Martírio de um anjo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Despontara risonho o dia 23 de maio de 1856. Era profundo o anil do céu. Nem uma nuvem sequer toldava o puro azul do firmamento, nem um sopro de desgosto vinha embaciar o prisma da felicidade humana.
Tudo era bulício, vida, amor!...
A natureza, revestida das magnificentes pompas da primavera, desentranhava-se em flores e frutos, revelando mais e mais a grandeza e onipotência do Criador, que avulta tanto no mais humilde inseto, como no mais esplêndido organismo.
Folgava a toutinegra no raminho frondente, dizendo-se ternos amores com o emplumado rouxinol, cujo canto mavioso repercutia em ecos longínquos o idílio melancólico da criação.
Impelida doidejava a mariposa de flor em flor, e a brisa, tépida, ciciava de mansinho ao perpassar por sobre a solitária florinha.
Em delirantes êxtases, suspirava a pudibunda donzela, sorvendo grata a vida num casto e puro anseio.
O amante, sem desfitar os olhos da fugitiva linfa, mudo contemplava, gentil, o retrato da sua amada.
E ao pobre faminto, para quem a ventura fora meteoro fugaz, no horizonte medonho da humana desdita, sorriu a furto um raio de esperança no seu espírito angustiado por cruciante dor.
Sublime era o quadro, beatifica a visão!
E qual seria o ente, cuja alma fosse aleitada por uma centelha divina, que não sentisse roubar-se-lhe a existência ao contemplar tão sublime maravilha, tão rara formosura!!...
Que Rafael seria capaz de reproduzir na tela esta estrofe melodiosa e suavíssima do Senhor, a que os homens deram o nome de — primavera!!...
Molemente reclinada em flácida alfombra, Leonor, parecera, contudo, indiferente às doçuras deste panorama, e ao brilho da sua divina poesia. Em que cismava aquele anjo de pudor?... Que fatal magnetismo a arrastara ali?
Ninguém o poderá dizer. Ao certo só sabemos que a sua alma, cheia de sublime poesia, procurara instintivamente aquela solidão, como que agrilhoada pela necessidade inata de fugir ao mundo e aos seus encantos.
Leonor chegara do Brasil havia poucos meses. Cecília, sua mãe, vendo-se viúva, com este único tesouro das suas entranhas, para logo tratar de alugar casa em Benfica, não só por ser esse o lugar da sua naturalidade, senão também pelo desejo de satisfazer às reiteradas instâncias de sua filha, que desde muito aborrecia a cidade. Ali viviam aqueles dois anjos uma vida beatifica, alentados pela mútua esperança, e identificados pelos poderosos laços do amor.
Leonor, no dia em que a encontramos, completara vinte anos: tinha, portanto, atingido essa idade sublime e misteriosa, mormente para a mulher, que, elegíaca por condição, sente o vácuo da sua existência, arrojando-se loucamente às ondas do amor, talvez, pela natural fragilidade da sua natureza.
Quem sabe, se nisto divagaria a nossa poetiza, no momento em que a encontramos no seu pitoresco jardim?
Uns vislumbres de saudade, de tristeza e melancolia animavam seu rosto naturalmente pálido. — Aqueles olhos pretos e rasgados, enturvecidos por uma névoa de languidez, provavam bem quantos e quão perigosos seriam os pensamentos que se lhe agitavam na mente.
Sua mãe viera pé ante pé, curiosa, sem dúvida, por penetrar no recôndito daquele coração. Leonor pressentiu-a, e sorriu-se. Cecília pousou seus castos lábios na angélica fronte da filha, e nela depositou, com maternal carinho, o néctar que dimanava de seu extremoso peito. Depois, tomando entre as suas as mãos daquela pomba, disse:
— Então que tens tu, minha querida filha? Tão triste e solitária no dia de teus anos! Ora anda: fala francamente a tua mãe.
— Oh! minha querida mãe, quanto lhe sou devedora! Como havia de eu estar triste, tendo-a aqui ao meu lado? Não vê que sou tão sua amiguinha, e como já estou tão alegre?
— Por quem és, Leonor, nada me queiras ocultar. Poupa-me a um sacrifício doloroso, dispensando-me a sinceridade que mereço. Compreendo a tua dor, como se minha já fosse. Tu amas, bem o sei. Tenho presenciado tudo. Nada me é estranho.
