9/15/2017

O milagre do convento (Conto), de Fialho de Almeida


O milagre do convento

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Ficava o convento a meio das vinhas, numa larga planície florente e verde, em que as oliveiras punham a tristeza bíblica das suas comas cinzentas, como o zinco oxidado.

A leste corria o enorme espinhaço da cordilheira, alteroso e pávido, cuja nudez agressiva de linhas se coloria de mancas plúmbeas e vermelhentas, de que os penedos destacavam selváticos, lembrando ruínas de monumentos celtas. Num campo de visão esplendoroso e infinito, alargava-se para o sul o horizonte azulado na massa de ar, semicírculos de planície que mais e mais se iam perdendo no esfumado das exalações longínquas.

Do campanário da igreja, o olhar que se alongasse, transpunha daquela banda, livremente, a fronteira de Espanha, no seu voo silencioso de andorinha inquieta. Em torno ao velho casarão, a ruína dos muros da cerca, uma: alta cruz truncada, e dois ou três arcos de um antigo aqueduto de abastecimento, assinalavam a expulsão violenta dos pobres capuchos, primeiros senhores da casa até às lutas da última guerra civil. O edifício e a cerca, vendidos a um fidalgarrão da Vidigueira, derruíam vagarosamente, à míngua de reparos. O fidalgo arrendara tudo, abandonando a província, onde só voltava de ano a ano para vender herdades ou hipotecar pastagens e azinhais. Na cerca, os amplos tanques de pedra estavam desconjuntados e secos, cobertos de cicutas viridentes; a canalização atulhava-se de raízes e moitões de lodo das últimas enxurradas; caíra o aqueduto; e à boca lôbrega das cisternas, as figueiras bravas irrompiam, alongando os troncos brancos, em que rebrilhava o verde de largas folhas de recortes duros, como antigas faianças de Koblenz. Debaixo das nogueiras, cujo aroma rescendia morno a cada respiração da aragem, torciam-se as heras nos bancos de granito, estendendo tentáculos no seu deboche de vegetação verde-bronze e subindo, como um desejo, pelas fibras das árvores colossais. Uma estátua de apóstolo mártir caíra de encontro a um castanheiro enorme, cujas palmas faziam cúpula sobre essa cabeça vergada, de granito. Ao longo da ribeira, os plátanos e as faias postavam-se como avançadas, num surdo murmúrio íntimo de seiva. E para além, o laranjal espesso, vergado até abaixo, alargava-se, embalsamando o ar, onde as pombas fugiam no azul pálido, como almas que, purificadas, penetram os umbrais serenos de bem-aventurança. O convento, de paredes cinzentas, telhados cobertos de erva e janelinhas de celas, desamparadas como órbitas sem olho, pesava na paisagem viva, com um ar de mendigo que esmola, à beira dos caminhos. Acima da grande massa oblonga de muros, fortalecidos a gigantes de cantaria, as duas torres sem cúpula, encimadas de pequenos obeliscos de alvenaria musguenta, de cujas cristas o furação cuspira os cata-ventos, erguiam-se tristemente, como um desenho tosco e primitivo. Nos claustros, o feitor da propriedade estabelecera tulhas do lagar de azeite, cobrindo a taipa uma das faces do quadrado de arcarias, rasgadas sobre o pátio central — onde os limoeiros vinham espalmar toda uma tapeçaria de folhas curvas e espinhosos troncos, salpicada pelo ouro baço dos frutos, ovalares e rescendentes. Uma legião de pássaros vivia nesse pátio, na ebriedade festiva dos aromas; ao centro, o poço de pedra, de relevos brutos, especavam no ar a roldana negra, que tinha, ao anoitecer, um perfil de forca viúva. No tempo dos frades, as festas cheias de rumores do velho órgão, de incensos e flores chamavam dos arredores as aldeias e farta colheita de esmolas. Agora a devoção por essa velha igreja em ruínas, de altares carunchentos e abóbada fendida, esmorecia lentamente. Falavam de medos errantes pelos claustros, soluços pelas escadas de pedra, e vozes que vinham gargalhar blasfêmias à boca do poço quadrado do pátio. Aparecera mãe uma filha do eremitão. E os santos, toscamente esculpidos e miseráveis nos seus farrapos de túnicas, não inspiravam respeito. O Senhor dos Passos, com uma enorme cabeça de marfim, estava aliviado a um canto, do peso da cruz, que o sacrista bêbedo partira uma noite, depois da procissão. Andavam aos pontapés pelo carneiro, amolgadas e sujas, lâmpadas de latão, verdentas de azerve; os castiçais coxeavam cobertos de cera pingada e moscas mortas. E por um buraco do coro, alta noite, piando escarninhamente, as corujas entravam para os ninhos da capela-mor, famintas do azeite das lamparinas. Duas vezes por semana, domingos e quintas, Manuel do Cabo, sacrista, mais o padre Miguel de Deus, saíam da aldeia, para celebrarem missa no convento, a que só assistiam o eremitão e a filha, os moços da horta mais o feitor, gente sombria, com o ar estúpido dos ignorantes maus.

Uma noite, padre Miguel de Deus apareceu morto na cama e ficou vago o lugar de capelão do convento. Só depois de instâncias repetidas é que padre Nazaré aceitou o cargo. E, torcendo o focinho bilioso de egoísta, dizia para Manuel do Cabo, uma quinta-feira, apontando a igreja:

— Isto não deixa nada, mas, com reformas... 

Manuel do Cabo, que era lido em autos, histórias de Carlos Magno e princesas Magalonas, não deixou sem comentários a sentença do Sr. padre Nazaré — um finório, como se dizia na loja do Burjaca. Mas, com reformas... meditava ele à lareira, enquanto a filha Escolástica, junto da candeia, fazia renda pensando em ganhões de braços robustos. Que diabo de reformas seriam? A igreja não tinha rendas, nem alfaias, nem conserto sequer. A miséria ia, esfrangalhada e imunda, das toalhas dos altares aos dosséis desbotados da capela-mor. Começava a estalar a carnação dos mártires; nosso padre-mestre São Domingos perdera pouco a pouco as orelhas; havia um São Luís carunchoso, em cujo ventre os ratos faziam residência segura, por todo o ano. E falar o padre Nazaré em reformas!...

Chegou o Verão daquele ano, tempo das romarias. 

Cada domingo era consagrado à sua ermida — à Senhora de Guadalupe, a Santo Antônio, a Santa Clara, a São Pedro das Cabeças, a São Tiago, à Senhora das Relíquias... E as aldeias, vestidas de galas, raparigas de xales escarlates e tranças postiças, cavadores de calças curtas, enormes pés e grosseiros chapéus de borla nas nucas, velhos e crianças nos seus burros, nos seus machitos e nos seus carros de mato iam em chusma depois do jantar e meio-dia batido nos sinos da paróquia, estrada fora, através das searas maduras, e das vinhas verdes opulentas de cachos, trepando colinas e chapadas de olival, em direitura às igrejinhas brancas, abertas com um encanto de fé ingênua nas alturas, e em contemplação perpétua de horizontes sem termo. Cada uma daquelas imagens de bem-aventurados, toscamente esculpidas e de uma pintura bárbara, possuía para a raça crente dos campos a especialidade de um prodígio, um ramo de milagre original.

Santo Antônio, por exemplo, de três palmos de alto e o rostinho garoto de um aluno desinquieto, adorado num cerro enorme de montado, e vizinho de um moleiro borrachão, protegia os namoros. Era o mais querido dos arredores. Nas tardes bonitas de Primavera e nos domingos abafadiços de Verão, a gente moça vinha bailar-lhe e cantar-lhe no adro, com um desejo de núpcias traduzido em clarões de olhar. Uma a uma, as raparigas iam coser-lhe no manto, sorrateiramente, pequenos bilhetes escaldando de fé e de pecado também, em que se suplicava a intervenção da bendita imagem no bom êxito de uns amores que qualquer dia rebentavam em escândalo grosso — não tinha dúvida nenhuma! 

São Pedro abria as portas do céu, e o seu cortejo compunha-se de velhas beatas supersticiosas e antigas fandangueiras alegres, cuja fé lhes chegara com rugas e cabelos brancos, após anos e anos de rasgada pândega. E todos esses solitários, invocados a propósito de secas insistentes, colheitas ruinosas, implacáveis Invernos, doenças, sezões, maus-olhados, bruxedos e raios, gozavam no Verão da sua festa, com música e fogo-de-vistas, sermão, tourada e procissões garridas à roda da igreja, ou as mais das vezes até ao povoado e ao som de uma foguetaria atroadora. Os santos do convento, nada; Mas, com reformas, dizia padre Nazaré. Qual reformas, nem qual diabo! acabava Manuel do Cabo por acrescentar. 

Um dia, descendo da torre, onde fora descobrir um famoso ninho de pombos bravos, reparou num cubículo do coro, a um canto, nuns alfarrábios esquecidos, poentos e rendilhados pelas arganaças. Curioso como era, nunca para tal olhara. Agarrou num dos cartapácios e veio para baixo. Torceu primeiro o gasnete aos borrachos do ninho e à pomba mãe que surpreendera. 

— Que rica fritada não faria a Escolástica daquela gentinha toda, hem? Um almoço de rei! — dizia Manuel do Cabo, sacudindo a poeira do livro com as fraldas de uma cruz partida a um canto, e noutro tempo alçada à frente da comunidade dos capuchos, pelos campos fora, em dias de festa.

Abriu a grossa capa de pergaminho e leu: Crônica dos Capuchos, em largas letras vermelhas.

— Escuso de ler — ponderava o desdenhoso Manuel do Cabo —; amigos de raparigas, de vinho e raposeiras ao sol, de pança para o ar. Medo aos tiros, latim por qualquer coisa, e uma cantarolação do inferno nas missas. Malta! Conheci o guardião: que grandessíssimo bêbedo!

Como entardecia, fechou a porta da igreja, meteu o livro no alforje mais as alvas sujas de padre Nazaré, e, montando no Ginaia, jumentinho podre e peludo, desceu para a vila. Era pelas eiras; a perder de vista, de ambos os lados da estrada, alongavam-se sinuosamente pelas colinas as courelas ceifadas, cujos torrões secos dos calores tropicais esboroavam ao menor atrito. Os rebanhos percorriam, de banda a banda, os largos trechos de campo, fazendo um concerto de chocalhos e uma floresta de chifres.

