O “menininho” do presépio
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Olhe! Aí está um peão do major Vieira; jogo o pescoço se ele não traz invite pra ir lá, hoje, festejar o Natal, na estância!...
Eu sei!... Aquele é gauchão buenaço!
Eu, se fosse o patrãozinho, ia. Ia, só pra ver o que é uma gente de devoção.
E é que o seu major Vieira não era assim, não; pro caso que ele, em moço, até que era um virado, da gente se benzer três vezes!
O major Vieira quando era cadete haraganeava muito pela rancheria dos postos.
A estância era grande, e entre agregados e posteiros havia um povaréu; o patrão velho, pai dele, era mui esmoleiro e não gostava de, perto dele, ver ninguém com cara de fome.
Mas o diacho era que o que o velho fazia com as mãos o cadete desmanchava co'os pés...
O mocito era abusador, e mais duma feita saiu ventando de certos ranchos daqueles pagos...
Sim, que um pai cria uma filha não é pra carniça de gaudério!... Por isso é que já os antigos inventaram o casamento.
A divisa da estância, no fundo, faz uma quebrada forte, assim como o cotovelo do meu braço; nesta ponta aqui, onde está a minha mão, fica o Lagoão das Lontras, e mais pra cá passa a estrada real.
Em certos tempos a gadaria pegava a costear o lagoão e andando, andando, entrava na estrada e… adeus!
Assim perdeu-se numa primavera uma ponta de novilhos que se evaporaram como sereno...
Foi um estafaréu, na estância, por causa disto; o patrão velho ficou buzina com o capataz, que relaxou os repontes, e quase mandou lonquear um certo Miguelão, que passava todo o santo dia lagarteando na reserva do rancho, e de noite nunca parava em casa...
Parece que eu estou lhe enredando o rastro, mas não ‘stou, não; vancê escuite.
É que este Miguelão não era trigo limpo; e tinha uma filha que era uma criatura boa como uma santa, morocha linda como uma princesa. E vai, o desgraçado obrigou a menina a casar-se com um sujeito sem eira nem beira, e que diziam à boca pequena que era parceiro nas velhacadas do Miguelão.
Era um mais que mouro, e meio corcunda, e tinha um lanho grande entre a orelha e a nuca; e mal encarado, era.
Amigo! A quincha dos ranchos esconde tanta coisa como os telhados dos ricos!...
Marido e mulher davam assim uma ideia esquisita: vancê já reparou quando abre um cacho de flor num jerivá velho, de casca esbranquiçada, cheio de talos secos pendurados e um que outro pendão esfiapado, que já deu coquinhos?...
O jerivá é uma árv’e tristonha, mas quando bota um cacho de flor fica alegre, de enfeitada. Aquele pendão amarelo, lá em cima, chama os olhos da gente, parece um favo de cera, de tão limpo e dourado; chama as mandaçaias, os passarinhos, os mangangás, as joaninhas; dá cheiro que é doce; é uma boniteza pra todos os viventes.
Assim era aquele casal: ele como o jerivá velho, ela como um cacho de flor,
Ela chamava-se nhã Velinda: e chorava muito, às vezes.
Por quê? Quem sabe lá…
Depois daquele sumiço dos novilhos, o cadete Vieira passou a recorrer o campo por aquelas bandas; a bolear avestruzes por aquelas várzeas; a correr veados por aqueles meios; a caçar mulitas naquela costa; e até numa noite de breu arranjou uma perdida —. ‘Magine! mais vaqueano que sono! — mas perdida foi que soube rumbear sobre o rancho do Miguelão...
Coisas de rapaz; que a nhã Velinda, essa, era de confiança.
Lá porque era moça, quase uma criança perto do marido, lá por isso não era motivo pra qualquer um chegar-se de buçalete em mão, como se faz pra uma redomona, pra amanusear-lhe desde a tábua do pescoço até as ancas...
Mas o cadete gostava da moça numa paixão de verdade, diferente de quantas cavaleiradas estava avezado a fazer.
Era uma adoração, quase um medo de ofender a querida do seu coração; perdia a voz pra falar com ela, enredava-se nas esporas, perdia o entono de todo o seu jeito, e todo ele vivia só nos olhos quando atentava na formosura do seu rosto.
Entrementes foi acabando o ano e já era sobre o Natal.
E vai a família do patrão velho armou um presépio na sala grande da estância; e ele mesmo mandou avisar o vizindário todo que a sia-dona convidava para se cantar um terço de festa, na noite santa.
E veio tudo, velhada e crianças, moçada, namorados, e até alguns andantes, que estavam de pouso, ficaram, todos, pra louvar a Deus na noite mais pequena do ano.
O cadete andava no meio do povo caçoísta, dançarino e pisa-flores, mas no que chegou a gente do Miguelão, já se foi pondo como um céu amontoado, emburrado, de dar nas vistas.
Houve jantarola e doçaria, na sombra das figueiras.
Escureceu; a sala grande estava fechada, e as moças da estância lá dentro, preparando as luminárias; enquanto o velho e a sia-dona pauteavam com a gente sisuda, embaixo da ramada grande, em frente da casa, a gurizada corria na pega dos vaga-lumes, rodando por cima dos cachorros ou fazendo provas de burlantins, nos cabeçalhos das canetas; do galpão vinha o zunzum da peonada; na sombra do campo não se via nada, mas de lá vinham relinchos e mugidos, cracrás das corujas e uais!... dos graxains.
