Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Quando o pintor Machado quis mudar-se para o atelier, vago com a morte do seu amigo Antunes, teve grandes dificuldades. Onde achar fiador idôneo? A sua reputação de caloteiro estava tão solidamente firmada como a de grande artista. Achava-se mesmo, quando o amigo morreu, com uma ordem de despejo do proprietário da casa onde habitava.
Sucedera com essa ordem um episódio engraçado. O proprietário, cuja caligrafia habitual já era deplorável, a escrevera num rompante de exasperação. Não havia por isso nem uma só palavra inteligível.
O Machado deu o escrito a interpretar a várias pessoas, mas ninguém logrou entender coisa alguma.
Na realidade, embora sem ter lido nada, ele previa bem o seu conteúdo. Fez-se, porém, de inocente e teve o topete de ir procurar o proprietário.
A recepção deste — e aliás não surpreendeu o Machado — esteve longe de ser das mais amáveis. Ia o pintor tirando da sua ensebada carteira a ininteligível missiva e começara exatamente dizendo tê-la recebido e não a ter podido entender, quando o proprietário, rubro de cólera, o interrompeu, recusando ver o papel:
— O escrito aí quer apenas dizer: "Ponha-se na rua!" Mais palavras ou menos palavras pouco importam. O sentido é este.
O fim da palestra não foi mais gentil. Machado viu a situação: tinha mesmo de mudar-se. Mas para onde? Para onde?
Nesse momento vagou o atelier do Antunes. Nele havia uma esplêndida sala com sete metros de comprimento e no fundo um grande espelho. Um ideal! Os pintores aproveitam esses casos, porque, pondo um quadro na parede fronteira ao espelho e colocando-se junto do quadro, podem ver-lhe a imagem ao dobro da distância. Praticamente, no caso do atelier do Antunes, cobiçado pelo Machado, era como se a sala tivesse 14 metros. Magnífico!
Machado foi ao proprietário — Sr. Guilherme — e formulou a sua candidatura. O homem lhe pediu fiador. O pintor teve uma ideia. Fez-lhe um pequeno discurso:
— Eu vou deixar uma casa do comendador Gloria. O senhor não ignora como o comendador é um proprietário feroz, um proprietário implacável. No entanto, veja sua carta.
Sacou do bolso uma carta — era precisamente a da sua expulsão — na qual havia o cabeçalho da casa de comércio do comendador, e leu em voz alta, como se fosse este o seu textual conteúdo:
"Meu caro senhor Machado,
Lamento muito a sua resolução de deixar a minha propriedade, da qual foi o melhor inquilino, o mais constante pagador.
Verifiquei com prazer não me ter enganado quando confiei na sua palavra e lhe entreguei as chaves da minha propriedade sem fiador algum, contra o meu costume."
E num gesto cinicamente confiante o pintor passou o documento ao proprietário. Este o tomou e procurou lê-lo; mas não entendeu nada. Teve, porém, vergonha de confessar esse fato.
O proprietário era aliás um sujeito muito míope. Usava uns óculos redondos com grossos aros de ouro. Apesar disso aproximava do rosto os jornais e papéis a ponto de quase os esfregar nele. Era lícito perguntar se ele lia com os olhos ou com o nariz.
Via-se, entretanto, muito bem na famosa carta a assinatura: "M. Glória" e ela corroborava o cabeçalho. O proprietário devolveu o papel e murmurou:
— Bem, bem. Isso vale mais que uma carta de fiança.
E depois de um minuto de reflexão acrescentou:
— O apartamento é seu. Aqui lhe dou a autorização para lhe entregarem as chaves.
E passou-lha. A custo o Machado reprimiu um sorriso. No dia imediato estava instalado na sua nova residência: a abundância de móveis não lhe poderia dificultar a mudança.
Esta, porém, foi comemorada com uma comezaina festiva, em companhia de cinco camaradas. A regra nessas comezainas era que cada um trazia alguma coisa "para melhorar a boia". Às vezes, no entanto, essa melhoria era toda a boia. Havia, porém, de bom a alegria daquelas seis almas moças, despreocupadas, cheias das mais prodigiosas esperanças.
O estratagema do Machado para apanhar as chaves obteve um enorme sucesso de hilaridade.