No horizonte formidável, murchavam docemente as últimas eflorescências de luz. De todos os lados as árvores, com os seus braços de ciclopes negros, pareciam curvar-se numa saudação benévola, que os melros, os melharucos, os papa-figos, as calhandras e os verdelhões repetiam, ampliando, vocalizando, num coro estrondoso, sonoro, harmônico e incomparável. As vinhas forravam de espessos tapizes a terra calcinada, de que se erguiam as figueiras de largas folhas e troncos brancos, num espreguiçamento de sesta. Desenhavam-se para o longe, em curvas francas, os pendores das serranias agras, afogados na exalação serena da tarde; de todas as veredas saíam para as eiras récuas de possantes machos carregados de espigas, e pelas clareiras estalava em notas vivas o rumor das cantigas imaginosas. Manuel do Cabo ia dando boas-tardes aos ranchos de ceifeiras que encontrava. À entrada da vila, encontrou padre Nazaré chupando um cigarro, enquanto no calcadouro da eira os moços retraçavam as espigas, a malho. E à noite, depois da ceia e aceso o cachimbo, lembrou-se de folhear o alfarrábio, a passar um bocado de tempo. Leu num cabeçalho do capítulo:

“De como Jesus Nosso Senhor se mostra prodigiosamente aos seus humildes servos capuchos, e da narração dos milagres sucedidos no convento de Santo Antônio de Vila Alva.”

— Pois, sim, sim! — disse Manuel do Cabo, com desdém. Mas leu sempre. 

“E além dos muitos prodígios em que a misericórdia divina se patenteou aos nossos irmãos, sarando grande cópia de leprosos, curando enfermos e fazendo sair o inimigo do corpo de várias mulheres, a súplicas do nosso padre mestre, Frei Antônio da nossa Senhora, se relata um assombroso milagre que deixou prostrados em fé quantos tiveram a glória de o presenciar. Não poupa Deus os pecadores do mundo, nem retira aos que se arrependem e conquistam a graça, suas mercês e favores, que únicos são verdadeiros neste viver de desenganos..." 

— Tá! tá! — fazia Manuel do Cabo, como quem conhece o terreno que pisa. — Malandrice no caso!

“Em o ano de mil quinhentos e setenta, por uma noite de Janeiro, estando no convento de Santo Antônio de Vila Alva todos os nossos irmãos recolhidos nas suas celas e entregues à guarda de Deus, pois como disse o bem-aventurado São Francisco de Sales...”

— Pro diabo, mais ele! — comentou Manuel do Cabo, voltando a folha sem olhar a citação.

“Se ouviu grande grita na igreja e a modos rugidos de besta-fera, no meio de copiosos prantos. E, despertada a comunidade, se ouviu uma voz que dizia: Ide-vos, tentador! E todos se prostraram, em oração, para que Deus Nosso Senhor não desamparasse seus humildes servos em tamanha agonia e perigo, a fim que as suas almas pudessem desfrutar a bem-aventurança, que gozam no seu reino tantos santos e patriarcas, pois como disse...” 

— Esta cambada metia tanto latinório nos livros, como vinho no bucho. Ora a súcia, senhores!... 

“Mas o guardião Frei Antônio da nossa Senhora, de virtuosa prática e varão inspirado do Céu, veio a eles para que cobrassem ânimo, e encaminhando-se todos para a igreja viram um grande cão preto, lançando fogo pelos olhos e boca, que fazia pavor, tão furibundo estava de ver. E no altar da milagrosa imagem do Senhor dos Passos, um leigo notou os castiçais derribados, o frontal desfeito e coberto de babas malignas. E vindo todos, foi visto agarrado à cruz do Redentor um noviço entrado de pouco, por nome Serafim, que prostrado em êxtase dava graças a Deus por se haver escapado das garras de Satanás, que outro não era o tinhoso cão negro, que fora visto em fuga.

E todos em joelhos deram graças por tamanho prodígio. Aproximando então uma lâmpada da verônica da sacratíssima imagem do Senhor dos Passos, notou Frei Antônio que esta chorava um choro de sangue de agonia milagrosa. E erguendo a voz ordenou a todos os irmãos que ali estavam se prostrassem de novo e fizessem por observar, em tudo, quanto recomendam os sábios doutores da Igreja, cultivando a fé e espalhando a virtude quotidianamente...”

— Naquele tempo chorava — ia dizendo velhacamente o sacristão. — Hoje, qual!... Partem-lhe a cruz e não abre bico; rasgam-lhe a túnica, e moita! Como diabo fariam eles a choradeira?...

Nisto bateram e entrou padre Nazaré. Deu com os olhos no livro e foi logo observar o trecho.

— Então você agora dá-se à leitura de coisas antigas, hem? Crônicas e frades, etc...

— Hum! Pouco. Era pra chamar o sono.

Padre Nazaré pôs o dedo no capítulo do milagre e olhando de esguelha o sacrista:

— Quanto lhe devem a você no convento?

— Seis meses certinhos... faz hoje. Nove mil réis! Se os apanho, nem acredito! Chiam-me no papo.
— O mesmo cá por casa. Leu isto?

— Não tinha outra coisa...

— E que diz, que diz?

— Eu? E vossemecê, padre Nazaré?

Olharam-se. Manuel do Cabo ria com a sua figura podenga de campônio, olhinhos de malícia precavida, um tamborilar de dedos na tampa da arca.

— Que grande milagre! — fez com ênfase untuosa o padre Nazaré.

— Que grandessíssimo! — juntou Manuel do Cabo, não se sabendo se falava do prodígio, se do capelão.

— Como já se não fazem hoje — ecoou saudoso o padre, repotreando-se, com os bugalhos dos olhos nos seios da Escolástica, entretida a esburgar as ervilhas secas.

— Pouca virtude hoje! — disse o sacristão. — Os tratantes são como água de pedra... — E com profundeza convencida, dando uma risada bronca: 

— Mas naquele tempo eram maiores, vá com Deus!

— Hum! — opinou padre Nazaré. Puseram-se a falar no enterro daquele dia, da velha D. Isaura, uma ricaça da terra. A Escolástica quis saber se tinham distribuído esmolas e de quanto.

— Tostão!

— Não se alargaram muito, a bem dizer.

— Vamos com Deus, não foram más. Quando foi do doutor Bentes, nem cheta apareceu.

— Esse sim! Tomara a mulher mais prós amigos. — E desdenhosa: — Que, segundo me contaram... 

— Não digas asneiras, sua tola, não digas asneiras — clamou azedamente Manuel do Cabo, que amava a discrição e a harmonia recíprocas. — Você viu? 

Deram nove horas, no relógio da torre. E o sino da câmara correu, segundo a velha usança.

Padre Nazaré levou o sacrista para a porta da rua e disse em voz cautelosa, aproximando muito a cara da orelha do outro:

— E se o Senhor dos Passos chorasse ainda? 

— Está lá pra isso!

— Homem, às vezes... 

— Então? — fez Manuel do Cabo, à espera que ele dissesse tudo.

Padre Nazaré descreveu então numa linguagem arrastada e mole a rodilhagem em que se via o convento e os objetos do culto. 

— Você bem sabe, homem. Não há frontais, nem banquetas, nem toalhas, nem alvas, nem vestimentas para os santos. É uma vergonha! — acentuava com força. — Tudo que mete nojo! Aquelas galhetas, aquela patena, as duas sobrepelizes, as alvas, tudo aquilo, senhores, tudo aquilo! Além disso, não sei se você tem reparado. Uma invernia tesa, temos a abóbada em terra. Sabido! Você conhece-me. Sabe que coisa ao meu cargo tem de andar limpinha, arranjadinha. Senão, passe muito bem... Ora se o Senhor dos Passos... você entende?

— Tinha hoje pensado nisso mesmo — observou Manuel do Cabo, que medira o alcance da patifaria proposta.

— Ah, tinha? — E numa expansão: — Assim mudava tudo, você entende. Quando correr que o Senhor dos Passos chora, não faltará cão nem gato que não queira ver; calcule as esmolas e prendas a seguir. Você entende... são velas, azeite, túnicas, castiçais, dinheiro, legados por testamento, o arraialito todos os anos, missas aos centos e gorjetas de estalo. Conserta-se a igreja, asseia-se, pinta-se, caia-se, você entende. No Verão, bailarosca na cerca, fogo-de-vistas, gente assim... 

E com os dedos em pinha, fazia movimentos de aglomeração oprimida. 

— Sim senhor, sim senhor — resmungava o Manuel do Cabo.

— Aí pela Quaresma, faz-se procissão até à vila, missa cantada, o costume, sermão... E você verá que se despovoam aí as aldeias todas para a romaria. Selmes não falta.

— Olha quem, Selmes! Aquilo são brutos como jumentos.

— A Vidigueira, a Cuba, Vila de Frades... Você entende.

— Essas não comem, parece-me cá.

— Qual! Qual! O povo tem muita religião ainda. Veja você, quando levam a Senhora das Relíquias, pelas secas, ali na Vidigueira. Veja! É um choro, que nem que as moessem de pancadaria. Que nome tem aquilo senão fé? — E aprumando a estatura desajeitosa, de uma obesidade glutona, invetivava; 

— Sim, que nome tem? E não é tudo. Você verá que as mais romarias hão de morrer por cauda da nossa. Homem, sempre é um choro de Senhor dos Passos. E depois, os sermões. O que se pode dizer da imagem... você entende. E o dinheirão nas festas... Vendem-se estampas, bentinhos, medidas — um chuveiro! Isso fica prós alfinetes da Escolástica. E as fogaças e tudo!...

— É uma rica ideia. Mas se entram a falar, se o vigário percebe...

— Ora deixe. A eles também lhes faz conta. Em Beja fazem o mesmo, os tais letrados.

— Bem. Eu cá, pronto! Pode chorar em querendo. 

— E aproveita-se uma bela ocasião agora. Você sabe que a mãe do fidalgo vem passar um mês para a horta. Grande devota, segundo me contaram. Em Lisboa, diz que leva a vida pelas igrejas a comungar, a confessar-se, a encomendar relíquias e bentinhos. Excelente senhora! e para mais, oitenta anos! Veja você...

— Está na conta.

— Como anda adoentada, vem a mudar de ares. O sítio é belo, um ar na própria, verdura... Faz-se o milagre: se melhora, corre logo uma fama de seiscentos demônios.

— Não melhorando... tumba!

— É capaz de legar rendas para o culto. E você entende. 

— Entendo. Em ambos os casos, lucro. E quando chega?

— Mesmo depois de amanhã.

— É preciso então mandar assear a igreja, que parece um chiqueiro, não ofendendo quem está.

— Claro que é preciso! Amanhã trata-se disso. 

No dia seguinte ia grande faina no convento. 

O hortelão varria do laranjal as folhas caídas, os moços aparavam o buxo das estreitas ruas do jardim, as mulheres caiavam os muros da cerca. Ao mesmo tempo, Manuel do Cabo mais a filha, empoleirados pelos altares da igreja, destruíam com os varejões enormes, que serviam pela azeitona, as pontas suspensas e negras que alguns milhares de aranhas tinham fabricado, em pelo menos vinte anos de secreção. Os santos tinham sido apeados dos nichos e cuidadosamente lavados numas poucas de águas. A cada passo, a Escolástica, passando o rodilhão molhado pelas barbaças de um mártir, dizia compungida: 

— O santo me perdoe, mas estava que metia nojo! — E em cóleras de cristã fervorosa: — Estas bilhardeiras da horta, nem ao menos água têm, pra lavar os santinhos! Velhacas!...

