O Diário
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A morte de Eduardo constituiu verdadeira surpresa para os amigos. Surpresa e tristeza, porque ninguém mais estimado.
Formado em medicina, adquiriu rapidamente grande clínica. Isso se devia, em parte, â sua real ciência, ao seu faro divinatório dos diagnósticos mais complicados; mas, por outra parte, ao seu trato sedutor.
O Luiz Soares, grande advogado, e seu mais íntimo amigo, achava-o mais perito em tapeações: as medicações eram secundarias. E Eduardo não o negava de todo. Parte de todas as curas — dizia — se faz com a hábil sugestão da saúde. E antes mesmo de ter dado qualquer remédio, persuadia o doente de sua inevitável melhora. Isso lhe dava mais de metade da cura.
Ao cabo de cinco anos de clínica, figurava entre os nomes feitos. E de repente, por uma infecção, apanhada ao fazer certa operação insignificante, morreu. A doença não durou mais de dois dias.
Tanto Luiz Soares como Eduardo viviam em casas de apartamentos. O de Eduardo era luxuosíssimo. Nele recebia frequentemente a amante e não raro saía com e ela e o amigo.
Quando Luiz Soares teve a notícia horrível, viu-se com duas incumbências desagradáveis: prevenir a amante e a família do amigo. Ambas estavam longe. Da família chegou o pedido para ocupar-se com tudo quanto pertencia a Eduardo, porque o parente mais disposto a vir só o faria, sem grave transtorno, quinze dias após. A amante viria mais depressa. Também ela telegrafou: "Favor guardar tudo quanto possa interessar-me. Estarei aí dentro de oito dias."
Na casa de apartamento as chaves se entregavam indiferentemente a Eduardo ou a Luiz. Alguém, conhecendo-os bem, gracejou um tanto com a situação de testamenteiro fatalmente incumbente a Luiz.
Dois dias depois do enterro, ele pensou em dar um balanço em tudo quanto pertencera ao amigo.
Abriu a grande gaveta da secretária; o morto chamava-a seu "amatório". Lá achou vários retratos da amante, muitas cartas e mesmo um diário: diário de folhas soltas, pequenas notas avulsas, escritas à máquina.
Lendo-o, ideia diabólica lhe acudiu. Substituiu várias páginas. Em uma, por exemplo, o amigo escrevera: "Saí ontem com Henriqueta. Vejo com tristeza a invencível antipatia dela contra o Luiz"
Fato verdadeiro. Luiz já se tinha dele apercebido, embora Eduardo o negasse.
Não se tratava de aversão profunda, mas em três lugares Luiz achou alusões à malquerença inspirada por ele à amiga do amigo.
Resolveu alterar as coisas, trocando as páginas onde achou referências ao fato.
Aquela, por exemplo, ele a substituiu inteiramente: "Saí ontem com Henriqueta e o Luiz. Curioso o caso dessas criaturas. O Luiz parece cada vez mais encantado com a Henriqueta; esta entretanto lhe tem quase aversão. Se eu pudesse repetir a proeza atribuída a Catão, dava-lhe de presente a Henriqueta. Aturo-a por honra da firma. Ele, entretanto, parece adorá-la. Quem nos ouvisse conversar, acreditá-lo-ia o amante dela e quem nos conhecesse superficialmente achar-me-ia no dever de ter ciúmes. Felizmente conheço bem a correção e a lealdade do Luiz."
Em três outros lugares fez idênticas substituições. Nada mais fácil, pois bastava arrancar uma página e pôr outra no lugar Folhas volantes, as que colocou, escreveu-as como as demais, com a mesma máquina. As que arrancou, picou em pedaços miúdos e deu-lhes sumiço. Feito isso, colocou o livro de notas no mesmo lugar onde anteriormente estava.
Traição ao amigo? "Traição" importaria talvez em palavra muito solene, porque deveras a ligação de Eduardo não chegava a extremos de paixão. Pelo contrário. Mais de uma vez dissera realmente a Luiz que a sua afeição por Henriqueta nada tinha de profundo. Nunca se casaria com ela. Parecia-lhe ótima parceira para leves amores extralegais, como os seus eram; mas estava certo de acabar deixando-a para regularizar a sua situação social. Nessas condições, nada de muito estranho ela entrasse no espólio do finado como legado ao amigo.
Henriqueta, ao chegar, oito dias após, apressou-se em telefonar Falou com Luiz: entre os papéis de Eduardo, devia haver cartas e bilhetes dela. Não interessavam a ninguém. Alguns desses escritos, percorridos por estranhos, pareceriam até cômicos. Queria reavê-los. Luiz concordou.
Do par dissolvido pela morte nenhum tinha contas a dar à sociedade. Eduardo se proclamava, como frequentemente se exprimia, "solteiríssimo". Henriqueta podia dizer-se "vivíssima"; fora casada apenas três anos. Estava agora com 27, num verdadeiro esplendor de força e beleza e, de a mais, só e rica, sem filhos, nem parentes de qualquer espécie.
Revendo-se pela primeira vez após a morte de Eduardo, Luiz e Henriqueta combinaram que almoçariam em qualquer gabinete particular de hotel e depois ele a traria para o apartamento do amigo. Eduardo usava trazer todas as suas chaves, em aro de ouro, na corrente do relógio. Luiz entregou-as a Henriqueta e disse-lhe que permaneceria no escritório até ser por ela chamado pelo telefone particular do quarto de Eduardo. Garantiu-lhe não ter estado vez alguma nesse quarto, depois da morte do amigo.