Leonor corou de involuntário receio, ao ouvir as ternas expressões de sua mãe, e por alguns minutos permaneceu em cismador enleio, como que subitamente preocupada por estranho pensamento. Recobrando, porém, a serenidade, que momentaneamente houvera perdido, prorrompeu nos termos seguintes:
— É verdade, minha mãe, nada lhe desejo nem posso ocultar. Eu amo meu primo Maurício. Amo-o com toda a pureza da minha alma, e em todo o fervor da minha existência. Uma circunstância poderosa veio, contudo, cavar um abismo entre nós, e forçar-me à dura colisão, em que, mau grado meu, me tenho conservado. Foi esse o motivo por que há mais tempo lho não declarei, intimamente convencida de que a minha bondosa mãe perdoaria mais uma vez esta falta à sua filhinha, que tanta felicidade lhe deseja.
— Julgas, talvez, que te culpo por isso; antes, pelo contrário, não podia achar mais acertada a tua escolha. Maurício é um rapaz sério, capaz de te retribuir o teu afeto, e de desempenhar no futuro a missão de um marido exemplar.
— Sem dúvida, também assim o creio. Mas não lhe tenho já declarado por vezes que só me unirei eternamente a um homem de muita instrução e de grande saber?
— Isso é uma fraqueza da tua parte, que se virá a dissipar com o tempo; sendo que muitas vezes os homens mais célebres são exatamente aqueles que menos se coadunam com a índole do viver doméstico. Além disso, teu primo tem o desenvolvimento suficiente para te saber estimar; e eu morreria tranquila se um dia tivesse a dita de te ver enlaçada pelo afeto aquele que já posso apelidar — meu segundo filho.
— Oxalá assim suceda, replicou Leonor, com um disfarce feliz. O futuro só a Deus pertence. Amar a mediocridade, isso só pode ser o apanágio das mulheres vulgares. Por hoje não falemos mais nisso. Vamos antes esperar as pessoas da nossa intimidade, que decerto não perderão esta noite, para nos prestarem agradável companhia.
Dirigiram-se depois para casa, e assim correu o resto da tarde sem maior incidente.
Às nove horas da noite já se cruzavam nas salas algumas famílias, que expressamente tinham vindo festejar o aniversário natalício de Leonor, com brindes de toda a espécie. Esta não sabia como agradecer tantos e tão prolongados obséquios, que a cada passo lhe prodigalizavam os convivas recém-chegados. No entanto todos se retiravam sobejamente remunerados, com o galardão do seu peregrino talento e natural candura.
Maurício, como era de esperar, abrilhantou esta festa com a sua presença. Logo, porém, notou em sua prima um ardente desejo de o evitar. Na primeira quadrilha viu em Leonor hesitação, e que só forçada condescendência a obrigava a dançar com ele.
Não sabendo a que atribuir tão rápida transformação, recorreu a sua tia. Cecília, que a princípio vacilara em relatar o acontecido a seu sobrinho, não pôde de modo algum abafar o grito imperioso do seu coração, patenteando-lhe tanto ao vivo o pensamento de sua filha, que Maurício a custo reteve uma lágrima de saudade por aquela que já há muito dourava o horizonte de sua existência.
E quantas vezes um sorriso nos lábios oculta uma grande dor!...
Maurício, como se nada com ele houvera passado, voltou à sala, e dançou até ver a reunião completamente terminada.
Seriam duas horas da noite. Despediu-se de sua tia, e saiu. Mas, ai do mal fortunado mancebo!...
Longe de se dirigir para casa, divagou triste e pensativo pelas ruas da capital até ao alvorecer do dia, sendo a cada passo assaltado por dolorosas recordações, que lhe dilaceravam as fibras do seu apaixonado coração.
No dia imediato Maurício havia desaparecido de Lisboa!...
Deixemos agora esvoaçar quatro anos nas asas do passado, e voltemos a Benfica.
Ali reconheceremos Leonor, próxima de sua mãe, trabalhando diligentemente. Aquela flor, que há cinco anos se ostentava tão altiva e louçã, vede-a, presentemente, como vai estiolando e fenecendo, e ai dela!... se o céu, na sua infinita misericórdia, lhe não enviar o orvalho que lhe restitua o viço e frescor!
Estávamos, então, em maio de 1860, cujo mês fora assinalado pela rápida ausência de Maurício. E nisto falava a virtuosa mãe a sua filha, enxugando de quando a quando uma lágrima, que espontânea lhe rolava pelas faces. Não era tanto o desaparecimento de seu sobrinho que a afligia, como ela julgar-se a principal causa desse fatal evento.
Leonor vivificava o pesar de sua pobre mãe com gostosas consolações, que, puras e castas, brotavam de seu virginal seio.