— Oh, rapariga... — dizia o sacristão repreensivo.

Foi impossível arrancar ao seu nicho o Senhor dos Passos. Era uma imagem maciça e tosca, talhada quase a machado, e a quem faltavam dois dedos. Tinha a cabeça quadrada de um ídolo pelágio, marfim amarelo salpicado de feridas negras, cabeleira comida de traça e encimada de um resplendor de lata, dentado e torto. A túnica caía aos pedaços numa miséria mendiga, donde saíam tornozelos gigantescos e pés formidolosos. 

— Mete respeito! — dizia a Escolástica, molhando o esfregão no alguidar. 

Os cuidados de Manuel do Cabo convergiam especialmente sobre a capela do Senhor, soturna e alta, com colunelos de talha e esculturas selvagens representando serafins e emblemas da Paixão. Do fecho do arco, uma lâmpada de chumbo caía por três cadeiras de ferro; o púlpito ficava em frente com a balaustrada negra e azulejos no portal; e, traçando caminho de capela para capela, uma linha de sepulturas rasas arremendava de pedras alvacentas e tortuosos epitáfios o ladrilho esboroado do pavimento.


Era espaçoso o camarim da imagem, posta ao través para ser vista em toda a sua dimensão. A parede do fundo, pintada de judeus colossais ornados de chifres e dentes de javali, que os maraus arreganhavam por modo insólito, ensombrava-se de manchas limosas, fazendo claros na quadrilha de algozes de Nazareno.

— Eh, malditos do diabo! — fazia a Escolástica esgrimindo figas sobre a cáfila, enquanto gravemente o sacrista dava reviravoltas à cabeçorra do ídolo, a ver se a desaparafusava do tronco. E quando viu a filha descer para renovar a água das lavagens, Manuel do Cabo destroncando a cabeça santa pôs-se-lhe a estudar cuidadosamente a anatomia. Terminava ela numa espécie de parafuso tubular, tapado por uma rolha. Manuel do Cabo puxou a rolha para si e deu com uma concavidade que se escavava na cabeça, fazendo nela como um esconderijo.

— Cá está a marosca! — resmungou, torcendo a venta de um modo pujante.

Deitou água no bojo e vascolejou. A água tingiu-se de vermelho. 

— Percebo! — disse ele. — Não precisa mais. — disse a meter a rolha no tubo de parafuso, lavou a cara do santo, cuidadosamente restituiu a cabeça cheia de água ao seu lugar. Alcançara de velhas devotas uma túnica de paninho roxo, e com esmolas fizera consertar a enorme cruz de pinho que de longos anos caía a um canto, aliviando o semita do seu peso infamante. 

Quando a Escolástica voltou, já o Senhor dos Passos estava vestido e paramentado de novo, cruz às costas, a disforme cabeça lívida pendente sobre os seios, cabeleira esguedelhada nos ombros e o resplendor por cima, com uma mão fatídica impondo condenações. Com ramos de ciprestes juncaram o chão da capela. Através das ramarias esbugalhavam-se os olhos dos fariseus, com ar de troça que incendia as iras da Escolástica, vindo porém, a achar eco no coração do sacrista. Enfim, a mulher do hortelão trouxe flores e verduras, que foram postas em simetria no altar, dentro de canecas de barro e bilhas vermelhas, de Estremoz. Acendeu-se a lâmpada da capela, e diante da gente da horta que viera recolhidamente ver os preparos da igreja, a Escolástica leu em voz alta, no seu livro de missa, a ladainha — que era muito bom para ganhar indulgências. 

Ao cair da noite os preparativos de recepção da senhora fidalga estavam feitos; a residência esfregada e as louças brilhando nos grandes armários do refeitório; enormes camas de pau-santo cobertas do colchas de damascos crespos, rescendendo à alfazema das gavetas e ao linho de Guimarães; painéis de santas risonhas com mantos cor de laranja e maxilas de carnívoro; os tamboretes em linha mostrando a pregaria luzente; e um velho sofá de medalhões de couro ao fundo da sala, de cujas paredes pendiam, em molduras castanhas, litografias representando a vida de Dona Inês. Na horta o mesmo aspecto cuidado e festivo — moitas de hortênsias à entrada, ruas de loureiros e chorões, caracoleiros e heras vestindo os muros, os tanques limpos, aparada a relva do laranjal, dálias escarlates ressaindo dos tufos verdes da contramina, abóboras e melões de guarda em linha no telhado do chiqueiro, espantalhos novos pelas figueiras...

— Tudo que nem um brinco! — dizia a Escolástica à vizinhança, descrevendo as canseiras que tivera.

À noitinha apareceu padre Nazaré, chapéu para a nuca, todo encalmado de subir as escadas do balcão. Vinha mal do estômago, cheio de securas, a face macilenta, ventre alto, os intestinos trovejando.

— É dos pimentos — dizia —, é dos pimentos de conserva. 

Tinha levado o dia metido em casa, em mangas de camisa e chinelos, com calma. Fizera suão; com as queimadas os ares andavam turvos e as bestas sem força para o trabalho.

Demais um desavergonhado de Selmes recusava-se a pagar a meia moeda que lhe pedira aí pela esborralha. Corja de ladrões! 

Manuel do Cabo filosofou então: 

— Que hoje em dia o mundo ia cada vez pior. 

Todos cuidando de atafulhar o bandulho, e o diabo que levasse o nosso amigo e compadre.

Deleitava-se intimamente o sacrista, em sabendo que alguém caloteava o padre Nazaré, um fona incapaz de deitar osso a um cão. 

O padre passeava de uma banda para outra, mãos atrás das costas, um livor bilioso na pele. E disse sem levantar a cabeça:

— Sabe que a velha chega amanhã? 

— Assim ouvi dizer. 

— Fez aquilo? 

— Todo o santo dia andei a rapariga a tirar estrume da igreja. Aquilo não é dizermos que estava porca, senhores, mas tenho já visto malhadas de cabras mais limpas. Teias de aranha então, capazes de cobrir o mar. Enfim, ao menos asseada, ficou. Tudo varrido, muito flor nos altares, azeite nas lâmpadas, túnica nova no Senhor dos Passos. É imagem pra um bocado de respeito. Sempre lhe digo que Padre Eterno era homem do tamanho da torre de Beja, se tinha parecenças com o seu filho. Alentado, palavra. 

— Mais respeito com essas coisas, senhor Manuel do Cabo, mais respeito com essas coisas — advertiu padre Nazaré, que tinha lobrigado a Escolástica entre portas, à escuta.

E com um formidável arroto abriu a velha homilia sobre o temor de Deus e os mistérios da Trindade — Padre, Filho e Espírito Santo.

— Malditos pimentos — dizia —, malditos pimentos! Deus era o espírito criador, dotado de todas as virtudes e onipotências. Era o infinitamente bom, o infinitamente grande e o infinitamente piedoso. Para impor-se à limitada compreensão humana, fizera-se homem no seu filho, que padeceu e morreu...

— Tudo para nos remir e salvar! — ajudou de dentro a Escolástica, que sabia as prosas do Novo Catecismo de Doutrina.

— É tal e qual — fez padre Nazaré. E vendo a rapariga de braços arregaçados pediu água, para lhos ver de perto. Quando a Escolástica se afastou para encher o copo, o padre voltando-se disse: — É preciso dar exemplos, homem!

— Pois que dúvida que é — objetou o outro, puxando fogo ao cachimbo.

Os olhares dos dois encontraram-se luzindo com a mesma expressão de patifaria.

Traduzindo então os pensamentos do padre, Manuel do Cabo ia dizendo a meia voz:

— A fidalga chega à tardinha ao convento, com as criadas. Traz homens?

— Não traz.

— Melhor. Chega e janta. Depois visita a casa, os lagares, um bocado da cerca. E salta na igreja sol-posto. Escuridão no altar-mor, nas capelas laterais, lâmpadas acesas, um sossego de morte... Faz a sua oração ao Senhor dos Passos, hem? E um de nós então, repara que...

Padre Nazaré tossiu, para abafar as palavras que ia vomitar o sacrista. E Manuel do Cabo desatou a rir. Com um jeito brusco o padre estendeu-lhe a mão.

— Até amanhã. Vou-me deitar, que me estou a sentir pior. 

Desceu as escadas do balcão, enquanto de pé no portal o sacrista ficava olhando com o seu risinho de marau inteligente. 

Ao entardecer do outro dia, a caleça entrou com grande estrépito na portada da cerca. De chapéu na mão, os moços de lavoura, o hortelão, padre Nazaré mais o sacrista adiantaram-se para cumprimentar a velha dama recém-chegada. Esta desceu amparada ao braço do padre e sem baixar a cabeça a ninguém. Era quase octogenária e devia ter sido alta. E toda corcovada, com um vestido de veludo preto e um capote debruado de peles, subiu a escada que levava ao andar de cima.

— Isto aqui é triste, pois não é, senhor padre?

— Não, minha rica senhora, não é. Em campo é do melhor que tenho visto. Muita verdura, boas águas, rica vista, enfim, um regalo de propriedade.

E depois, a vizinhança da casa do Senhor...

— Sim, sim — disse a fidalga. E com inflexão piedosa: — É o que mais consola.

A mesa estava posta. Pelas janelas abertas do refeitório, via-se morrer a tarde e esmaecerem nas cristas as últimas tintas inefáveis do dia. Ao lado, as noras chiavam fazendo descer e subir sobre a água das nascentes a trança dos alcatruzes de barro. Sob cúpulas verdes de nogueiras, amoreiras brancas e plátanos, a água jorrava nos tanques quadrados; os moços da horta faziam a rega do laranjal, leiras de pimentos e carrapatos; no extenso pomar os pêssegos, as maçãs e as romeiras rubras picavam a verdura de pontos vívidos, de um tom sadio. O ar cristalizava numa serenidade contemplativa e corriam brisas impregnadas do cheiro dos fenos.

A senhora fidalga tinha-se sentado à mesa, mais a governanta e padre Nazaré, que a instâncias consentira tomar um caldo.

— E tem rendas, a igreja?

— Não, minha rica senhora, não tem. Os foros de trigo apenas dão para as despesas do culto; e ainda por cima mal pagos... Os paramentos são uma miséria e o templo faz-se em ruínas. Uma desgraça, minha rica senhora! Desejando estávamos todos que a vossa excelência chegasse. Temente a Deus e boa cristã como é, a senhora fidalga pode bem acudir com esmolas à pobreza dos santos e ao desmantelamento da igreja. Podia-se até fazer uma festa, a modos um arraial, todos os anos. Mas eram precisos certos arranjos que traziam despesa. Ora não havendo fundos... Vossa excelência entende. 

