “O cemitério é pra lá...”
Avistou-o, adiante. Homens estavam à porta, casaco aos ombros, fumando; um dentre eles, tomava-lhes os nomes:
— Gaspar?
— Cá está.
— Domingos?
— Pronto.
Entravam, um a um, tirando os casacos, dobrando-os ao meio. Turíbio chegou-se, chapéu na mão:
— Com licença dos senhores... É que... Eu venho lá de cima... ‘Stou desempregado. Então, vinha por aqui... Talvez queiram alguém para a enxada.
Um alto, espadaúdo, coçou a barba, e depois:
— Isso é lá com o Sr. Eduardo.
E deu com o queixo para o lado do que tomava os nomes. Turíbio foi para ele, vagaroso, hesitante, tímido:
Com sua licença, hein... É que eu ‘stou desempregado. É... Perdoe o senhor... E vinha para saber se não precisam cá ninguém...
O Sr. Eduardo tinha um cachimbo à boca; tirou-o, olhou do alto:
— Você já trabalhou nisto?
Tantos anos!... Ah! a mim não me ganhavam! — e procurava uma resposta. — Mas o senhor sabe; a gente guarda o seu dinheiro, depois é infeliz...
O Sr. Eduardo franzira a testa. Esteve a pensar, olhava-lhe pra a cara. E depois, para dentro:
— Ó Maturina?!
“Maturina!” Turíbio sentiu que a alma lhe saltava num ímpeto. E de dentro uma mulher veio, chegou à porta:
Assim inda é pior... Agora é só ferver a água.
E Turíbio ergueu-se, apoiou a mão à enxada; olhava o sol morrendo, longe...
— É. Fica pra amanhã... Já o verão entra. O sol vem cedo.
Sacudia a terra presa à enxada; apanhou o casaco, perto, a uma borda de túmulo, atirou-o às costas, pôs a enxada ao ombro. E veio, e dizia:
Porque lá isso é... Não vai a matar. Mas sempre é bom andar pra diante. O que fica feito, fica feito. Não se faz mais...
Tinham-lhe dado um quarto de tábuas, janela para o quadro dos adultos, em frente. Pedira-o, instara por ele. Os outros dormiam à entrada, paredes meias com o administrador. Turíbio, porém, lembrara as coroas abandonadas, fora. “Assim até era melhor para a vigia.” E ficara lá. De onde estavam, já o quarto se avistava, ao fim da aleia. E ele repetia:
— O que fica feito, fica feito... É tempo que se poupa. Não se faz mais.
— É... Mas tu, matas-te. Um homem quer-se trabalhador, mas com saúde. Porque depois, dá-lhe em casa o raio da doença; e é pagar-lhe pr’ali, à toa, e é vê-lo a s’agoniar... Ele vai-se, e os outros é que ficam.
Turíbio concordava:
— Também lá isso, é... Vieram. Ele parou à porta:
— Vou aqui agora a ver...
— Pois então, é o que te digo; um homem quer-se com saúde.
E o Sr. Eduardo seguiu. Turíbio demorou-se um pouco, à porta. Enrolava um cigarro; pusera a enxada a um canto. Por fim, entrou. A noite caía, tênue; e, no céu, ainda claro, a lua, em crescente, surdia, luminosa e doce.
Madrugada alta — inda a manhã não viera — já ele estava vestido, à janela do quarto. Fumava, pondo largas baforadas para fora, através da neblina e da noite. E súbito, por entre árvores, longe, ao luar, um vulto de mulher passou, hesitante e esquivo.
Ele ficou, suspenso, no ar, como se alguma coisa o viesse elevando do chão. Os olhos prendiam-se-lhe àquela figura, distante, negra. Perdeu-a num ponto, viu-a crescer do outro lado. E agora, brotava-lhe uma ideia no cérebro; expandia-se-lhe o rosto. “Vai ver a filha...“ fez, muito baixo. Acendiam-se-lhe os olhos. Tomou da enxada, saiu.
O vulto ia, direito ao quadro dos anjos; passou por ele, numa curva larga. Turíbio seguia-o, agarrado às árvores, oculto por elas. Viu-o parar, seguir depois, dar uma volta, entrar pelo outro quadro em frente. Um túmulo deteve-o; caiu de joelhos. Rezava o quer que fosse, entrecortado de soluços; debruçava-se sobre o mármore, regando-o de lágrimas. E à cabeceira, de um quadro, circulado de perpétuas, banhado da lua, o busto de um homem emergia, amarelecido e sereno.
Turíbio parou; e, para logo, do íntimo, velhos rancores, esquecidos ódios vieram-lhe atropeladamente para fora, sufocando-o. Ela rezava pelo outro, chorava pelo outro! Ouviam-se-lhe soluços, angustiados, contínuos, como se neles a alma inteira, também angustiada, lhe fugisse. Turíbio cravara os dentes nos lábios, mordia-os a fazer sangue; apertava o cabo nodoso da enxada na mão convulsa. Tremia, tremia... Ia-se-lhe fazendo em torno uma atroz noite de loucura e de morte.