Seriam talvez cinco horas da tarde do dia 30 de maio, quando sentiram bater à porta. Sensação particular, por aquele inesperado toque, fez estremecer mãe e filha. Mistérios há na vida humana que se não explicam. Este era um deles.
A porta da sala abriu-se, e o criado anunciou uma visita, que não queria dar o nome, mas que muito desejaria falar com a senhora.
Mandaram-na entrar.
Ora imagine o benévolo leitor qual não seria a profunda comoção, sentida simultaneamente por aquela família, vendo junto de si o sobrinho que há muito julgava perdido.
Maurício tinha chegado naquele dia de Paris, onde, a grandes e penosos sacrifícios, fora buscar uma solida instrução com o único intuito de realizar a sua felicidade futura, unindo-se a sua prima pelos laços matrimoniais. Cursava, então, o terceiro ano de engenharia, e viera passar as férias a Lisboa.
Leonor, ao ouvir dos saudosos lábios de seu primo a narração circunstanciada dos motivos, que o levaram a executar tão heroico projeto, sentiu aumentar-lhe gradualmente aquela paixão latente, que há muito ardia em seu peito. Ele, atento ao benévolo acolhimento e fraternal regozijo, que então lhe dispensaram, não duvidou em declarar-se a sua cândida prima, que o atendeu com meiguice e amor.
Rápido se passou o tempo de férias. De dia para dia se iam identificando aqueles dois corações, que tinham nascido para muito se amarem. E, semelhante a um grande rio, já não haveria dique capaz de lhe vedar o seu correr impetuoso.
O amor verdadeiro e puro é uma irradiação do sublime, e como tal uma aspiração constante para as regiões do absoluto.
Os esponsais ficaram tratados, e por eles Maurício voltaria dentro em dois anos formado, e sobejamente instruído para melhor poder satisfazer as nobres e santas aspirações de sua prima.
O leitor melhor poderá imaginar qual não seria a violenta agitação dos dois amantes ao dizerem-se o adeus da despedida. Um drama íntimo, impossível de descrever-se, e que só poderá ser bem apreciado por aquele que, no decurso da sua vida, se encontrar algum dia em idênticas circunstâncias.
Porém o bom senso de Maurício, e sobretudo a necessidade, que nele falava mais alto do que a voz de seu apaixonado coração, estimulou-o a prosseguir na vereda tão briosamente encetada, ainda através dos maiores obstáculos.
Partiu, levando a saudade gravada no íntimo do peito, e a esperança a refulgir-lhe por entre as perspectivas de um risonho porvir.
Ao entrar nesta parte da verídica narrativa, que intentamos esboçar, julgamos mais conveniente satisfazer a curiosidade da amável leitora, transcrevendo para aqui fielmente a limitada correspondência que se trocou entre Maurício e sua prima.
É o que vamos fazer.
CARTA 1ª (de Maurício a Leonor)
Paris, 1860.
Nem eu sei como relatar-te a minha viagem. Feliz teria ela sido, por certo, se te tivesse visto sempre a meu lado. Mas... não digo bem... a tua terna imagem acompanhou-me sempre. Na onda, que preguiçosa ia beijar a fulva areia; na estrela, que à noite cintilava nos céus; no espaço, que infinito se me atulhava; por toda a parte, enfim, meu anjo, a tua melancólica figura vinha sempre afagar a minha tétrica existência, e contornar uns doces eflúvios de amor no meu angustiado espírito.
Oh!... e quem me dera poder hoje abraçar-te, e depois num êxtase delirante, dizer-te: — Leonor, benéfica luz dos meus olhos; amo-te, adoro-te, sou teu. Mas um dia virá em que te poderei dizer desafogadamente: — agora, por toda a vida, meu amor, jamais me verás longe de ti!
Louco, que eu sou, na verdade! Insensato!... a dispor do futuro, como se meu já fora. Embora! Deus é bom! Não sejamos incrédulos! Ele, que na sua infinita bondade não esquece o desgraçado agonizante no leito da dor, por certo não consentirá que uma negra nuvem venha toldar o puro azul do nosso céu.
Leonor, por quem és, envia-me o bálsamo para as saudades que me oprimem o coração. — Maurício.
CARTA 2ª (resposta de Leonor)
Benfica, 1860.
A tua carta veio encontrar-me agonizando nas vascas de uma paixão febricitante.