Acabado o jantar, saíram juntos os seis a passear A noite estava tépida, deliciosa. Perto viera instalar-se um circo: O Grande Circo Transatlântico. Seria igualmente difícil dizer porque ele era Transatlântico e porque Grande. Bem pelo contrário, constava de uma pequena armação de lona e uma pequena arquibancada. Quanto à pista central era do tamanho regulamentar, fixado pela convenção internacional para todas as pistas de circo.
Os seis artistas instalaram-se nas arquibancadas e foram os espectadores mais alegres e ruidosos da noite. Com o palhaço, de uma estupidez fenomenal, travaram longos diálogos. Isso divertiu imensamente o público. Um número, entretanto, causou impressão tremenda no Machado: era uma mulher montada num cavalo em pelo. Fazia coisas realmente maravilhosas.
A mulher era soberba. Tinha um corpo fino, elástico, admirável. O cavalo no qual trabalhava — e trabalhava quase nua, apenas com um ligeiro calção e duas pequenas couraças, sustentando os pequeninos seis, firmes e lindos — merecia também os maiores elogios.
— Um admirável quadro a fazer: A Amazona, pensou o Machado.
Aos seus olhos de pintor essa tela apareceu imediatamente: nua, muito branquinha, no cavalo todo negro. Seria lindo!
Além desse número, o mais notável era o leão Menelik.
O dono do circo aparecia e fazia um discursinho. Explicava como o leão fora apanhado na Núbia. Era feroz e traiçoeiro. Nunca pudera ser bem domesticado. Tinha matado dois domadores.
O proprietário pedia aos espectadores que durante a exibição de Menelik se abstivessem de fumar. Os pontos acesos de fogo tinham o dom de irritá-lo e, já mais de uma vez, a fera avançara para as arquibancadas onde havia fumantes.
Dito isso, baixavam-se muito as luzes. O leão trabalhava em meia escuridão. Ouviam-se muitos urros e o domador parecia extremamente medroso, porque a cada passo multiplicava os tiros de pólvora seca, para assustar a fera. Esta, porém, pouco fazia.
Nos dias seguintes o Machado começou a frequentar o circo durante o dia, para convencer a mulherzinha do cavalo, a fim de vir pousar para o seu quadro.
O Machado era um belo rapaz. Muito inteligente e alegre, não lhe faltava lábia. Facilmente conseguiu o seu desejo e a mulher decidiu-se a pousar para o quadro por ele projetado. Por sua vez, ele entrou na intimidade do diretor e de todos os artistas do Grande Circo Transatlântico. Praticamente, parecia fazer parte da companhia.
Estava radiante. O quadro foi ficando soberbo. Mas no meio de tudo, ele se esquecia apenas de uma coisa: de pagar a casa.
Não foi de admirar quando um dia amanheceu com uma ordem formal de despejo do proprietário. Em uma carta insolentíssima este lhe dizia: rua! imediatamente na rua!
Mas o Machado mostrou-se à altura da situação:
Foi ao telefone:
— Faça o favor de vir cá amanhã às 3 horas da tarde, trazendo o recibo não só do vencido como dos três meses do próximo trimestre. Pagarei adiantado. Traga o recibo já selado e prontinho!
O proprietário não cabia em si de espanto: mas rejubilou. Lá estaria, no dia imediato, com o recibo. Iria em pessoa fazer o recebimento, como aliás era o seu costume.
E no dia seguinte lá estava, de fato, sendo recebido pelo Machado, com uma cara muito séria.
O Sr. Guilherme, com os seus grandes óculos de aro de ouro, cumprimentou o pintor, entrou e preparou-se para receber o dinheiro. Foi mesmo logo retirando o recibo da carteira. O Machado lhe moderou um pouco a pressa:
— O Sr. Guilherme terá a bondade de demorar-se alguns minutos, porque eu estou esperando o dinheiro. Não perderá muito tempo.
Posto de bom humor pela perspectiva da soma a embolsar, o proprietário corria os olhos pela casa. Viu no fundo o quadro com a Amazona. Era realmente uma formosa tela. O contraste entre o corpo muito branco da mulher e o pelo sedoso e negro do cavalo fazia cada um deles realçar o outro. Mesmo a despeito da sua miopia e da sua absoluta falta de educação artística, o capitalista não podia deixar de admirar.
O Machado interveio:
— Tenho trabalhado, meu caro senhor Mas quando o proprietário ia talvez fazer um cumprimento ouviu rosnar surdo e viu alguma coisa a mover-se.
— Como se chama aquilo? Parece um leão.
— Parece, não — corrigiu o Machado. É o mais autêntico dos leões.
