O recruta
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Era um rapaz de vinte e dois anos, criado à solta, no campo. Desde pequenino, habituara-se à vida ao ar livre. Mal rompia a aurora, já ele andava, ao sol e à chuva, descalço, pulando e correndo, como cabrito montês. Aos oito anos, já montava em pelo os cavalos mais bravos. Com essa existência de exercícios fortes, fizera-se um colosso. Tinha a face corada, os cabelos negros e duros, uma musculatura possante, espáduas largas, pulso de abater um touro com um soco.
Não aprendera a ler. Fora criado para, de enxada em punho, lutar com a terra, para lidar com os bois, para arcar com os trabalhos fortes da lavoura. Nada tinha de seu. O pai, ao morrer, deixara-lhe, como única herança, a saúde, a força e uma enxada. E era com isso que ele vivia, indo de roça em roça, à procura de emprego. E empregos nunca lhe faltavam, porque não havia, em toda aquela redondeza, quem com mais justiça ganhasse o pão de cada dia. Era sempre o primeiro a sair para o trabalho, e o último a recolher.
Nunca ninguém o vira triste. Com o grande
chapéu desabado, atirado para a nuca, ou estivesse curvado sobre a terra
cavando-a, ou pela estrada, ao sol ardente, viesse, de aguilhada em punho,
guiando os bois morosos, — o Anselmo cantava sempre, com a sua larga voz
alegre, que animava os companheiros, e tornava mais leve a canseira da tarefa.
Os velhos, quando o viam passar, perguntavam sempre: “Como vai essa mocidade,
Anselmo?” E não havia quem não o amasse.
Também, não tinha dinheiro junto. O que
ganhava gastava. Ninguém como ele sabia, nas noites de festa, tirar da viola as
modinhas ternas. E era feliz, sem ambições, contentando-se com tão pouco.
Quando chegou ao sertão a notícia da
guerra do Paraguai, o terror ganhou toda aquela gente simples, para quem o
mundo se limitava àquelas léguas de terra, de cujos limites nunca havia saído.
O recrutamento! — falava-se nisso, como na morte, com espanto e medo.
Dizia-se que ninguém seria recrutado.
Mas a alma desconfiada do caipira bem adivinhava que essa declaração das
autoridades era uma astúcia... Soube-se um dia que chegara ao lugar um
destacamento de soldados, comandados por um cabo. Houve quem fugisse. Anselmo
não fugiu. Mas quando se viu recrutado, um desespero terrível lhe encheu o
coração.
Não era covarde! Muitas e muitas vezes
ele, sozinho, lutara contra dois e três... nas brigas de arraial, nunca fugira
das facas, que alumiavam na escuridão. Não sabia de perigo que o amedrontasse.
E costumava dizer que só tinha medo de si mesmo, daquele gênio arrebatado, que
não aturava afrontas. Não era covarde, não: o que o desesperava era o abandono
forçado daquela existência, em que nascera e crescera, o apartamento daqueles
lugares amados, daquele trabalho que era um hábito velho, daquela gente toda
que era a sua família, a sua gente, o seu povo. Para a sua alma inculta e
primitiva de filho da roça, a Pátria não era o Brasil: era o pedaço de terra
que ele regava com o suor de seu rosto. Fora daquilo não havia mais nada. Que
tinha ele com o resto do mundo? Por que havia ele de vestir uma farda, e ir
morrer abandonado e desconhecido, sem uma amizade, sem uma simpatia, numa terra
estrangeira, por causa de gente que nunca vira, por causa de questões que não
entendia e que não eram suas?
Nunca saíra do seu sertão. Aos vinte e
dois anos, ainda não imaginava o que seria o mar. Se os paraguaios viessem até
suas roças, então sim: ele e os outros saberiam repelir os invasores; seria o
seu dever, a defesa do seu ganha-pão, do seu trabalho, dos seus hábitos. Mas,
ir defender a Corte, ir defender o Sul, ir defender o Imperador!... que tinha
ele com tudo isso?
Todas essas reflexões lhe passavam pela
cabeça, à noite, recolhido, com uma dúzia de outros, à cadeia do lugar, como se
fosse um criminoso... e já, antes de partir, tinha saudades daquele céu
querido, daqueles matos tão conhecidos, daquela gente com quem se criara. E
tinha medo, — tinha medo, ele tão valente! — de morrer crivado de balas
paraguaias, longe dos seus... depois, ao seu caráter independente, à sua alma
livre repugnava a escravidão da vida militar. Não ter vontade própria, ser
governado com uma máquina, caminhar para a morte ao simples aceno de um chefe,
sem ver a utilidade desse sacrifício, — tudo lhe parecia uma grande desgraça e
uma terrível injustiça.
No dia seguinte os recrutas seguiram
para o Rio de Janeiro. Havia pressa. A guerra ia acesa ao Sul, e o Brasil
precisava das vidas de todos os seus filhos. Os companheiros de Anselmo iam,
como ele, com a alma enlutada de tristeza. Também como ele, não compreendiam a
violência do recrutamento, nem reconheciam à Pátria o direito de assim se
apoderar da sua mocidade, para a atirar aos horrores do campo de batalha.
Triste viagem! Alguns, homens feitos,
robustos e valentes, choravam como crianças. A gente do lugar assistiu à
partida.