Um dia sorriu-me o Oasis mimoso no deserto da vida, acerquei-me dele extenuada de fadiga, e com o meu pobre coração dilacerado por uma luta gigante, que me fora impossível evitar. Julgava ser aquele o alento para prosseguir na minha espinhosa tarefa!... Ilusão!... Sinto-me fraca, e não sei se terei forças para resistir às agitações febris que hoje me dominam.
Pede a Deus, meu bom amigo, me prolongue os dias da existência, para poder abraçar-te mais uma vez ao menos, e morrer depois com a consolação derradeira do moribundo, que vê junto do seu leito o vulto venerando do presbítero, amenizando a algidez do sepulcro com a unção da sua divina prece.
Lembra-te sempre da tua amiga, que, ao longe, vela por ti dia e noite. — Leonor.
CARTA 3ª (de Maurício a Leonor)
Paris, 1860.
Não sei como comunicar-te o temor violento, que se apoderou da minha debilitada existência ao ler e reler a tua carta. Aquelas linhas, ditadas pela fatalidade poderosa do amor, e escritas por tua angélica mão, que tantas vezes beijei com o anseio de largas esperanças no futuro, compungiram-me profundamente.
Justamente, quando o meu espírito alucinado procurava o cálix da ventura para docemente o libar, veio a desdita sentar-se ao lado, e envolver-me no luto de medonha desesperança.
Meu Deus! meu Deus! Quanto a vida é cruel, sem uma esperança fagueira que nos alimente os sonhos radiosos do porvir! Quão duro é de tragar o absinto desta existência efêmera!
Porque será que o espírito do homem é tão possante librando-se nos voos de uma fantasia ardente; e cai depois prostrado pela vertigem das paixões no mais temeroso de todos os precipícios?
Insondáveis são os arcanos do Criador!
A esperança vivifica; o amor martiriza!
Pudesse ao menos o holocausto do meu doloroso sofrer resgatar os dias santificados de Leonor, e eu satisfeito deporia a minha cruz, orvalhada pelas lágrimas de eterna saudade.
A ventura é um anseio febril em espíritos privilegiados. Mas a ventura é uma vaidade, uma quimera, entrecortada, apenas, pelas alternativas radiantes de melhores horizontes!
Feliz o homem que tem fé; porque a fé, para almas bem formadas, é a água redentora do seu batismo.
Porém o homem, que sente o gelo da descrença no seu coração; o homem, que não pode evitar a peçonha corrosiva do cinismo e da perversidade; esse homem é um desgraçado, um miserável, como muitos, que a sociedade escolhe para instrumento da sua implacável vingança, e opróbrio da humanidade!!
E quem me permite ajuizar da minha virtude?...
Só Deus o sabe, meu anjo, quanto é leal e verdadeiro o pranto acerbo, que derramei ao saber da tua sentida doença.
Possa, enfim, o Senhor ouvir a sinceridade da minha súplica, e fazer descer sobre ti o anjo da felicidade e do amor. — Maurício.
CARTA ÚLTIMA (de Leonor a Maurício)
Benfica, 1860.
Apesar da expressa proibição dos médicos de me evitarem tudo o que possa prejudicar o meu estado melindroso de saúde: não pude, ainda assim, furtar-me a um desejo imperioso de me associar ao teu pesar, mitigando-o, no caminho espinhoso do meu Gólgota.
É uma expiação, que a mim própria imponho, sem outro galardão, que não seja a retribuição do teu entranhado afeto.
As lágrimas têm um condão misterioso. Adoçam a adversidade terrestre, com a consolação extrema de um futuro incerto. Assim eu pudesse encontrar nelas o tópico provável para a medonha enfermidade moral que hoje me devora.
Tudo creio impossível.
Só a tua presença me poderia ser, talvez, refrigério momentâneo para o meu aturado martírio, e doloroso esquecimento.
Regressa, portanto, à pátria, meu bom amigo. Vem engrinaldar a fronte da esposa com as flores amarelecidas do sepulcro, e prestar um derradeiro tributo aquela que te amou na terra com o fervor da virgem e pureza dos anjos.
Só Deus poderá abençoar o nosso amor!...
Não posso mais... Maurício... Sinto-me desfalecer sensivelmente.
Adeus... adeus, e talvez... para sempre. — Leonor.
Inútil se tornaria aqui dizer, que Maurício obedeceu peremptoriamente às ordens de sua saudosa noiva, tomando bilhete para o primeiro vapor com escala por Lisboa.
Fora, porém, intempestiva a sua viagem.
Quando chegou a Benfica, encontrou a nudez e a solidão entronizadas no sólio, onde deveria ter existido o júbilo e a glória de dois amantes ditosos.
