O homem
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Desde a véspera, havia grande alegria no colégio. Fechadas as aulas, o saguão estava cheio de canastras e malas, já arrumadas. Pelos corredores, numa vozeria alegre, andavam os alunos, em grupos. Aquele severo edifício, que era o terror dos calouros, pelo seu silêncio e pela sua tristeza, durante a época dos trabalhos, — estava agora transformado. Folhagens de mangueira atapetavam ainda o salão de estudo, cujas paredes desapareciam sob a profusão das bandeiras, das cortinas, dos arcos verdes. Realizara-se ali, na véspera, a distribuição dos prêmios. Muitos alunos tinham já partido. Os que ainda esperavam que os viessem buscar, tinham os olhos brilhantes de alegria e de impaciência.
Férias! Férias! Quando, depois da
distribuição de prêmios, a sineta do colégio, num repique festivo, anunciou
àqueles pequenos corações o fim da sua prisão de um ano, todos eles se
dilataram, antegozando já os dias de liberdade e de ventura, que os esperavam
em casa, junto das famílias, longe da tristeza daqueles refeitórios e daqueles
dormitórios imensos e frios.
Mas, no meio da alegria geral, Jorge, um
menino de dez anos, encostado a uma janela, meditava. Recebera os melhores
prêmios. Lá os tinha, cuidadosamente guardados na mala. Lembrava-se das
palavras de louvor que ouvira, quando o diretor lhe entregara os dois livros
ilustrados e a grande coroa de mérito. Mas lembrava-se também de que, ouvindo aqueles
elogios do mestre e aquelas palavras entusiásticas que saudavam os seus
triunfos, sentia o coração apertado, cheio de uma grande tristeza, e somente a
custo continha as lágrimas que lhe cresciam nos olhos. Todos os outros voltando
de receber os prêmios, passavam entre os companheiros com a face corada de
orgulho. Jorge, porém, ficara triste. E triste estava ainda agora, mais triste
do que, se, tendo recebido repreensões em vez de prêmios, fosse apontado como o
mais vadio do ano.
Ninguém viera assistir à sua vitória...
Nos outros anos, vinha sempre seu pai, um velho que chorava como uma criança,
quando beijava o filho, ao fim desses dez meses de separação. E Jorge
lembrava-se das perguntas sem conta que lhe fazia então, das notícias que pedia
da mamãe, e da maninha, e dos animais domésticos, e dos criados, e de toda
aquela vida da casa, tão conhecida e tão profundamente amada...
Mas, desta vez, ninguém viera. Pela
primeira vez, passara Jorge, no imenso e frio dormitório do colégio, essa
primeira noite de férias, que costumava ser a primeira noite de sua felicidade
anual.
E ninguém vinha! Todos os companheiros
saíam. No saguão, iam diminuindo as rumas das malas e das canastras. Poucos
alunos restavam... Ninguém vinha!
Jorge fechou o rosto nas mãos e desatou a
chorar.
De repente a voz de um bedel gritou:
— Número 36!
Era ele! Jorge voltou-se, de um salto,
correu, já certo de ir ver seu pai, já esquecido do quanto sofrera, já pronto
para se atirar, como um louco, de encontro ao peito do velho. Mas deteve-se,
assustado. Quem o vinha buscar era um desconhecido, — um homem alto e magro,
fisionomia dura, de gestos secos, e de poucas palavras. Jorge despediu-se do
diretor, e saiu com ele. Quis interrogá-lo. Soube apenas que o pai adoecera, e
mandara pedir ao seu correspondente no Rio de Janeiro que se encarregasse de
mandar para a roça o menino. Mais nada.
E nessa noite, num escuro e feio quarto
de casa de comércio, Jorge não dormiu. Sentia-se tão só! Tão só! Um
pressentimento cruel lhe enchia a alma de terror. E, de madrugada, quando o
vieram chamar para tomar o trem, ele ainda soluçava com a cabeça enterrada no
travesseiro.
Com que alegria fizera em outros anos
essa viagem! O trem voava, alucinadamente... mas Jorge ainda o amaldiçoava,
achando-o lento e aborrecido. E, respirando o ar fresco da manhã, vendo as
montanhas que pareciam galopar em sentido oposto ao do trem, pensava nos beijos
com que cobria a face da mamãe, e no rodopio de júbilo supremo em que
arrastaria a irmã, e nos dias calmos que se seguiriam...
Mas, nesta triste madrugada, até o céu
era outro.
Chovia. Uma grande mágoa cobria e
afeiava a natureza.
As árvores molhadas, gotejantes, vistas
de relance, parecia que choravam. Jorge, cansado da noite de insônia,
adormeceu, ao lado do caixeiro da casa comercial, que fumava, indiferente,
lendo um jornal.
Houve uma parada brusca do trem. O
menino acordou. O caixeiro sacudia-o. Tinham chegado. E foi com o coração
batendo precipitadamente que Jorge subiu para o troly que o esperava na estação, e fez a viagem, por aquela estrada
tão conhecida, — entre árvores familiares que guardavam em cada folha uma
recordação.
Na porteira da fazenda, ninguém o
esperava. A cancela rangeu soturnamente, surdamente... Aquela cancela! Aquela
cancela de traves pintadas de verde, através das quais, nos outros anos,
costumava ele ver o rosto ansioso da mamãe todo iluminado de um sorriso, e a
cabeça fulgurante da irmã em que os cabelos louros brilhavam como o resplendor
de um anjo...
Entrou. Dentro do seu coração de criança
já a verdade terrível estava palpitando. Já o seu cérebro de dez anos
adivinhara tudo... por isso não teve uma palavra, quando viu, toda coberta de
luto, a mamãe que lhe abria os braços chorando. Precipitou-se nesse adorado
seio, tremendo, com soluços que o afogavam. E, como, ao seu lado, a maninha
também chorava, Jorge, como um homem feito, começou a acariciar-lhe a face,
dando-lhe beijos, dizendo-lhe palavras doces, que, daí a pouco, faziam a menina
sorrir, na sua inocente alegria de seis anos...
O pai morrera. Toda a casa tinha ainda o
pavor e o espanto desse desastre recente. Jorge foi buscar, dentro da mala, os
seus prêmios, — os dois livros grandes, ricamente encadernados, e a grande
coroa de mérito.
Foi até o gabinete do pai. Lá estava a
sua secretária, larga e severa. Sobre ela, pregado à parede, o retrato do velho
sorria. Jorge colocou sobre a mesa as recompensas de seu trabalho, como se
quisesse mostrar ao retrato do pai que não desprezara os seus conselhos.
Mas voltou-se, ouvindo um barulho de
choro. Era a mãe que entrava, toda de luto, e que o abraçava, dizendo:
— Não temos mais ninguém, meu filho! Não
temos mais ninguém neste mundo!
Jorge aprumou o corpo, e, com os olhos
enxutos e a bela face tranquila, perguntou:
— E então eu, mamãe? E então eu não sou
um homem?
E
havia na face e na voz desse menino de dez anos uma tal resolução de uma tal
coragem que a velha senhora, já sem chorar, teve nos lábios um sorriso de
orgulho. Beijou a testa do filho. E traçando, com a mão direita, sobre ele, uma
cruz, murmurou:
— Tu és um homem, meu filho! Deus te
abençoe, meu filho!
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