— Far-se-á o que for da vontade de Deus — disse a velha, abrindo o seu grande leque da China, preto, com lantejoulas e pássaros exóticos. Tinha tirado o chapéu, bandós postiços desciam aos lados da marrafa, tapando-lhe as orelhas. Um pente de tartaruga posto ao alto dava-lhe à cabeça um ar ridículo. A testa, abaulada e saliente, punha como um abat-jour nos seus olhos profundos, mortiços no fundo das órbitas. Recordava-se pouco do convento, da disposição dos altares e do número de imagens. Se havia trono?

— Um pequenino e dourado, todo velho.

— E santos, senhor padre, e santinhos?

— Isso muitos, minha rica senhora, muitos. Santa Rita, logo à entrada; São Pedro, à esquerda; a Senhora do Rosário...

— Minha madrinha... — fez notar a governanta, dona papuda, de bigode. Padre Nazaré cumprimentou, e foi continuando a enumerar: 

— O Senhor dos Passos, imagem de muita virtude e milagres; Santa Isabel, rainha... 

A velha espirrou, e todos correram a fechar as janelas, temendo constipações. Veio a pelo falar-se de doenças produzidas por simples golpes de ar. Na opinião da governanta, toda a enfermidade nascia de uma constipação. Quando tivera o antraz...

— Vossa excelência é que me dizem de saúde muito delicada — disse o padre para a fidalga, oferecendo-lhe um pêssego descascado. 

Ela contou então os seus achaques, consultara tudo, a homeopatia, a alopatia, os seus diretores espirituais — que, juntou, sendo os médicos do espírito podem também ser os médicos do corpo, como emissários de Deus — que são.

— Muito bem — disse untuosamente padre Nazaré —, muitíssimo bem.

— Mas poucos alívios, infelizmente. — Tinham feito a peregrinação a Lourdes no Verão passado, por conselho do padre Grainha. Muito bonito tudo, as águas de muita virtude, a Senhora rodeada de oferendas dos romeiros, e algumas ricas... Citava os presentes da princesa Amélia de Brandemburgo, tocheiras de ouro maciço, coroas de rubis, cálices esmaltados e custódias góticas... Tudo valendo milhões, não faz ideia. Em certos dias da semana, Nossa Senhora aparecia aos enfermos na gruta, puxando-se um cordelinho... Mesmo assim, passava mais aliviada de Verão; mas pouco! Tinham-lhe aconselhado a estação no convento, e viera. Ai! Que Deus lhe perdoasse tão grande ofensa... mas tinha pouca fé. A idade era já grande obstáculo a uma cura completa.

— Todavia — acudiu servilmente a governanta —, sendo da vontade do Senhor... Ela bem lhe pedia!

— E todos do coração imploramos — disse com austeridade o padre, enchendo o cálice de porto. — E levantando-se dava boas esperanças, dizendo a sua grande fé nos ares, nas águas, que as havia férreas, muito perto. Sempre era outra coisa a vida no campo, outros hábitos, muito sossego... — Assim concluiu ele com um sorriso, passando o guardanapo pela boca oleosa dos molhos —, permita vossa excelência que eu beba antecipadamente a um próximo e jucundo restabelecimento.

— Muito agradecida, senhor padre, muito agradecida e que Deus o oiça — dizia a velha, molhando os beiços nos dois dedos de Lacrima Christi, que a governanta lhe lançara no copo. E mostrou desejos de conhecer as terras próximas — a aldeia, como ela dizia. Se havia fé, gente de certa ordem, fortunas... Padre Nazaré dava pormenores. Nos campos a fé não abundava já, como no tempo dos frades. Tudo se ia inficionando da lepra das cidades, não havendo barbeirola que não lesse os jornais e não pregasse heresias por essas vendas. Jogo, má vontade ao trabalho além disso. Não compareciam à confissão, não iam à missa... — E fazendo um gesto beato: 

— Pervertidos — dizia —, pervertidos! Nas mulheres, mesmo assim, não era tanto. O coração da mulher é mais entranhável à religião e à fé. De resto, nas escolas não ensinavam orações. Conhecia rapazes que nem o padre-nosso diziam de cor.

— Santo nome de Jesus! — clamava a governanta, com um fervor intenso nos olhos... vinho do Porto e devoção. A senhora fidalga lembrou prédicas aos domingos, depois da missa, sabatinas de doutrina para os rapazes, com um fato novo por mês ao que melhor soubesse as rezas.

Punha as mãos engelhadas como implorando clemência, de olhos em alvo ia resmungando:

— Não sei onde isto há de chegar, meu Deus, não sei onde isto há de chegar!

A governanta atribuía as secas, as guerras, as fomes e as epidemias ao estado impiedoso das almas. Que isto de não comungar era medonho... Diz que apareciam as alminhas negras, com chavelhos, aos berros. 

— Credo, mulher, que até faz arrepiar — increpara a fidalgona, fazendo a cruz nos seios chuchados.

E ergueu-se, tomando o braço do padre Nazaré. 

— Dê-se ao incômodo de mostrar a cerca, senhor padre. — Vagarosamente desceram a escadaria de pedra, toda coberta de caracoleiros e heras, que vinha abrir em leque ao alto de uma rua de loureiros e eloendros. 

Manuel do Cabo albardava o Ginaia, depois de jantar brutalmente na cozinha, mais o hortelão. Quando o padre passou rente, o sacrista perguntou-lhe: 

— Então? 

— Dentro de um mês está pago em dia — disse o outro, e foi andando. 

A velha simpatizara de vez com o padre Nazaré, achando-lhe a compostura grave e a palavra cristã. Somente lhe via um defeito — era talvez um pouco campônio, mãos grossas e sem anéis, uma rugosidade de pele que dava contatos irritantes.

— Enfim — dizia a governanta —, na falta de outro... 

Padre Nazaré, pelo seu turno, andava regalado e contente. 

Vinha almoçar e jantar todos os dias, grandes cuidados com as camisas, e barbeava-se a miúdo. Nos primeiros dias tivera contrariedades. Aos seus instintos de agricultor brutal repugnavam as branduras da catequese, os melífluos conselhos ditos entre citações de Santo Agostinho, João Crisóstomo, Carlos Barromeu e Basílio, autores porque, valha a verdade, passara a correr, havia bons anos, no seminário. Afizera-se, desde que residia na vila, a uma vida de episódios rudes, vindimas, ceifas e agiotagem sistemática. O seu gênio violento dava-lhe intermitências de cólera biliosa, durante as quais rogava pragas e dizia obscenidade. Sabia o valor do dinheiro, e conforme usava dizer — poucos o enganavam. Adorava o doce. Em pândegas de amigos, porém, gozava fama de gracioso e sabia beber. Como pregador era falado nas terras próximas — boa voz, fazendo chorar na Paixão, gesto dramático e uma ênfase pouco seguida em geral nos púlpitos da província.

Chico Praça, poeta da vila e o que mandava correspondências ao Bejense, costumava dizer na loja do Burjaca, aos proprietários que ali iam palestrar, às noites:

— Para coro o padre José Pereira, mas no púlpito o Nazaré. 

E todos:

— É pena que se não dedique!

Eram suculentos e escolhidos os almoços e jantares da senhora fidalga, vinhos de feição, louças, um ar de festa, natas e doçarias de Lisboa. Padre Nazaré gostava, e vinha dizer para a loja, aos proprietários: 

— Bela pastelaria hoje!... 

Ou então, arrotando com pompa: 

— Diabo! Pois fizeram-me mal as perdizes trufadas. 

Aquelas bazófias excitaram ciúmes na terra; muitos diziam com um riso pérfido:

— O mariola achou a ama ao seu gosto! 

E alguns, cuspindo: 

— Ora o estupor!... 

Pouco a pouco, padre Nazaré foi-se afazendo ao novo estado, lia o Fios Sanctorum em casa para alardear de instruído, limava as unhas e andava gordo. Na Feira de Évora, trocou a mula por uma égua castanha, comprou arreios vistosos e estribos de ferro. Ia todas as manhãs dizer missa ao convento e ouvir a velha de confissão. À medida que ascendia no espírito da fidalga, tratava de complicar os regulamentos da devoção, dificultando a entrada no reino dos Céus e pintando Deus como um rábula exigente, que embirra com as comidas dos seus fiéis, e com as palavras e vestidos das mulheres. Segundo ele tudo era pecado; Deus vigiava das nuvens a humanidade; a vida era simplesmente a antecâmara do grande reino da luz, onde cada mortal mal tinha tempo para se lavar das pústulas malignas originadas da carne, e transmitidas de Adão. E recomendava à velha as ásperas penitências que alquebram, horas e horas de joelhos ante os altares, desfiando rosários bentos e lendo com voz lamentosa as biografias dos mártires e doutores da Igreja.

Este regímen alterou a saúde da velha e ligou-a pelo terror cada vez mais ao padre.

— Só me sinto bem, ouvindo aquele santo! — dizia ela com um escarro na goela. — E com inflexão de grande medo:

— Oh! não me desampare com os seus conselhos, não me desampare com os seus conselhos!

De vez em quando, Manuel do Cabo interrogava padre Nazaré: 

— Então o homem chora ou não chora? 

— Mais tarde. Você entende. 

— Pois até hoje, meu rico, nem lágrima. 

— Com água quente, é que é. Você entende. 

— Só se for isso. A fria não dá resultado. 

Depois com ares profundos: 

— Que as lágrimas são mornas. Sendo suor, já era outra coisa. Há suores frios! Andava mais alegre, recebera três meses de ordenado e um presente de pêssegos, dos melhores. E ao entrar na vila, sobre o Ginaia, cantarolava brejeiramente lançando chufas às lavadeira — suas maganas, com quem tinham dormido a noite passada? Que lavassem as pernas, grandessíssimas porcas!

As noites eram abrasadas e eternas. Não bulia folha na horta, os moços do campo dormiam ao relento sobre as mantas, e tendo por travesseiro as albardas dos jumentos. Nos aposentos da fidalga somente, as janelas permaneciam fechadas, não apanhasse sua excelência alguma constipação. As casas de cima, de baixos tetos abobadados e sobrados carunchentos, antigas celas de frades modificadas para residência profana, constituíam verdadeiras estufas no Verão.

Nos corredores circulava um bafo morno, impregnado de bafio, alfazema velha e incenso — o que recrudescia de um modo terrível a asma da beata. Toda a noite a governanta levava a abaná-la com ventarolas do tamanho de sombrinhas e a enrolar-lhe em papéis de seda enormes cigarros de figueira-do-inferno, ao som de intermináveis rezas e custosas promessas ao Senhor dos Passos. Porque era agora cega a fé da velhona, na sacrossanta imagem do Redentor. Contara-lhe o padre a história do convento, sua antiguidade e virtudes. Em tempos antigos, os frades vendiam uma espécie de licor, que curava da peste e punha saradas as úlceras mais daninhas. Rezavam as crônicas do convento, de um almirante do mar das índias, da casa dos senhores da Vidigueira, que, voltando de longínquos países coberto de um vergonhoso mal, se curara de pronto, tomando o benéfico elixir. E junto ao tanque de pedra tinha aparecido ao venerável padre frei Vicente das Sagradas Angústias, ancião que rasgava suas carnes a golpes de azorrague — a figura de Jesus Cristo, feito homem e cheio de Espírito Santo, vertendo sacratíssimo sangue das suas feridas, coroado de espinhos e clamando:

— Faz penitência, Vicente, faz penitência, que serás comigo no reino dos Céus... 