Havia mães que amaldiçoavam a guerra,
gritando, torcendo os braços desesperadamente. Havia noivas que desmaiavam.
Quantos daqueles voltariam?...
A chegada ao Rio de Janeiro foi uma
tortura. Os recrutas estavam tontos, com aquele barulho, com aquele movimento.
Como estava longe a tranquilidade da vida rústica! E que rigor, e que tormento
no quartel! Na primeira noite, quando se viu, já fardado, estendido sobre a
dura tábua da tarimba, Anselmo teve uma revolta.
Sentiu desejos de fugir dali, ainda que
para isso fosse preciso matar alguém. Agitava-se, sacudia-se, mordia os pulsos,
afogava na garganta os gritos de cólera e as imprecações. Por fim, essa crise
terminou por um choro convulsivo. Dormiu, cansado: e ainda era noite escura,
quando o acordou um toque de clarim. Era a hora do primeiro exercício.
Começou então a sua aprendizagem
militar. O oficial inferior, que comandava as manobras, era brutal. A sua voz
tinha asperezas que ofendiam como bofetadas. Quando um dos recrutas errava,
dizia-lhe palavras duras, insultos pesados. Uma vez, como Anselmo não o
ouvisse, porque estava pensando na sua roça tão calma e tão bonita a essa hora
de sol ardente, o oficial deu-lhe no peito, com a folha da espada, uma
pranchada forte. O rapaz sentiu o sangue subir à cabeça. Mas a infelicidade já
o tornara submisso. Conteve-se, e obedeceu.
Já no terceiro dia, porém, sentiu-se
mais resignado com a sua sorte. Familiarizara-se com os exercícios. Já se ia
habitando ao rigor da disciplina. Já se interessava pelas manobras. Já prestava
atenção às vozes de comando. Já ia compreendendo que, sem a brutalidade do
comandante, nada se poderia conseguir de homens como ele, que nunca tinham
visto aquilo, e cuja inteligência era refratária à compreensão daquelas
palavras e daqueles movimentos calculados.
Depois, no quartel, começou a conviver com os
soldados antigos. Tomou parte nas conversas, que se tratavam no “corpo da
guarda”. E principiou a operar-se no seu espírito uma transformação radical. A
convivência fazia-o sentir por aqueles homens um afeto de irmão. E tanto ouvia
amaldiçoar os paraguaios, que principiou a amaldiçoá-los também, odiando-os de
longe. Via agora bem o engano em que estava, quando acreditava que a Pátria era
o seu sertão, e nada mais. Aqui, tão longe do sertão, vinha achar o mesmo céu,
a mesma língua, quase os mesmos costumes. Em torno dele, só se falava na
guerra. Lopes era odiado. Lopes aparecia aos seus olhos como um monstro, cuja
única ocupação era matar e torturar os brasileiros. E um dia, Anselmo
surpreendeu-se a dizer, com os olhos brilhantes de ódio: “Ah! Quando chegará o
dia de irmos dar cabo daquele malvado!...”
O dia chegou. O seu batalhão ia partir.
Dia de sol. Ninguém reconheceria naquele esbelto moço que ali ia, marchando com
garbo entre os outros, o bisonho caipira, que tanta repugnância tinha outrora
pelas coisas da guerra.
Anselmo marchava. E, ao compasso da
marcha, ia cantando baixinho, entre dentes, uma daquelas mesmas alegres
modinhas da roça, que a sua voz soltava na imensa extensão dos campos, quando,
curvado sobre a terra, a cavava, ou quando, pela estrada ao sol ardente, vinha,
com a aguilhada ao ombro, guiando os bois morosos.
As ruas estavam cheias de povo. Das
janelas, senhoras acenavam com os lenços. Uma banda de música precedia o
batalhão. Tocava uma marcha de guerra. Os instrumentos de metal giravam alto,
entre as pancadas secas dos tambores. Que sol! Que entusiasmo! Anselmo tremia.
Parecia-lhe que o inimigo estava ali perto, ao alcance da sua espingarda:
parecia-lhe que ia encontrar, ao dobrar uma esquina, os exércitos paraguaios. E
ambicionava cair imediatamente em pleno combate.
No cais, a multidão abria alas. E quando
o batalhão estacou, quando se calou a música, o povo prorrompeu em vivas. À
espera, perfilados, muitos oficiais, cujas fardas, cobertas de galões,
brilhavam ao sol, examinavam a tropa disciplinada, bem disposta, garbosa no seu
fardamento novo. De repente, a música tocou os primeiros compassos do hino
nacional. Um vento brando, vindo do mar, agitou a bandeira brasileira, que
estava no centro do pelotão. A bandeira desdobrou-se, palpitou no ar,
espalmada, com um meneio triunfal. Parecia que o símbolo da Pátria abençoava os
filhos que iam partir, para defendê-la.
E, então, ali, a ideia sagrada da Pátria
se apresentou, nítida e bela, diante da alma de Anselmo. E ele, compreendendo
enfim que a sua vida valia menos que a honra da sua nação, pediu a Deus, com os
olhos cheios de lágrimas, que o fizesse um dia morrer gloriosamente, abraçado
às dobras daquela formosa bandeira, toda verde e dourada, verde como os campos,
dourada como as madrugadas da sua terra.
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