— Mas o senhor tem um leão dentro de casa?!
— Nada mais natural. Precisando pintar uma cena do deserto, obtive para modelo o leão do circo vizinho, o Menelik.
— O Menelik saltou o proprietário horrorizado, pondo-se de pé. Mas isso é um perigo enorme!
Ele ouvira os netinhos falarem-lhe da terrível fera.
Durante esse tempo, o Menelik se aproximava. Machado aconselhou ao Sr. Guilherme:
— É melhor o senhor tirar os óculos. Com os seus grandes aros de ouro, eles espantam e podem irritar um pouco o animal.
Este era deveras o autêntico Menelik do Grande Circo Transatlântico... Como se tivesse entendido o que se dizia, o leão adiantou-se e rosnou ameaçadoramente.
O senhor... Guilherme deu-se pressa em obedecer à sugestão do pintor... Era para ele um inconveniente, porque ficava quase cego... Continuava a murmurar:
— É um perigo... É um perigo...
Machado, com um grande desprendimento filosófico, lhe respondeu:
— Ora, Sr. Guilherme, de perigos vivemos nós cercados. E não são os visíveis os piores.
O proprietário não parecia conformar-se com esta resignação evangélica. Todo ele tremia.
— Mas o senhor não tem medo?
— O animal não é tão feroz como o fazem crer os reclames do circo. Salvo um ou outro caso, quando se irrita com certos visitantes, tudo vai bem. Outro dia, por exemplo, aqui veio um moleque. Menelik embirrou com ele, avançou e, com uma dentada, arrancou-lhe a barriga da perna esquerda. Também não foi além. Hoje pela manhã aqui esteve o idiota de um advogado, que me quer fazer pagar 3:000$000 pela barriga da perna do moleque.
— Mas o advogado tem razão! Ponderou o proprietário.
E prudentemente anunciou a intenção de retirar-se.
— Eu voltarei amanhã ou mandarei alguém, Sr. Machado.
Menelik, que rodava lentamente pela sala, rosnou surdamente e foi deitar-se bem junto da porta da saída.
— E esta!
Machado atalhou com energia:
— Tenha paciência, Sr. Guilherme. O senhor me escreveu uma carta muito áspera, muito desagradável e eu não durmo outra noite com aqueles desaforos pesando sobre mim. O senhor hoje quando sair daqui, não será mais meu credor. Sairá quite. Seremos amigos, mas não lhe deverei mais nem um vintém.
A agitação do capitalista crescia de momento a momento. Todo ele tremia lançando olhares furtivos para o lugar onde estava o leão. Aliás, sem óculos como estava, distinguia apenas uma massa confusa e rosnante. Porque Menelik parecia estar ficando irritado. E por sua vez, firmemente, o pintor repetia: O Sr. Guilherme, ao sair naquele dia dali, não seria mais seu credor Ele, Machado, tinha "atravessada na garganta" a carta insultuosa do proprietário.
Este, porém, ao passo que os roncos de Menelik cresciam, tremia de pavor Todo o seu corpo, e era um corpanzil obeso, tremia como uma mola de campainha elétrica em vibração. Afinal, sacando da carteira o recibo do pintor, recibo por todo o passado e mais os três meses por vir, disse-lhe gaguejando:
— Olhe, Sr. Machado, eu não posso mais esperar. Tome! Tome! O senhor não me deve mais nada. Estamos quites! Estamos quites! Eu não posso continuar a correr aqui este perigo. A vida é mais importante que alguns mil réis. Afaste esse leão para eu sair.
Machado, tomando o papel e metendo-o no bolso, ia, entretanto, dizendo:
— Quanta impaciência, Sr. Guilherme! O senhor não corre perigo.
E mandou o leão afastar-se:
— Sai, Menelik!
O leão saiu. Machado ainda viu no corredor o Sr. Guilherme repondo os óculos e partindo.
Ao fechar então a porta, levantou o leão, abraçou-se com ele e dançaram um maxixe furioso. Porque o famoso Menelik não passava de um embuste do Grande Circo Transatlântico. Era um figurante hábil quem envergava a pele do animal. Por isso o diretor do circo tinha o cuidado de preparar aquela encenação, baixar as luzes, pondo tudo quase às escuras. Íntimo do diretor, como acabara por ser, Machado passara também a íntimo de Menelik.
E agora os dois, abraçados, maxixavam furiosamente e o Machado agitava na mão o recibo.
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