Ainda agora se mostrava na terceira lájea do tanque, ao pé do cipreste, o vestígio da pegada do Salvador do Mundo.

A velha derretia-se em choro ouvindo tais prodígios, batia nos peitos cheia de uma convicção fanática, e bradando em guinchos de possessa:

— Oh misericordioso Jesus, que eu não sou digna! Oh misericordioso Jesus, que eu não sou digna! — enquanto pelos esconderijos a governanta manducava sofregamente, aos ladrilhos, covilhetes e covilhetes de marmelada. O episódio do choro de sangue deu, como nenhum outro, insônias e delíquios à pobre mulher.

— Há coisas — aventurou ela de olhos baixos, quando certa manhã ouviu narrar o milagre —, há coisas que só vistas.

Padre Nazaré não deu resposta, mas à tarde trouxe nos alforjes a Crônica dos Capuchos, com um sinal na passagem lida pelo sacristão.

— Eu não duvidei, senhor padre — dizia a velha. — Ora Deus nos perdoe! Assim minha alma se salve, em como eu...

E no dia seguinte, a título de remissão dos seus pecados, entregou quatro libras ao padre Nazaré, para esmolas e missas. Em Setembro os males da velha agravaram-se mais, os ataques de asma repetiam-se, a tosse era profunda e entrecortada de poeira estridulosa, que lhe resfolegava nas cavernas dos pulmões. Uma noite vieram chamar o padre à vila a toda a pressa. A velha estava pior, lançara cóleras, falava em confessar-se... 

Padre Nazaré mandou acordar o sacristão e disse-lhe:

— Venha comigo. 

Cavalgaram as alimárias caminho do convento, e ao verem branquejar à lua as paredes da cerca, pelos claros da folhagem, o confessor da senhora fidalga disse ao seu acólito estas cinco palavras: 

— Água quente para esta noite.

Era um ataque dos maiores, com silvos e espasmos prolongados. No quarto abafava-se na exalação das mostarda e do estramônio. 

Em saia branca e chinelos, a governanta fazia cigarros e preparava banhos. 

E ante cada retábulo de santa ou asceta ardiam velas e lamparinas. Padre Nazaré conhecia um pouco a moléstia; tivera uma irmã que sofrera dela longos anos. O seu primeiro cuidado foi mandar abrir as janelas para restabelecer a corrente de ar. A velha jazia numa poltrona ao pé da cama, o escarrador ao lado, tronco um pouco inclinado para a frente, o hausto arquejante.

— Então como se acha a nossa doente? — perguntou carinhosamente o padre, curvando-se para ela.

A velha mal podia falar e fez um gesto vago. 

— Ouça — disse o padre à governanta —, deite-lhe sinapismos no peito e nas costas.

— Já lá os tem — disse a outra, fazendo-se doutora. 

— Bem. Um vomitório então. Água morna aos copos; façam-lhe depois cócegas com uma pena, nas campainhas.

E em voz alta, para que a fidalga ouvisse: 

— Mandaram acender a lâmpada do Senhor dos Passos? 

— Há que tempos! — disse a governanta. 

A esse tempo aquecia Manuel do Cabo a cafeteirinha de água na cozinha, disfarçadamente. E, quando a viu ferver em cachões, desceu à igreja, pela escada do coro. Havia um silêncio lúgubre, trevas densíssimas no santuário e piar de corujas nas ventanas da torre. Junto de uma fresta gradeada, à esquerda, abrindo para a horta, a folhagem de um chorão gigantesco fazia marulhos confusos, de maré que sobe. Fora, nos plátanos da ribeira, os rouxinóis conspiravam, e réstias de lua, brancas e vagas, entravam pelas janelas do coro, pondo luzernas no lajedo das sepulturas rasas.

Manuel do Cabo desceu de mansinho a escada de tijolo carcomido, que caracolando vinha abrir-se por baixo do púlpito. Os arcos das capelas cortavam nos muros alvacentos da igreja enormes bocas escancaradas, em cuja goela as linhas das imagens se esboçavam, sem relevo. Ouvia-se o roer das ratazanas nos madeiramentos carunchosos, e o rumorejo do chorão nas gradarias da fresta. Manuel do Cabo parou diante da capela do Senhor dos Passos, à escuta. Nalgum corredor distante batia uma porta. Havia conversinhas aos cantos, que ora se afastavam, ora renasciam. A boca do camarim enramado de cipreste, o clarão noctâmbulo da lâmpada deixava ver um pedaço de cruz negra, e mais na penumbra a lívida cabeça desgrenhada, que pendia no peito com um desalento de morte. Tudo o mais era confuso, acumulado e movediço, aparecendo nas trevas com projeções colossais, cheias de pavor. O vento vinha a espaços, como se fora um hálito, fazer bruxulear a luz — e despregavam-se então dos ângulos formidáveis, desde a abóbada até ao pavimento, massas de espectros, que ante o sacrário deserto vinham dançar sabbats alucinados.

Para falar franco, Manuel do Cabo não estava muito à sua vontade, não. Medo não era bem, realmente. E relanceando a vista, com a cafeteira a escaldar-lhe nas mãos, disse para dentro de si:

— Olhem que belo sítio para a gente apanhar um tiro...

Veio-lhe à lembrança o Estragado, que, por duas vezes, contra ele pusera à cara a espingarda, e lhe prometera muito cedo notícias frescas... E o Chico da Aroeira, que andava fugido de soldado e lhe provara do cacete, de uma vez em que fora apanhado mais a Escolástica, no palheiro.

— Além disso — pensava ele — isto cheira a patifaria que tresanda.

Olhou à roda, esteve quase a voltar para trás. Mas que diabo!... Era uma vez. Se a coisa pegasse, ninguém perdia com isso, aumentava-se a fé no povo — que era pouca, com seiscentos diabos. Não pegando, era como se nada tivesse havido. E os proventos a gozar, o asseio da igreja, as procissões... Até era bom para a religião, bem pensado. Andaria pago à hora, boas gorjetas, ali estimado como um rei. E tudo por uma gotinha de água quente. Ora adeus! 

Subiu as escadas de mansinho, com a cafeteira. 

Logo à entrada do camarim, deu de cara com um vulto. O Estragado. Santo Deus! Entornou a água a ferver pelas mãos. O vulto olhava-o imóvel, todo barbado. Era um judeu da quadrilha, pintado na parede. Manuel do Cabo resfolegou com força, e foi sempre apalpando — um judeu, não havia dúvida. Diabo de peça! A gente às vezes até está parvo, senhores. E entrou a desaparafusar a cabeça do santo. O sino deu três horas — às três e meia, no Verão, é quase dia. Nas lájeas, a luzerna do luar ia-se pouco a pouco apagando. Os cães da horta soltavam uivos.

— Cheira a defuntos que nem diabo! — resmungou Manuel do Cabo. E na escavação interior da cabeçorra chagada ia deitando água quente. 

— Assim também eu faço milagre, senhor padre! — trauteava o mariola, já tranquilo.

Às quatro horas, padre Nazaré veio ter com ele. 

— Já?

— Poucochinho, mas promete. 

— Bem. Vamos dizer missa mesmo no quarto da velha. 

— Então o estafermo morre ou não morre? 

— Mais respeito, homem! Podem ouvir. 

— Vamos a saber? 

— Está mais aliviada. Dormita. 

— Temos dinheiro por um sarilho, compadre. 

— Venha daí. 

Sentindo-se mal, a fidalga quisera confessar-se, resolução que em coisa alguma transtornava os planos do padre Nazaré. Umas poucas de vezes a governanta, aflita pelo carácter grave que a coisa parecia ir tomando, chamara o confessor de parte.

— Que se havia perigo, seria bom chamar o médico, mandar um telegrama para Lisboa ao menino Tristão, falar à senhora em testamento. Ela tinha um medo... não queria responsabilidades; era uma serva antiga, mais de trinta anos de casa, quase uma pessoa de família. E com insistência voltava ao tabelião, dizendo casos de pessoas que se tinham ido sem testamento. A D. Mônica, tia dos Palhas, havia de conhecer; o doutor Mendonça, dos Próprios Nacionais, sem herdeiros e podre de rico, que ela servira dez anos, ficando por fim a chuchar no dedo... Que não dizia aquilo por interesse, mas, enfim, era um descargo de consciência. Na penumbra do corredor, os seus olhos luziam cobiçosos e a sua voz saía baixa, breve, quase sibilante.

— Havia muita prata, roupas, três baús de louças do Tapão. Casa antiga. Lembrava-se de três governadores da índia, e uma quantidade de arcebispos na família. Ah, lá isso... Nobreza da melhor. E, pondo a mão febril no braço do padre, voltava à carga:

— Se havia perigo... Nada, nada de responsabilidades! 

Por seu lado, padre Nazaré certificava que não havia motivos para espalhafatos. Um ataque mais cruel, eis tudo. Que ele sabia proceder como homem e como sacerdote. E punha a mão aberta no peito, na atitude austera de um iluminado.

— Como homem e como sacerdote, D. Doroteia! — dizia com força, espaçando as palavras. Passara muito na vida, para estar precavido contra eventualidades de qualquer ordem. De resto, afirmava com intenção, não lhe tinha vindo a ideia do testamento, servia as pessoas desinteressadamente, como lho ditava o seu coração, porque sabia ser amigo. 

E enfático: 

— Amicus certus in re incerta... D. Doroteia! 

— Ah, em desinteresse não está o senhor padre mais rico do que eu, há de perdoar. Credo! Os modos de dizer as coisas! É perguntar à senhora fidalga, ao menino Tristão e a todos de casa, quem eu sou e de quanto por esta gente tenho sido capaz. Olhe que conheço a família há muitos anos. Não é o senhor que me dá lições a mim.

E, numa vertigem de narrativas para que não tinha loquela avonde, punha em relevo a sua dedicação, o que aturava pelas doenças dos senhores, o que merecera de confiança e estima em toda uma vida de serviços sem preço, o seu amor pelas coisas da casa, e o trabalho com os gatos e cães da senhora fidalga, que lá por animaizinhos era cega — não faz ideia! 

E protestando, contando, tentando fazer-se valer, andava à roda febrilmente, com uma gula planturosa de avara, as mãos espalmadas à altura dos olhos, onde luziam anéis chinfrins de meia libra. 

Padre Nazaré nem escutava, mas dizia de vez em quando, para acalmá-la: 

— Eu bem conheço isso, D. Doroteia, bem conheço isso! De resto, a senhora fidalga fizera-o ciente de tudo. Quantas vezes lhe tinha ouvido — que a Doroteia com ser sua governanta não perdia os foros de boa amiga! — Ah, era tida em alta conta, creia isto. E por toda a gente, palavra de honra! — que o não dizia por ela estar presente.