E no ar, como uma cerração que não se via, andava o fartum dos churrascos.
Por um segredo do destino a sia-dona mandou o cadete ver se as luminárias estavam ou não prendidas; e vai, o moço, no entrar a porta, topou de cara a cara com a nhã Velinda que saia, justamente para vir chamar os donos da casa; toparam-se as criaturas e miraram-se, num clarão que só elas viram...
As mãos se encontraram... e num de-repente, num silêncio, num tirão das suas almas, na pressa e no lusco-fusco, perto da gentama, numa relancina de corisco, as duas bocas famintas se encontraram…e um beijo, um beijo que jurou pelos dois, para toda a vida, um beijo só derrubou todas as negaças, como uma represa de açude aluída é derrubada por uma muita descida de águas...
Vê vancê, a gente sabe falar, dizer muitas enredices adocicadas, mas às vezes a palavra nem dá pra partir… e caladito no mais, um simples beijo, largado de tronco, chega ao laço, folheirito, de rebenque alçado!
Pobres! Nesse passo cruzou na mesma porta o Miguelão e bispou o caso, e decerto já lo foi xeretear ao genro, e atossicá-lo, suscitando-lhe maldades...
Mas logo escancararam as janelas e a claridade da sala alumiou o terreiro; foi um alarido de contentamento, todos se ajuntaram e a sia-dona, puxando a ponta, entrou, para principiar o rosário. E aquele bandão de gente entrou e foi-se acomodando, olhando com ar de riso pasmado, toda só dizendo: o presépio! o presépio! o presépio!
Fazia a modo uma ramada no alto de uns cerritos, e fingindo grotas e sangões e umas reboleiras; havia esparramados uns “alimais” entre boizinhos e ovelhas de brinquedo e outros enfeites; e mais uns figurões mui calamistrados, de coroa, que pareciam reis, e, pro caso, um, que era negro retinto, era o mais empacholado. E perto destes, sobre a ponta do presépio, estava então a Senhora Virgem e o Senhor São José, e entre eles, acamado numas palhinhas de milhã e uns musgos e umas penugens, estava o Menininho Jesus, ruivito e rosado, nuzinho em pêlo, pro caso como uma criancinha que não tem pecado por mostrar as vergonhinhas do seu corpinho de inocente.
Todos se ajoelharam de roda, mas foi nessa ponta do presépio que a nhã Velinda ajoelhou-se; e no costado dela, como um precipício ou um encorrentado, aí amoitou-se o cadete Vieira, talvez até para dar o seu peito em resguardo dalgum perigo...
Não lhe conto nada!... Quando pegou a cantoria do rosário e no cantante da reza a gente se foi enquartelando e emparelhando as vozes, que era uma boniteza de ouvir, por aí os olhos dela estavam como amarrotados no presépio, mas os olhos dele estavam no rosto dela, como se aí estivesse o próprio presépio, com as suas velinhas e prateados e bichinhos mimosos... era até um pecado do inferno, aquela maneira de adorar gente, ali assim, nas barbas dos santos e da Senhora Virgem e do seu Menino!...
Mas porém, lá da porta, outro olhar, raiado de sangue, estava vendo tudo; por certo que alguma loucura de cabeça atacou aquele cristão velho, porque, num soflagrante, sem um deus-te-salve! — o aflito aquele meneou os passos, derrubando gente, e logo o facão relampeou na direitura do coração de nhã Velinda!...
Houve um grito d’espanto pro mode o desaforo do desatinado.
— Jesus!... foi o grito de todas as bocas.
Ah! patrãozinho!... Olhe que às vezes, na luz das velas bentas, se passam coisas de deixar um golpeado qualquer mais, mais aplastado que mancarão reiúno em mão de recruta...
Quando a ponta do ferro matador estava a uma mão atravessada… a quatro dedos só da carne macia, aí — credo! louvado seja Deus! — aí rolou da sua caminha de milhã... rolou e caiu no boleado do seio da moça, na canhadita dos dois, caiu no regaço de nhã Velinda o Menininho Jesus, como uma defesa… e aí no regaço delicado ficou, como um dono na sua casa.
E o facão matador sentou, tironeado... depois recuando, “minuindo”, caiu mermado, mal seguro na mão sem força, do braço sem vontade, e o cuerudo aquele deu costas e se botou porta fora e o Miguelão com ele, boquejando.
Tempos depois se soube que o mataram, num entrevero, numa bochinchada de carreiras.
Jerivá torto não dá ripa!...
Os velhos lá ouviram do cadete e de nhã Velinda o que havia, e lá arrumaram as coisas.
O que le conto é que o seu major Vieira, ainda em cadete, se casou com a nhã Velinda, e que aquele tal Menininho Jesus ainda hoje é o figurão do oratório e é o mesmíssimo do presépio que, há mais de cinquenta anos, se arma sempre na estância, no festo do Natal.
— Não lhe parece que houve um milagre? Claro! Foi por causa do Menininho que... Se o diabinho é tão milagroso!...
Este conto eu conto no meu livro As Meninas de Pelotas.
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