Virou a enxada, com a lâmina para dentro. Acertou-a bem, bem segura, bem certa; direita e forte. Curvou-se, chegou-se um pouco mais, com vagar, com cautela; tinha o braço pra trás, a enxada à mão. Esperou... Maturina levara o lenço aos olhos, a cabeça alta. Ele marcou-a, no meio, do lado. Tremia, tremia... Fez um esforço; crisparam-selhe os dedos. A enxada ergueu-se, brilhou, lúcida, no ar.
Vibrara-lha, rápido, na cabeça. Houve um som cavo, um estertor, um côncavo baque oco e surdo. A massa informe do corpo caiu, flácida; distendeu-se. Batia os pés, trêmulos, nervosos, esticados; empinava o ventre, na ânsia de se reerguer. E ele vibrou-lhe a enxada, de novo. Da brecha aberta, mal percebida, púrpuro, o sangue em ondas vinha, corria, manchava o solo; e — tal como se para o alto houvesse partido, num rápido jato rubro — altas, no céu, rubras, púrpuras manchas sanguíneas espalhavam-se pelo nascente.
Turíbio olhava, absorto agora... O corpo aquietara-se; agitava-se apenas a bruscos, trêmulos espaços, no estertor último. Teve um estremecimento mais forte, e ficou, parado, morto. O sangue corria por uma depressão do terreno; era um tênue fio, quase róseo, que se coagulava ao fio gélido da manhã.
Ele moveu-se, como quem desperta; atirou a enxada fora. Voltava a si. Recordava-se de um dia, há muito. Ferira fundo, muitas vezes, muitas vezes, com delírio, com raiva. Levaram-no. Anos decorreram; tudo se foi apagando aos poucos, ódios, memória, tempo, tudo. E recordava-se; olhava em roda, pelos alvos túmulos, pelos ávidos sepulcros abertos. Suava frio. Tirou o chapéu, atirou-o para longe. O olhar deteve-se-lhe na cova ainda mal cheia, da véspera, voltou ao corpo imóvel, fitou-o, volveu a ela. Esteve assim um instante de um lado para outro. Acalmava-se mais. E tomou da enxada, foi para a cova, enterrou-a lá, com força, tirou-a depois, bem cheia, sacudiu-a para o lado. Enterrou-a ainda, tirou-a, para a enterrar de novo. E a terra ficou, espalhada pelo solo, por sobre plantas, aos montões.
Cavava com esforço, rápido. Já de uma derradeira camada, última e leve, irrompia a tampa negra e lúgubre de um caixão. Ele deixou a enxada. Tomou de Maturina pelos pés, inteiriçados, ainda quentes; arrastou-a para perto; e os cabelos dela, de rastros, luzidios e longos, toucavam-se de folhas secas, empoavam-se de lúcidos grânulos de areia, vinham marcando a sua passagem pelo chão.
Deixou-a posta à beira desse que lhe seria o pouso último; agarrou-a então pela cabeça, pô-la ao comprido da abertura. E atirou-a para dentro, para baixo, para bem fundo. Por onde viera, o corpo deixara um rastro de sangue. Ele apagou-o, com a enxada; desfez os largos coágulos sanguíneos; levou-os, empastados, para a cova aberta. Procedia com arte, com vagar, com cuidado — tal como quem numa obra definitiva e completa se absorve. Passava e repassava a enxada pelo terreno; deu-lhe a aparência de um pedaço de jardim, tratado e limpo.
Voltou para a cova. O corpo ficara meio dobrado, ao fundo; ele ajeitou-o, ao comprido. E começou a cobri-lo com a terra amontoada, às porções, grossas, rápidas, brutas. O corpo desapareceu em baixo. Por sobre ele ia a espessa camada de terra subindo, crescendo, pesada do eterno peso do olvido e do esquecimento eterno. Turíbio saltou para a cova, ainda mal cheia. Puxava a terra para si, quase a cobrir-lhe os pés. Por momentos parava, pisava-a com força, atirava-a com o pé para as extremidades. E continuava depois. Passou os dedos pela testa, para limpar o suor; estava calmo, respirava com força, muito, em roda — como um enterrado vivo a quem se houvesse arrancado a álgida laje cerrada e fria do túmulo. Respirava... Mas ouviu passos. O Sr. Eduardo vinha, apressado, sem chapéu; gritou-lhe de longe:
— Que é da Maturina?
Turíbio alçou a cabeça, ficou olhando; hesitava, parecia querer ocultar alguma coisa. E, apoiado à enxada:
— A... Eu...
— Tu viste-a... — e o Sr. Eduardo agarrou-o pelo ombro. — Fala ou ponho-te na rua!
Turíbio levara a mão à cabeça: — Homem...
— e alisava o cabelo, por trás da orelha —, há bocado, inda o dia lá vinha na casa de Cristo, vi-a passar por ali...
Apontava a aleia, perto. O Sr. Eduardo sacudiu-o:
— E depois?
— Depois, foi lá para os lados da porta... Havia lá um senhor alto, um que já ontem andou por aí. Estiveram a conversar juntos, e foram-se. Foram embora. Ela levava uma trouxa.
O Sr. Eduardo fê-lo voltar-se, com um repelão. Agarrou-o pela gola:
— Levava uma trouxa? E o xale, ia de xale?
— Levava um xale preto.
Fora-se, pregara-lha na bochecha! Turíbio calara-se... O Sr. Eduardo repeliu-o, com força. Fê-lo cambalear. E expectorou:
— O raio da burra!
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