— Demais — acrescentava, embaindo-a, com a voz ejaculada e surda, de uma discrição culposa, com que no confessionário arrancava revelações picantes às boas moças do campo apavoradas do inferno —, demais, quem lhe diz à senhora que no testamento da fidalga não há um legadozito... 

E vendo-a suspensa, o riso parvo de quem apanhou a sorte, sublinhava umas poucas de vezes o alvitre proposto, repetindo:

— Sim, quem lhe diz à senhora?... 

— Quê? — disse a Doroteia quase a abraçá-lo, com um bocado de rolo a despregar-se-lhe da cuia. — O senhor padre sabe? 

— Perdão — atalhou logo padre Nazaré —, eu não disse...

E, enquanto a outra ficava no corredor deslumbrada, entrou no quarto da velha com ares de levita vergado à imposição de um jumento, ombros altos, um jeito vago de mãos e dizendo com um riso ambíguo: 

— Segredos da confissão, D. Doroteia, segredos da confissão! 

Ficara satisfeito com o manejo político que tinha posto em prática. Apre! que estivera quase a acarretar o ódio da governanta — uma zorra que a sabia toda! E devia ter sido bem boa! Mas estava velha, quando não... E, mais tranquilo, dizia para consigo:

— Deixá-la do nosso lado. Não se perde nada. Tinham já acabado de armar o quarto da velha, para a cerimônia da comunhão; em frente do leito e na mesa improvisada em altar, um crucifixo enorme, velho marfim de lividez polida, enchia a parede do fundo, que uma colcha de damasco azul, grandes relevos fulvos, vestia de tons doces, ouro e céu, à luz dos castiçais e entre tufos de renda, dos grandes cortinados pendentes. À cabeceira da cama e numa baixa poltrona, ampla como um divã, arquejava a doente, entre almofadas de todos os tamanhos, o escapulário branco de Santa Clara na cabeça, destacando num fundo de estampas devotas e rosários tocados em mantos de várias autoridades celestes.

Quando o padre entrou, a velha tinha os olhos fechados e as mãos errantes nos braços da poltrona. O escavado da face denotava intensa fadiga, e haustos fundos, arrastados, difíceis e terminando em silvo, davam-lhe um jogo angustiado ao cavername do peito opresso. Ele andava nos bicos dos pés para não fazer ruído; mesmo assim, porém, as suas botas novas rangiam, com ruídos impertinentes de janotinha de província. E, sentando-se junto à poltrona da velha, tocou-lhe na mão com os seus dois dedos suados. Cortara o cabelo de fresco, à escovinha, e aos cantos da testa alongavam-se para trás, lustrosos de excreção gordurenta e destacando no luzidio dos cabelos, dois crescentes de calva precoce, onde ressaltavam relevos complicados de veias. Visto de perfil era um pouco adunco, sobrancelha cerrada e tons azuis de barba espessa pondo-lhe no focinho como que as linhas de um açaimo. Tinha olhos grandes e bem fendidos, globo um pouco injetado, estourando para diante, e um raio sagaz de pupila que se lubrificava todo ante as nudezas trigueiras e túrgidas das raparigas da monda. Procurando fazer adocicada a rude voz de que dispunha, disse para a fidalga, de olhos baixos:

— E agora? Melhorzinha?

A velha ergueu a mão para fazer um gesto. E quase em segredo disse:

— Assim...

— Pois visto que se sente mais aliviada vamos à confissão, para rezarmos depois a oração do Cireneu, que é infalível, infalível!

Dava explicações sobre a oração do Cireneu. Tinha lido na Crônica dos Capuchos, de curas miraculosas obtidas pela reza em triplicado de certa oração mandada ao convento por São Simão Cireneu, residente não se sabia em que parte, e a instâncias do nosso venerável prior frei Antônio da nossa Senhora, para uso de grande cópia de enfermos dos arredores. Para que da recitação da prece pudessem tirar-se seguros resultados, urgia fazê-la recitar em voz alta e ainda de manhã, por três pessoas ao mesmo tempo, sendo duas fêmeas e um macho, todas de crucifixo alçado e prostradas em joelhos ante a hóstia consagrada.

A doente por cuja intenção se fizesse a reza seguraria o sudário, enquanto a espaços um padre lhe iria chegando aos lábios a esponja embebida em vinagre, arremedo do que fora praticado com Jesus Cristo, durante a agonia. 

Ouvindo a última palavra, a velha tremia sem responder. Mesmo assim macerada de rezas e práticas devotas, sentia no íntimo o terror invencível da morte.

Era verdade que as almas, escapando-se dos corpos como perfumes de ânforas, em ondulações suaves iam subindo aos domínios da luz, a cristalizarem-se na eterna graça, sob a unção dos trenos e no revérbero da imortal pureza. Mas o corpo que ela podia palpar e sentir, o que tinha dores, anseios, cansaços, apetites e suores fétidos, esse que ela facultara nos seus tempos de dama do paço às excitações de récua, do senhor D. Miguel e os seus companheiros, e nos minuetes langorosos se tinha requebrado com meneios de afetada galantaria, na tenebrosa algidez do sepulcro buliria todo negro, nessa viscosidade da podridão sinistra, que é a última infâmia da carne!

Vendo-a inerte e muda, padre Nazaré tratava de aclarar-lhe bem as origens da oração proposta, no intento de lhe extinguir os terrores e as sombras funestas. Simão Cireneu fora o fiel amigo que nas ruas da amargura consentira tomar sobre os seus ombros robustos a cruz, sob que o Cristo vergava, no trajeto para o suplício. Ele conhecera passo a passo os transes da Paixão, tinha falado com o Salvador, participado da sua angústia e chorado das suas lágrimas. Era o grande confidente do Filho de Deus, e tinha sido ele o autor da benéfica oração, que até grandes já tinha ressuscitado. Era forçoso pois experimentar, para bem cumprir os preceitos do Senhor.

— Pois sim, sim — dizia a velha afinal. 

E, pondo as mãos, balbuciava a confissão. 

Havia já sol quando a oração do Cireneu acabou. Fatigada por toda uma noite de sofrimentos, e sob o predomínio moral da complicada reza, a velha tinha conseguido repousar um pouco. Abafara-se-lhe mais a pieira, e a respiração readquiria-lhe um ritmo plácido. A Escolástica, avisada por Manuel do Cabo, tinha vindo logo de manhã com o seu xale de ramos e lenço de seda escarlate, o livro de missa na algibeira da saia. Em ação de graças pelas melhoras da senhora, padre Nazaré celebrou missa desse dia na capela do Senhor dos Passos, a que vieram assistir todos os homens e mulheres do convento. 

Terminado o sacrifício, enquanto Manuel do Cabo ia buscar a um canto o apagador, o padre, erguendo a voz, pediu uma Estação pelo inteiro restabelecimento da fidalga, de quem fez o panegírico em grandíloquas palavras — mãe de raras virtudes, boa protetora dos interesses de Deus e benemérita da graça divina.

E todos rezaram a meia voz a Estação pedida, enquanto, abrasada em fervores místicos, a governanta unia a face às lájeas da capela, desatando em prantos e suspiros, toda de preto e mordeduras de pulgas no pescoço tísico. 

Aquela exaltação comovera a Escolástica, que disse para a mulher do caseiro:

— Se não há de ter amor à fidalga, vivendo há uma quantia de anos na sua companhia!

E a outra, arrebatando nas unhas um piolho que lobrigara na trunfa do filho, durante a reza:

— Com uma certeza — apoiava —, com uma certeza! 

Mal o padre saiu da igreja, a Escolástica ergueu-se para ir fazer a oração ao camarim do Senhor dos Passos, a depor-lhe no sacratíssimo pé o beijo convencional.

Subiu a escada com o livro de missa nas mãos, de olhos baixos, as mulheres da horta atrás de si. E, ajoelhando todas à roda da imagem, entoaram a ladainha, porque a Escolástica tinha grande paixão.

Era a filha do sacrista quem entoava os louvores ou vozes; todas as outras mulheres respondiam atabalhoadamente.

— Ora, à pornobis! 

E ao Agnus Dei, como as burras se enganassem, a Escolástica repreendeu-as com a sua voz birrenta, de sabichona. Então o filho do caseiro, que andava à roda bulindo, erguendo a túnica da imagem e dando-lhe puxões na guedelha, gritou de repente com dedo estendido para a face do ídolo: 

— Mãe, sangue! 

A caseira, que estava de lado, alongou um pouco a cabeça na direção em que o rapaz apontava, e pôde ver uma lagrimazinha vermelha, que, caída da pálpebra do Senhor, vinha pela face lívida fazendo um traço de sangue miraculoso. 

A pobre mulher nem pôde dar palavra, levou as mãos à barriga abaulada por uma prenchez medonha, revirou os olhos e caiu para trás barafustando. Ao mesmo tempo, a Escolástica, que da pálpebra do seu lado vira cair também a sua gotinha de sangue, abalou pelas escadas, largando o livro e fazendo cair a rapariga do caseiro. E, possessa, berrava igreja abaixo em direitura à horta — que acudissem, aqui-del-rei, não era coisa boa, ia acabar-se o mundo! Foi o sacrista quem primeiro acudiu à berreira, e picando o charuto para a cigarrada de ripanço:

— Qual acabar-se o mundo, nem qual diabo! O mundo não dá fim, enquanto houver santos que façam milagres e desavergonhadas que creiam neles.

E numa expressão de riso cruel, tomando assento na borda do tanque: 

— Malandros e bêbedas! É o que há. 

Ao meio-dia divulgava-se em Vila Alva o milagre, e a população em chusma, num burburinho de cortiço, abandonava a terreola caminho do convento, toda inflamada em fanatismos e salmejando orações e ladainhas. À medida que se adiantavam na estrada, os magotes reproduziam-se e aumentavam, pelo concurso da gente que iam encontrando a trabalhar nas fazendas. As beatas ricas tinham aproveitado a ocasião para fazer toldar os seus carros alentejanos, puxados a mulas e cobertos de um toldo primitivo, de lona e caniçados. Algumas em jumentos, de cadeirinha, chouteavam adornadas de cordões de ouro, mitenes de retrós nas mãos ósseas, e leques hereditários pintados de escudeiros e reis. As do Silva, um ricaço da terra, levavam mantas de lã azul, de borlinhas, pregadas em escapulário, com ganchos representando malmequeres. E semelhante luxo fazia sensação na romana. 

Chico Praça, com risos céticos de homem que lê, fora também no machinho do pai inspirar-se e gozar um bocado daquela saloiada ignorante. E, espetado num charuto de vinte e cinco, fumo de merino enorme no coco dos domingos, manta verde com perinhas bordadas, calça curta arregaçando sobre os elásticos das botorras e o atilho da ceroula à mostra, cumprimentava fidalgamente os ranchos, procurando informar-se do modo de ver geral acerca do prodígio. As raparigas voltavam-lhe a cara ouvindo-o escarnecer dos santos.