Leonor havia desaparecido para sempre deste mundo!...
O anjo da morte, estendendo suas negras asas sobre aquele coração de pomba, arrebatou-o para sempre à humanidade.
Eclipsou-se no céu uma estrela, e da terra voou um anjo à mansão dos justos!
Maurício libou até às fezes o cálix do infortúnio.
Aquele amigo verdadeiro e fiel; aquela inteligência robustecida à luz da profunda meditação; aquele coração de poeta; aquela imagem continuamente açoitada pelo tumultuar de sentimentos encontrados, onde meigamente vinha transparecer a morbidez e o desalento de uma paixão precoce, — nunca mais transpor o limiar da casa de Benfica, que outrora pisava, sentindo a vida a rejuvenescer-lhe a cada passo.
Ainda houve quem o visse, um mês depois, com as faces pálidas, os olhos cadavéricos e um semblante sepulcral.
Não era passado muito tempo, quando Cecília recebeu uma carta de seu sobrinho, concebida nos seguintes termos:
— Minha excelente tia. — Ao deixá-la em contristante e dolorosa desolação, tendo-se associado à dor e orfandade do espírito, como únicas companheiras, que lhe restavam no areal sombrio da vida, era mais do que dever de um filho aliviá-la, quanto em si coubesse, dos transes medonhos e caprichos da sorte, por que acaba de passar o seu bondoso coração.
Porém, minha tia, se neste mundo pode haver perdão para um desgraçado, conceda-lho.
Já a meus pés se abre o abismo incomensurável do cinismo e da descrença, que dentro em pouco me há de absorver.
Haverá muito quem me censure, chamando-me — louco!
Louco!... porque não soube abafar a palpitação febril de um sentimento elevado e nobre!
Louco!... porque não tive a resignação, para opor ao marulhar tremendo das vagas da desventura!
Louco!... porque cri na santidade do amor; ajoelhei perante um arcanjo celeste, e senti o fogo da inspiração a enroscar-se-me voluptuosamente pelos membros!
Louco, enfim, porque soube desprezar a imbecilidade dos homens pelo gozo inefável de uma ventura celeste!
O suicídio é a suprema aspiração de uma imaginação sublimemente grandiosa, que, não podendo suster o voo audacioso a que se arrojara, se despenha fatalmente no oceano do nada.
E a resignação o que é?...
A imobilidade física e moral, uma profunda negação do ser humano, e uma violação flagrante dos verdadeiros sentimentos.
O homem, que vê o seu nome malbaratado, a sua honra vilipendiada; sem ter uma mão caritativa, que lhe sirva de luz por entre as fragas estéreis da vida; sem mesmo um refrigério para as chagas do seu pobre coração; sem uma esperança, ao menos, que lhe acalente os sonhos radiosos do existir durante o correr tempestuoso, que vai do berço à sepultura: esse homem, digo, descrê da Providência; torna-se cínico; e vai buscar na ponta de um punhal aquilo que não pôde encontrar no meio dessa sociedade estulta e devassa.
E, ainda haverá quem condene o suicídio?!...
Condena-o, sim, a mediocridade, porque o não compreende; porque lhe é mesmo impossível conceber a luta gigante que se trava a cada passo nos espíritos altaneiros entre a razão e a vontade, — duas faculdades de que depende toda a nossa vida e bem-estar terrestre.
Por isso, minha bondosa mãe, e deixe-me chamar-lhe assim nos últimos instantes do meu passamento neste mundo, abençoe pela derradeira vez o seu desgraçado filho, que sem saudade abandona este teatro maldito, para ir tributar perante o trono do Altíssimo o santuário das puras afeições e leal obediência.
Adeus, minha desvelada mãe, e adeus para sempre. Não descreia do seu filho, e lembre-se que só no céu se poderá encontrar a remuneração condigna às virtudes mundanas. — Maurício.
Cecília ficou como que petrificada, ao receber o golpe inesperado, que lhe causara a carta de Maurício. Desvairada pelo infortúnio, assaltada por uma visão sinistra e cruel, aquela extremosa mãe vendeu a sua casa em Benfica, que lhe era recordar amargo de uma felicidade radiante e falaz, e recolheu-se a um convento, onde vive ainda hoje, acompanhada pela resignação, e alimentada pela virtude esperançosa de que um dia se irá reunir no seio do Criador aqueles dois mártires bem-aventurados, a quem o vulcão das paixões sorveu para sempre na sua cratera de fogo.
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