O "rato"
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Vivia de esmolas num estreito e úmido quarto de estalagem, onde mal cabiam os móveis: a cama onde jazia prostrada a moléstia, uma pequena mesa, duas velhas cadeiras e uma arca. Acompanhava-a o filho, um rapazola de nove anos, sadio e robusto, de uma tal viveza que todos na estalagem não o conheciam senão pela alcunha: o Rato.
Era um dos primeiros que acordavam e,
ainda escuro, fazia toda a limpeza do aposento, mudava a água nas bilhas,
deixava ao alcance da mão da paralítica a cafeteira e o pão, e saía
cantarolando. Saía, porque a mãe, julgando-o ainda tenro e fraco para o
trabalho e não dispondo de recursos para manter-se, pedira um atestado ao
médico que, por misericórdia a tratava e, entregando-o ao pequeno, dissera: —
Vai e fica à porta das igrejas: e aos que passarem mostra esse papel e pede uma
esmola para tua mãe.
O pequeno saiu, e, à noite, tornando à
casa com algumas moedas, entregou-as à mãe; mas, no mesmo momento, rompeu em
pranto, atirando-se, soluçante, sobre a velha arca.
A paralítica, atribuindo a angústia da
criança à quantia escassa que trouxera, procurou palavras de consolo: — Não
chores, meu filho. Hás de ser mais feliz amanhã; o que trouxeste basta para
passarmos o dia. Deus será por nós. Não chores.
O pequeno, porém, longe de consolar-se,
afligiu-se ainda mais; e, à noite, a paralítica que velava ouviu ainda durante
algum tempo os soluços do filho. De manhã, porém, cedo, como de costume,
levantou-se, e, depois do serviço, foi beijar a mão à velha enferma, e partiu.
Era tarde, quase dez horas da noite,
quando o Rato apareceu na estalagem cantarolando. A mãe, que passara o dia cheia
de cuidados, mal o viu entrar falou com certa severidade:
— Ah! Meu filho, a que horas vens? Muito
deves ter esmolado para que só às dez horas da noite voltes a casa!
O Rato, porém, risonho, beijou a mão da
enferma, e logo, metendo as mãos nos bolsos, pôs-se a tirar moedas e notas
atirando tudo para cima da cama. A paralítica, sorrindo, disse:
— Então, bem te disse eu que hoje havias
de ser mais feliz, meu filho...
— Sim, minha mãe, fui muito mais feliz,
principalmente porque ninguém me injuriou.
— Como! Pois houve alguém que te
injuriasse, filho?
— Sim, minha mãe, ontem. Como a senhora
me havia ordenado, fui ficar à porta da igreja. Quando cheguei, já havia lá
muitos pobres, uns cegos, outros aleijados; meti-me entre eles e logo começaram
as injúrias, porque eu era uma criança sadia e forte que ia para ali vadiar,
quando podia estar empregando o meu tempo em alguma coisa útil. Uns mandavam-me
para a escola, outros para a oficina; e, se aparecia alguém, vendo-me avançar
com o papel na mão para pedir, empurravam-me, davam-me beliscões, e um
atirou-me uma bordoada às pernas com a muleta.
“Tudo isso, porém, fazia-me rir; o que
me fez chorar foi o que me disse um velho que levava um pequeno pela mão, um
pequeno do meu tamanho.”
“Quando eu lhe pedi esmola, ele olhou-me
carrancudo, meteu os dedos no bolso do paletó, tirou um níquel e ficou algum
tempo a olhar-me; depois vagarosamente guardou a moeda e, puxando o menino,
disse baixinho: — Verás, vai daqui direto para a taverna... — O pequeno, mamãe,
olhou-me de tal modo, que eu senti o sangue subir-me ao rosto e as lágrimas
saltarem-me dos olhos. Vendo-me chorar, o pequeno teve pena de mim e falou ao
pai. Pararam, e eu enxugava os olhos, quando ouvi a voz do menino: — Toma! —
Olhei, e vi que ele me estendia a moeda. Estive para recusar, mas olhava-me com
tanta meiguice que não tive ânimo. Recebi-a, agradeci e guardei. Logo, porém,
que os vi entrar na igreja, tirei-a do bolso, dei-a a um velho cego que estava
sentado perto de mim, e desci. Desci os degraus, disposto a voltar para casa,
mamãe, mas lembrei-me de ti, lembrei-me que nada havia em casa e pensei em
pedir trabalho em algum lugar...”
“Foi então que encontrei o Vicente com
um maço de jornais, apregoando. Pedi-lhe alguns e, fazendo como ele, fui
vendendo, e com tanta facilidade, que não me ficou um só. Ele, então, ficou de
arranjar-me maior quantidade para hoje e não mentiu.”
“Passei o dia todo vendendo jornais,
primeiro os da manhã, depois os da tarde; e à noite o Vicente convidou-me para
acompanhá-lo até a porta do Liceu, onde aprende, e onde quero que mamãe me faça
entrar, para que eu não ande a pedir aos outros que me ensinem a apregoar as
notícias dos jornais. Hoje ganhei mais do que ontem: e estou contente, mamãe,
porque ninguém me tomou por vadio.”
“Quando eu for mais forte, irei para uma
fábrica, e tu não terás necessidades, nem ninguém me falará mais com o desprezo
com que me falou o velho que me julgou tão mal...”
A paralítica, com os olhos rasos d’água,
tomou a cabecinha loura do filho junto ao colo, e, beijando-a, disse
comovidamente:
— Fizeste bem, meu filho; fizeste bem: a
humilhação é a pior das afrontas. Fizeste bem, meu filho, e eu te abençoo.
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