Quando entraram, havia sobre a mesa do morto duas esplêndidas fotografias: uma de Eduardo e outra de Henriqueta. Henriqueta pegou na do morto e ficou algum tempo mirando-a, com os olhos rasos de lágrimas. Luiz tomou a fotografia dela e disse:
— Como eu fiz mal em não ter vindo cá.
— Por quê?
— Porque me teria apossado desse retrato. Ela fingiu não entender o claro pedido e objetou:
— Isso o interessaria tão pouco.
— É um engano, um grande engano seu.
Ia nesse pequeno diálogo verdadeira declaração de amor feita por ele, e, mais uma vez, a afirmação da repulsa de Henriqueta. Ali mesmo arranjaram pequena maleta de mão, a fim dela levar o que desejasse. A primeira coisa a ser nela posta foram os dois retratos. E Luiz seguiu para o seu escritório.
Mal ele partira, Henriqueta abriu a gaveta onde estava sua correspondência. Sabia onde se achava. Também conhecia a existência do livro onde Eduardo tomava notas; nunca, porém, o havia percorrido. Eduardo mesmo lhe declarara considerá-lo um repositório de segredos.
Henriqueta enfiou-se em lindo quimono empreendeu arrumar a sua velha correspondência. Só então sentiu curiosidade de ler algumas notas do Diário. Falariam dela? Falavam — e até abundantemente como natural. Havia numerosas referências. Quando chegou àquela onde Eduardo dizia aturá-la por honra da firma e leu com assombro a afirmação dos sentimentos de Luiz, o seu espanto se tornou enorme. Correu então febrilmente todas as outras notas. Nem de leve sentiu dúvida sobre a autenticidade dos pérfidos enxertos. Mas por outro lado, a sua admiração subiu a extremos insuperáveis.
O Luiz a adorava e o Eduardo apenas a suportava?!
Nunca o imaginara.
Mas então — e só então — compreendeu ou julgou compreender porque Eduardo nunca lhe mostrara o Diário. Quando ele o chamava um repositório de segredos e sorria, Henriqueta julgava adivinhar esse sorriso; havia seguramente nessas notas muitas expansões do seu amor a ela. Entretanto, só havia — oh! o abominável pérfido! — agora o estava lendo, a declaração de limitar-se a suportá-la.
E ela o amara tanto!
Em certo momento estampou-se-lhe no rosto uma cólera violenta. Quase se teria por seguro, se ela o pudesse, desenterraria o morto no sepulcro para esbofeteá-lo.
Não pôde ir tão longe, mas revolveu rapidamente a maleta e tirou os dois retratos. Pôs o de Eduardo sobre a mesa, onde estivera, e o seu, o que pouco antes ela negara a Luiz, deixou-o de fora, cuidadosamente embrulhado. Ajeitou tudo mais e tocou para o escritório do advogado, chamando-o.
Este não se fez esperar.
Henriqueta o acolheu com aperto de mão muito caloroso. Os habituais não eram assim. Luiz viu logo o retrato do amigo restituído ao seu antigo lugar.
— Vai deixá-lo?
Ela respondeu, como se isso fosse natural:
— Eu tenho outros. Talvez este a família deseje conservar.
Luiz sentiu uma ponta de remorso, diante daquelas frases. Elas traduziam bem a alteração rapidamente produzida nos sentimentos de quem as dizia. Alteração mais profunda representou ainda o fato de Henriqueta dar-lhe o próprio retrato poucas horas antes negado.
— Falou-me, há pouco, no seu interesse por ele.
E sorria deliciosamente.
O moço agradeceu com ardor.
A casa onde estavam constituía uma coleção de apartamentos de luxo. Sete andares.
— Ainda mora onde morava?
Luiz lhe respondeu a verdade: para um solteirão, como ele, o apartamento onde vivia, aliás longe dali, bastava amplamente. Henriqueta teve então uma proposta estranha: a de tomar ele um apartamento na casa onde ambos naquele momento se achavam. E acrescentou:
— Não este. Qualquer outro.
Luiz admirou-se. Ela volveu:
— Se aceitar minha ideia, a juntou, eu também tomarei outro apartamento aqui para mim.
Nessa fúria, pela qual Henriqueta, mal saída dos braços de Eduardo se atirava aos de Luiz, nem tudo era tão indigno como podia afigurar-se. Ao contrário! Parecia à moça ter andado muitas vezes mal, buscando separar Eduardo e Luiz, e votando a este uma aversão injusta.
Agora, Eduardo lhe parecia ter roubado o amor pertencente de direito a Luiz. E ela devia a este, como indenização sentimental, anos de carícias.
Ele, entretanto, estava atordoado. O resultado das alterações do Diário estava indo muito além dos seus cálculos. Henriqueta lhe estendeu ambas as mãos. O moço as tomou e ela se deixou atrair. Um segundo após, quando ele concordou, Henriqueta estava nos seus braços, com os lábios nos lábios dele. Luiz destacou-se apenas para ouvir-lhe a última proposta:
— Mas nas nossas relações haverá uma condição formal: nunca, em hipótese alguma, a propósito de nada, me falará em "seu" falecido amigo Eduardo.
E frisou bem o adjetivo possessivo. Era como se pusesse fora o morto. Ficaria para quem o quisesse. Não tinha mais nada com ele. Varria-o mesmo do passado.
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