— Judeus! — diziam. E umas para as outras, como se falassem de uma universidade:

— É o que eles vão aprender a Beja! 

Atrás da chusma arrastava-se cacarejando a gente pobre, mendigas velhas e descalças, fisionomias de cera abrasadas por esses olhos chamejantes do meio-dia, em que se repinta em clarões a efervescência das índoles cálidas e insofridas; velhos pastores inválidos, cobertos de peles safadas, polainas de feltro, cajados nodosos, e um anguloso seco de múmias, e rapariguitas rotas, vivendo do rolão córneo das esmolas e que a lama cobria de costas pardacentas. E todos, numa passividade receosa, eternos vergados à penúria que envilece, lá iam custosamente, parando nos cotovelos da estrada para retalharem os comentários sugeridos pelo caso, ou recomeçar com voz quebrada o terço lúgubre da penitência. Muitas mulheres levavam azeite para as lâmpadas do convento, ofertas de pão cozido, fogaças de galinhas e borregos novos. E corria em segredo que as Silvas tencionavam oferecer ramos de penas comprados em Setúbal, nos banhos do ano passado. 

Porque no grosso beatério da vila a surpresa do milagre vinha de feição, com os seus embevecimentos místicos e esse brumoso da legenda que dá febre às imaginações sobreexcitadas. Havia duas semanas que escasseava tema para as parlendas de soalheiro. O último caso de aborto tivera lugar havia já um mês — velharia em que mal se falava já. E em casa das Silvas e na loja do Burjaca, às noites, arrotando sobre a azia do ensopado das ceias, a boa gente lamentava num fundo de saudade e desespero:

— Maldita terra! Nem há em que se converse... 

O mulherio acreditava fanaticamente no sangue do Senhor do convento, uma lição a esses hereges que vinham do estudo falando mal dos santos e rindo da confissão e da missa. Deus não era pois uma palavra vã! Vivia, amando sempre a humanidade e chorando pelas suas loucuras e crimes, no fundo melancólico de um templo, que a guerra civil profanara e derruíra, nas suas contorções de bacante. Iam começar os bons tempos de fé absorvente e sincera, em que as almas vestem a gaze da inocência para os esponsais da bem-aventurança. Então, por esses campos verdejantes, no fundo desses olivais contemplativos ou sobre as colinas e charnecas em que ora esbravejavam, selváticas, piorneiros e tojais, erguer-se-iam de novo os eremitérios alvinitentes, cruz erguida nas fachadas, um cordão de tílias no adro e a porta aberta como refúgio aos vergastados pela miséria, ou pelo desalento. Viria o bom tempo das procissões do campo e das festas a órgãos, em que as vozes dos frades entoariam a missa num êxtase seráfico, do fundo dos seus capuzes benditos. E essa azinhaga lúgubre que conduzia às ruínas, o claustro transfeito em lagar de azeite e as celas aproveitadas para residência de gente mundana regurgitariam novamente de fradinhos gordos, olho doce e dentes gulosos, que em tardes de primavera, das grades do coro, lançassem cantigas brejeiras às roliças lavradoras ingurgitadas de desejo e devoção erótica — como noutro tempo. Muitas velhas ainda eram do tempo dos frades; algumas mesmo tinham dado guarida a guardiões varrascos, por noites chuvosas, enquanto os maridos na adega ressonavam espapaçados no vinho dessas bebedeiras do Alentejo que chegam a durar semanas. E, voltadas para o passado em que se reviam frescalhonas e vivas, as pobres davam suspiros de mágoa, lamentando a falta de crenças de hoje, e batendo com as cabeças nos toldos do carroção, a cada solavanco do eixo. Nos homens era menos sincera a crença do milagre. Iam poucos na romaria, e esses mesmos seguiam o femeaço para namoriscarem a torto e a direito.

Padre Nazaré contara discretamente o prodígio na loja do Burjaca, palavras simples, sem paixão e sem comentários. Não lhe convinha muito tornar-se herói do caso. Velhaco como era, tinha fé em que os ânimos se acenderiam por versões mais escandecidas e pelos exageros e mentirolas que na boca da gentalha usam acompanhar os episódios de força como aquele. Efetivamente corria já na vila que a Escolástica caíra de cama, faniquitos a cada instante, um esbracejar de endemoninhada debatendo-se nos pulsos de dois sapateiros vorazes, que a tinham de olho havia muito.

Ao mesmo tempo, o sacrista referira na venda do Salta-Pocinhas, à malta que ali se juntava para beber fiado, a história circunstanciada da velha, as suas peregrinações a Lourdes, a sua grande fé e a sua caridade, uma carinha de santa, muitas esmolas. E, transfigurado, tinha descrito a imagem do Senhor dos Passos, chagado e de olhos abertos, de cujas pupilas fixas parecia sair a claridade de além-túmulo, o quer que era dava terror e fazia arrebentar de paixão. E as opiniões começaram a desfilar através das conversas, fuzilando, lutando, fazendo contraste. Uns criam no milagre, impondo condições. Outros andavam perplexos. Alguns riam.

— Pode lá ser!

Já se contava que o choro do ídolo não era de hoje. Até ali ninguém reparara, ainda se o santo desse berros!... Mas, calado como era, não atraíra as atenções de ninguém.

— Quem havia de dizer!... — ponderava a D. Maria do Juiz. — Um Senhor de pau, como outro qualquer! E havia quem tivesse já desconfiado. 

Algumas velhas até sonhavam todos os dias com a imagem, resplendor na cabeça, cruz às costas e a fazer-lhes sinais. E as outras, escutando, ganiam, de olhinhos piscos:

— Também a mim! Também a mim! 

Mas o carreiro das Silvas, que ouvira tudo muito calado, largou esta de chofre: 

— Ponho as mãos numas Horas em como é pouca-vergonha dos padres!

Ameaçaram-no logo. Pedaço de bêbedo, grandíssimo traste que já queria ter opinião nas conversas das suas amas, o malcriado!

E, enquanto elas ralhavam da petulância do moço, a mais gente, nos seus carros e nos seus jumentos, ria maganamente, pondo uma nota rutilante na prática escura de sacristia das senhoras devotas imbecilizadas e secas. 

Assente pois que a lágrima de sangue segregada diretamente por Deus, e escorrida da pálpebra óssea do ídolo, mantinha partículas divinas, gêmeas das que ficavam no cálice, durante a missa e à invocação do celebrante, toda a gente estranhou que o prior da vila não mandasse repicar os sinos, marchando logo com a irmandade sob o pálio rico, a buscar em procissão solene o Senhor dos Passos.

Ao subir para o carro, paramentada de seda roxa e toda de véu pela cara, a D. Maria do Juiz, dando com o pároco a passear na praça, ainda lhe perguntou o que tencionava fazer.

 O velho olhou-a por um bocado muito sério, e disse:

— E a senhora?

— Ora essa, senhor padre! Cumprir com o meu dever de cristã. Vou penitenciar-me diante do nosso Senhor. E seraficamente: — Que estão chegados grandes dias!

— Pois, felicidades.

E sem mais améns, o velho continuara a passear, batendo na caixa de rapé. Era homem de cinquenta e tantos, calado e grave, com a bondade rude que nasce da misantropia aldeã em perpétua contemplação do mesmo horizonte e das mesmas árvores. Velho leitor da Revolução, e liberal de têmpera, viam-no sempre pronto a bramir contra os escândalos que manchavam o sacerdócio, violências, seduções, roubos, toda a casta de vícios. Intimamente rosnava contra a penitência, a confissão e essa idolatria das imagens, que torna mais alvar ainda o povo das freguesias.

Em geral vivia recolhido, longe dos focos de opinião da terra, dizendo missa na matriz ao romper do sol, percorrendo à tarde as fazendas entre um cajado e um cão amarelo, e passando as noites em caso do médico, no seu interminável voltarete.

Quando lhe falaram no milagre, o prior bateu na mesa iracundo e trêmulo, exclamando rudemente:

— Nunca se viu pouca-vergonha maior!

E logo todo pálido, receoso de ter concorrido para o descrédito da batina, agitava o lenço vermelho trovejando:

— Homem, é melhor que não me façam falar!

Aquela violência alastrou-se de boca em boca, espicaçada por comentários mordentes e velhacas interpretações. Era opinião que o prior detestava padre Nazaré e sentia atrozes ciúmes do seu talento oratório e da sua fama de rico. Havia anos que os dois se não falavam por caturrices de eleição. Além disso, as preferências da fidalga pelo outro tinham sido consideradas na terra como humilhantes para o pároco — um rústico! como se dizia em casa das Silvas. Durante toda essa manhã, muita gente fora consultá-lo sobre se deveria acreditar no milagre. E, no intuito mesmo de sondar a opinião da sua Reverência sobre o ponto melindroso, vários pediam uma interrogação lógica para a terrível lágrima do deus.

O velho todo se torcia a cada ataque, e de mil cores derivava na palestra para episódios pueris, colheitas, calores da quadra e preços do vinho. Mas as devotas voltavam à carga de pronto, insistindo se seria verdade, se não seria verdade, se o santinho chorara e seria sangue do legítimo...

Ao mesmo tempo os finórios da terra, proprietários ociosos farejando escândalos em que entreter tempo, egoístas prontos a gozar, pela expectativa dos contratempos alheios, espicaçavam-no cruelmente e de caso pensado, vontadinha de apanhá-lo bem na rede, para lhe porem em evidência alguma lúgubre contradição de crenças profissionais. Mas o prior permanecia sombrio, suando nas fontes sem dar palavra, um frêmito de impaciência nos ombros.

— Isto de crer ou não crer, é da consciência de cada um — observava ele, apertado.

E pitadeando: 

— Cada qual que se consulte e proceda como melhor lhe convier. 

Mal a romaria chegou à ladeira que afrontava o convento, os carros fizeram alto por conselho de D. Maria do Juiz, que era autoridade entre as devotas. As Silvas lançaram-se logo de joelhos. Algumas velhas tinham-se descalçado e, magoando os pés nas asperezas da vereda abrasada de sol, seguiam desfiando rosários, as oferendas em taleigas de ramagens, xales pela cabeça. 

