O velho vovô
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
O
trapiche estava no seu antigo posto de honra, suspenso por uma elevada escada,
a cujos pés havia poços deixados pela maré, que se retraíra, e o oceano
parecia magro, com os arrecifes à mostra, fugindo timoratamente, encolhido,
medroso da terra. Uma interminável faixa de areia molhada, brandamente côncava,
servia de guarda-pisa, entre o frouxel das ondas e o limiar da povoação. Em presença
dessa depressão geral do oceano, sentia-se a sensação de quem desce, — a falta
de fôlego de uma vertigem.
Pausadamente,
homens quase nus, de tanga e ceroula curta à guisa de calções, entravam pelo
mar adentro e abeiravam-se, com água pelos peitos, dos lanchões que oscilavam
apenas, carregados de mercadorias. O calor do sol untava de suor a esses
trabalhadores, de linda musculatura atlética, que suspendiam fardos, com
admirável precisão mecânica, e traziam-nos para o seco. Outros, em movimento
contrário, embarcavam algodão e café e couros, desempilhando altas montanhas de
gêneros acumuladas pela areia, entre latadas de escaleres e esqueletos de lanchas
velhas. Ao longe, se avistava o branco velejamento das jangadas que repousavam
fora do alcance das ondas. E, por toda parte, como cercando os domínios do
velho trapiche, espalhavam-se massas complicadas de ferros, quais membros
esfacelados de um corpo gigantesco e bruto. Os navios ancorados, longe, lá
estavam como abandonados no seio das águas, apenas visitados por tanchões
vagarosos. E, de quando em vez, no deserto azul, passava a alvura imponente de
uma jangada.
Recostado
ao peitoril do galpão que serve de vestíbulo à carcaça roxo-terra do velho
trapiche, eu abismava o olhar nesse panorama vivo de sol, de terra e de águas.
O firmamento era uma tela suspensa, que se encurvava, que se estirava pelos
ignotos confins do poente, que se cosia, rumo do norte, no debrum longínquo do
céu com o mar. A cidade, montada sobre mansos outeiros, onde outrora rastejaram
o zéfiro e as ondas, parecia vir descendo para as areias brancas, seio
amorenado pelo resfolegar da luz. Os tetos, como escudos de tartarugas, se
agachavam ebriamente sob os tufos aéreos dos coqueiros, que dedilhavam uma
harmonia vaga, impalpável, com luzimentos quentes, e roçavam ilusoriamente no
azul que nos abafa com aquele bojo infinito, que nos persegue por toda parte,
ao campo, à rua, pelas frestas, e pelas nesgas que se entrevê de dentro mesmo
das habitações; esse azul que nos enraiva, que desafia o olhar ambicioso do
artista para devastar o além dessa casca terrível que os antigos foram
obrigados a julgar solidamente brochada de estrelas, de lua e de sol.
Voavam
nuvens, verdadeiros flocos de espuma, esparsas, macias que pareciam roçar nas
nossas faces como cabelos finíssimos de crianças. Aquele azul sublime
entrava-me pelas narinas!
E,
finalmente, o mar enchia. Aqueles rochedos negros que emergiam à altura do
porto, iam ser abafados. O comércio não podia mais refrear o ímpeto da onda.
Soava a hora do paralisamento. Ai daquele que se arriscasse ao bruto! Os
barquinhos e lanchas impavam aflitivamente. E só a jangada é que se aventurava
a passar audaciosamente o rolo do mar.
Entretanto,
o seio virgem das areias era, pela primeira vez, mordido pelo dente da ciência
humana. O calmo inglês fazia aquele mesmo homem de tanga e ceroula à guisa de
calção, batizar a sua terra, pagã de indústria; e a fúria do mar batia-se
tolamente, como os heróis da guerra ante os obscuros mineiros e os profundos
pensadores: enterrava-se o primeiro pegão do viaduto, a primeira molécula
daquele gigante que estava esfacelado pela praia afora.
E
a massa roxo-terra do velho trapiche balançava-se na maré cheia, como barco
encalhado, oco, apenas com os camarins de empregados e apetrechos de
embarcações; o lampião da vigia apagado, fumaçoso, com o azeite frio; a luz do
dia entrando pelas gretas; — ele caía aos pedaços, triste pela decepção,
macambúzio! — ele, o velho vovô, do tempo em que a minha avó dizia à minha
inocência de criança que os meninos vêm é do mar, quando eu lhe perguntava
donde a gente nasce.
Amo
tanto aquelas tábuas, e aquelas ondas bravas de cujo turbilhão eu via a cada
instante rebentar um nenenzinho!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...