Ao mesmo tempo, o povoléu, pressuroso, faminto de assombros e sem paciência para esperar que os carros passassem na azinhaga, extravasara da estreiteza do caminho, espraiando-se pelas terras ceifadas, aos pulos por valados e alvercas. Uma febre podre de superstições e pavores dilatava os olhares e enlividecia as epidermes brônzeas, alagadas em suor. De todos os lados choviam promessas, alqueires de azeite, sacos de trigo, milagres de cera, cabelos, mortalhas, uma infinidade de coisas. Uns prometiam para que o Senhor lhes livrasse os filhos de soldados, outros querendo triplicada seara, enquanto vários, desalentados pela doença, sezonáticos e tristes, vinham simplesmente solicitar a cura imediata, mediante o valor de uma fogaça. Era pensamento de todos engodar o ídolo com dádivas chinfrins, como fariam a um selvagem por meio de miçangas e estamparias. E, no intuito de um bom negócio premeditado, vinham chancelar ao convento o contrato, mentalmente sem escrúpulos. À entrada do templo, foi uma berraria infernal, prantos, latinórios, desmaios... À frente as velhas descalças, mãos postas e olhos no céu, faziam um clamor de ladainhas e preces, com vozes esganiçadas e lamentosas. A D. Maria do Juiz, que gostava de figurar nas festas e era aia de Santa Catarina, levara de casa um Santo Lenho de prata, que ergueu à frente da multidão.

Desgrenhadas e cheias de espinhas carnais, as Silvas vinham-se arrastando nos joelhos, de braços abertos, e a cada passo pendiam de canseira com delírios de virgens flatulentas. A D. Maria do Juiz chegava-se então, e solenemente, como vira fazer em Beja ao bispo, dava o relicário a beijar, bolçando esquírolas de oração.

Por detrás delas acumulava-se a gente esfrangalhada, obtusa num pasmo irracional. E batendo nos peitos, muitos diziam numa espécie de uivo sonolento, entre caudais de pranto:

— Misericórdia! Misericórdia! 

Eram trindades quando padre Nazaré apareceu em casa do sacrista. Desde manhã que não saía de casa. O calor trazia-o morto, suores, salvo seja, de jumentinho podre, uma secura diabólica. Que ia pela cidade?

Manuel do Cabo pôs-se a dizer — o prior tinha zurrado: Pouca-vergonha! Na loja do Burjaca não tinham comido a pantominice, o mulherio fora em chusma ao convento, havia três mil e tanto de esmolas, afora azeites e pães alvos. Padre Nazaré sacudia o pó das mangas, num frêmito júbilo de narinas e o olho nadando em fluidos de vitória. E comovido exclamou: 

— Grande povo este! 

Depois, muito confidencial: 

— Despejou a cabeça? 

— Logo. Por esse lado não há perigo. 

O seu receio era Beja, porém. Que o vigário não era para graças, segundo ouvia dizer. Pelos modos suspendia padres com sem-cerimônia excepcional. Pequenino como era, voz aflautada, e gestos de alcoviteira, tornava-se, nos lances sérios, de uma rapidez temerosa. Não lhe conheciam empenhos, nem amigos, nem atos de benevolência no julgamento de qualquer melindrosa questão.

— Espirra-canivetes! — resumia o sacrista. 

Aquela ponderação fez porém sorrir padre Nazaré, que, esboçando atitudes de poderoso, de trunfo político, exclamou:

— Ora adeus! Todos os grandes têm uma perna de pau.

E distraidamente, em ar de comentário: 

— Pois senhores, estão as eleições à porta! 

Sorria-se com finura velhaca, mirando o outro pelos cantos dos olhos, contente de fazer presumir a sua importância oculta e inabalável. 

Enfim, prosseguiu a meia voz, a primeira cunha está metida. E bem metida que está!

O resto, com vagar e jeito. Domingo, rica festa no convento, ali a missinha cantada, sermão de endoidecer os peixes...

— Eia, o que aí vai!

— Você verá — tornava envaidecido o padre. E batendo na testa: 

— Tendo aqui o sermão todo. É de um efeito!...

— Ah! pregador como primeiro! Que não se apanha segundo por estas redondezas.

Padre Nazaré exultava de lisonjeado. 

E oleoso de glória, o fácies ridente das consciências repousadas, ia aventurando ao sacrista pequenas confidências, que espumavam de humor como um bom champanhe crepitando num copo. 

Pouco a pouco, a voz, que se lhe abafara cautelosa, desenrolando segredinhos, foi subindo. E ouviu-se distintamente o padre dizer: 

— Daqui a cônego, meu amigo, é um trote.

— Sendo a besta boa... — ponderou o outro, sem o encarar.

Um ano depois, estavam realizadas todas as esperanças do senhor capelão do convento. A fidalga morrera com fumos de santa, legando rendosos bens ao templo e ao padre, ao mesmo tempo que a fama dos prodígios da imagem rebentava para lá da pequena área das povoações circunvizinhas, e nos domínios da lenda corria a província toda, avassalando crentes e colhendo esmolas avultadas.

Todos os dias agora passavam por Via Alva ranchos de romeiros, que, bem providos de oferendas, ante a imagem do convento vinham fazer penitência. 

O tosco madeiro, que primitivamente só chorava sangue, fazia agora, no dizer das gentes rudes, toda a casta de maravilhas. Os cegos recuperavam a vista limpado à fímbria das túnicas bentas a ramela dos olhos assolapados. Paralíticos, que em cadeirinhas e macas abalavam dos seus lugarejos natais aos ombros de carregadores, desandavam a passear sem detenças, mal punham os olhos na igreja. Para expelir o demo dos esqueletos da pobre gente, que, exibindo carantonhas e soltando berros, era trazida em coletes de força até ao santuário, bastava muitas vezes um sopapo teso de padre Nazaré, algum latim quando muito.

Contava-se de lavradeiras estéreis que se punham fecundas como marrãs, mediante alguns dias de residência na horta, dietas místicas e certas rezas adequadas. E era infinito o número de rapagões do campo roubados à recruta, panelas de dinheiro descobertas em rochedos lendários, e jumentinhos alegres que, depois de roubados, vinham dar às portas dos donos, fazendo sinais maçônicos com o orelha-me. Desde que, no Alentejo, a qualquer família se afigurava insuperável um problema econômico, um caso patológico mais grave, ou um casamento menos lícito de realizar, as opiniões voltavam-se logo para o Senhor do Convento, na certeza de um êxito próspero e imediato — o que punha em bancarrota os curandeiros, as mulheres de virtude, os procuradores, os aveitares e os médicos. Desta cegueira absorvente de crenças, foi-se pouco a pouco originando toda uma engrenagem de pequeninas indústrias, devotas e a vila, tão pobre e tão reles, tomou de súbito a importância de um centro ativo e florente, em que se falava com respeito. A junta geral votou estradas que ligassem Vila Alva com os mais sertões, a câmara, pelo seu turno, fez abrir poços públicos e arborizar os largos. Ao mesmo tempo; enquanto duas lojas abriam com estantes de vidraça, e um latoeiro de Beja vinha fixar residência na artéria principal do povoado, as senhoras começaram a ir à missa de chapelinho e luvas dando-se pelintramente dom e fazendo os pés pequeninos. Vila Alva, como se dizia nos serões das Silvas, estava dando sota e às às terras próximas. Construiu-se um chafariz com botaréus e tanques, onde até bípedes vinham mitigar-se das calmas alentejanas. A Escolástica assumiu a direção de uma oficina de bentinhos, medidas e retábulos mais ou menos garridamente compostos, onde, em litografia e em pintura, o Senhor dos Passos ostentava as fisionomias mais estranhas, barba toda ou simplesmente bigode, de coroa ou sem coroa, marchando pela rua da amargura ou quedando-se simplesmente imóvel, na posição carrancuda de um fotografado. Dando largas à sua veia elegíaca, Chico Praça, até ali incrédulo, desandou a vender pelas festas hinos bentos da sua composição, cantatas em pomposas estâncias, no fim das quais se repetiam estribilhos plangentes:

E os judeus jogando os dados Viam-lhes os cravos pregados... 

Por seu lado, a D. Maria do Juiz, que tivera um tio médico, inventou a Untura Santa, que vendia em latas de pinto com uma carta de padre Nazaré, atestando que não havia segunda esfregação para borbulhagens. E, como o comércio prosperava, as rivalidades desencadearam-se entre os vendilhões, o que determinou a falsificação nos produtos e a intriga nas famílias. As Silvas fizeram aparecer um licor para fatos; o Bujarca opôs a sua Fomentação do Horto ao unguento da D. Maria; outra família determinou suplantar as estampas da Escolástica, confeccionando pequeninos Senhores dos Passos em barro, trapo, cortiça ou faia, com resplendor ou sem resplendor, conforme os preços. A esse tempo, inaugurava padre Nazaré uns belos óculos de ouro para se dar ares de homem importante. Construíra, além disso, uma bela casa com terraço e adegas de luxo, alargando ao mesmo tempo a cifra dos seus milheiros de vinha e deitando carros de parelhas nédias. Estava cada vez mais fona, lia Vieira e Mont'Alverne para vernaculizar os sermões, usava corrente de berloques e deitara criada roliça. A sua ideia era a conezia, o poderio, muita glória.

Desde que o viu rico, Vila Alva entrou a respeitá-lo, a servi-lo, a lamber-lhe a poeira das botas. Era ele quem fazia as eleições na terra, quem orientava a opinião, quem fomentava a intriga. Ia frequentes vezes a Beja. 

— Falar com os trunfos! — cochichava-se às noites na loja do Burjaca. 

E com veneração referia-se aos quatro ventos a sua aliança com as notabilidades políticas, deputados que lhe ofereciam jantares, lhe mandavam cartas de amostras, Diários da Câmara com discursos e as minutas de preços do vinho, nos mercados de Lisboa.

Aquela preponderância fazia-o temido, e andava nas palminhas, dificultando a sua intimidade aos menos favorecidos. 

No intuito de surpreender alguma informação relativa ao negócio, os proprietários procediam com ele por pequenas sabujices, grande interesse pela azia da sua Reverência, um esmero de palavras e rodeios servis, como se falassem a um senhor. Vila Alva queria em ele querendo, ria em ele rindo, bazofiava em ele bazofiando. E a conezia não chegava nunca! Enfim, uma tarde correu que o velho cura ia ser transferido a exigências da política, para Sant'Ana, lugarejo de algumas casas, sem recursos, sem agricultura e sem rendas, torpemente esquecido na aridez da serra. Em casa das Silvas, padre Nazaré mostrou-se penalizado do pobre homem, que ficava a morrer de fome. Mas intimamente dava-se os parabéns. Conseguira afastar finalmente o pulha que se atrevia a humilhar com sessenta anos de honrada labuta a sua florente carreira de homem sagaz, em tirocínio para cônego.

Sobre o caso, Manuel do Cabo arquitetou logo o seu tratado prático de moral característica, por este modo formulada, sempre que um mendigo se arrastava para lhe pedir esmola:

— Grande cavalgadura! 

— Por que, meu benfeitor? 

— Inda o pergunta! Aposto que é homem de bem! 

— Saiba o meu benfeitor que sim.

— Pois, amigo, se você tem feito canalhice enquanto era forte, estava agora rico. Pedaço d'alarve! E, exemplificando, estendia o braço para o fundo da praça, onde de um lado sorria a casa nova do capelão, ampla, clara e toda alegre das tintas frescas, e a miserável vivenda empardecida e deserta, que pertencia ao pároco velho, e desde a sua partida se não abrira mais! 

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