História de dois patifes
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Toda a manhã, Fernanda andou impaciente pelas casas, esperando os gatinhos. Ao acordar, fora aquela a sua primeira ideia — os dois pequeninos animais, cheios de viveza e graça, em cujos olhos ria uma inocência travessa e doce. Havia tempos que a tia Consuelo lhos prometera, quando fossem crescidinhos. E a cada visita à boa senhora, Fernanda levava horas e horas com eles, brancos de neve, uma finura de penugem que acariciava a pele, as duas cabecinhas inquietas com orelhas que se fitavam petulantemente, a cada ruído do gabinete. Fernanda tinha uma paixão por aqueles dois diabitos brancos que levavam os dias, ou sugando as tetas da mãe, grande gata de pelo fulvo e pupilas glaucas, ou rebolando no tapete os corpinhos elétricos, numa embriaguez de vida que fazia prazer. O gato era o mais leviano, com as suas patinhas fofas e os dedos rosados na planta, de que as unhas transparentes e curvas saíam desembainhadas, nos momentos de irritação, se lhe pisavam a cauda. Tinha os olhos azuis, cheios de fibrilhas inquietas mais escuras, uma ingenuidade selvagem no encarar, fitando as orelhas veludinosas, em que parecia residir toda a petulância dessa cabeça infantil. O focinho cor-de-rosa, com barbicas alvoroçadas, sorria um pouco, mesmo quando assanhado, e de gengivas, vermelhas e úmidas, os dentinhos em serra, agudos e pequenos, ressaíam gulosos, desafiando a gente. A gatinha afetava mais seriedade e mais coquetterie, uma ambição contida de se fazer senhora, e uma ciência complicada em se fazer amar do macho. Nunca era a primeira no ataque, e zangava-se, mal pressentia uma ofensa. À comida exigia os melhores pedaços, rosnando sôfrega, com a pata eriçada de unhitas curvas, contra o primeiro que lhe chegasse ao prato. Dormitava muito, como a mãe; às vezes o irmãozito chegava-se cauteloso, estendendo as patas e movendo vagarosamente a cauda, as pupilas cheias de um clarão de patifaria. Com um movimento destro erguia uma pata — zás! — no ventre da sua companheira, que entreabria preguiçosamente os olhos, imóvel, com o focinho enterrado na penugem do ventre. Esta indiferença benévola arrojava o gaillard do gatinho a maiores garotices. Chegava-se muito meigo, unhas escondidas, o dorso alto, as orelhas chatas e deitadas para trás. Com as duas patas da frente, cingia o pescoço da pequenina, e entrava a morder-lhe repetidamente o]?eito, os lábios, a pontinha das orelhas, enquanto com as unhas traseiras lhe raspava voluptuosamente o ventre e as coxas, provocando cócegas.
Ela estremecia, toda percorrida de um gozo íntimo e alongando o corpo para trás; e de ventre para o ar ficava imóvel, espreitando, com a boca entreaberta e os olhitos reluzentes de uma cáustica lascívia, de bacante nua. Abraçavam-se então, lutando, as caudas em espiras; armavam saltos por cima dos móveis, iam esconder-se nas franjas espessas dos fauieuilí muito baixos e, suspendendo-se em cacho dos pés esculpidos das consolas incrustadas de metal e madrepérola, sacudiam-se, balançando os corpos como dois ginastas em exercícios de destreza. A tia Consuelo impacientava-se já de semelhantes correrias. Descobria uma nódoa no carmesim do divã da sala e achara estripado a unhadas o ventre de uma antiga bergere preciosa, do tempo da senhora infanta D. Ana. Além disso, a estroinice dos brutinhos punha uma nota impertinente na monotonia sonolenta da casa, antiga casa cheia de silêncio e conforto, onde o piano dormia meses inteiros e os móveis do salão alinhavam, como colegiais em revista, os seus bojos vestidos em camisas de bretanha.
A gatarrona mãe, toda insensível às festas, muda e empertigada como a dona da casa, era tão indolente como esta; e ao lado de D. Consuelo, sobre uma almofada de seda, dormia dias inteiros, com uma coleira escarlate de fechos de ouro. Só ela, com a sua idade circunspecta e a sua moleza freirática, dizia bem no salão de cores austeras em que D. Consuelo recebia os padres de São Luís e as irmãs do Coração de Maria, e levava as tardes sepultada na voltaire, toda amortalhada em veludo negro, touca de rendas pretas e as Meditações sobre o Divino Jesus nos joelhos. De forma que, um domingo, determinou expulsar do santuário os patifes ruidosos, o que alegrou Fernanda vivamente: ia enfim ser toda daqueles garotinhos gentis e ferozes.
Era domingo, luminoso dia de primavera germinadora e florida, sonoro de rumores de gente festiva e cortada de voos de andorinhas meigas, que entravam a construir os ninhos pelas cimalhas das águas-furtadas. Fernanda não quis almoçar sem que os bichos viessem; conseguira dois lugares à mesa para eles; a gatinha ficar-lhe-ia quase no colo, o gato mais longe, com um pratinho de porcelana provido dos melhores bocados. E que nome lhes poriam? Foi um meditar profundo sobre o problema.
Houvera em casa uma gata francesa, que morrera de velha e tinha um rabo branco caricioso — a Blanche. Pobre querida! Estava sepultada no jardim entre duas roseiras de todo o ano. E Fernanda recordava o seu modo sutil de se roçar pelas saias à comida, com o ronrom dolente de uma beata oferecendo rezas, e o seu comer dificultoso de desdentada, rejeitando os ossos das perdizes e preferindo bolos fofos, de recheios aromáticos, que ao almoço se serviam em pilhas, sobre cabazinhos de rosas, de velho Sèvres rococó. E aparecera morta uma manhã de inverno, ao pé do lago. A gatinha devia chamar-se Blanche também, um nome da cor do seu vestido cetinoso de princesa. Mas o Artur, o garoto mais velho da casa, era de opinião diversa. Segundo ele, deviam batizar-se os dois bebês, na banheira de mármore do rés-do-chão, sendo ele padrinho, mais o trintanário.
Mergulhariam os moiritos na banheira cheia de uma água perfumada, ao som de rezas que só ele sabia, e de umas bengaladas valentes, ao primeiro berro que soltassem os neófitos, na banheira trasvazando. Depois do que, seria servido vinho aos pequenos, com aplicação de pancadaria suplementar e guizadas ao pescoço — o que os tornaria fortes, avisados e aptos à compreensão da vida e à constância na luta com as arganaças, que por acaso encontrassem nas excursões à despensa ou às cocheiras da casa. Fernanda magoou-se com semelhantes opiniões, e quase chorou pelos pobres inocentes que lhe mandava, do fundo do seu conforto beato e egoísta, a boa tia Consuelo. Quando eles chegaram num cabaz de vimes, com laços ao pescoço e um pouco assustados da jornada, Fernanda não sabia que fazer para melhor exprimir a sua satisfação: era um coro de risos cândidos e gorjeios inocentes; ia do pai para os joelhos da mamã e, esquecida já das maldades do Artur, passava-lhe os braços ao pescoço, cobrindo-lhe a face de beijos. Quisera para os dois gatinhos todo um palácio de seda e gulodices, com o seu trem completo de cozinha, a longa bateria de peças de folha reluzentes e pequenas, fogões instalados nos respectivos poiais de madeira pintada, um serviço de porcelana fina, mobília e carruagens elegantemente forradas a pedaços de cetim de todas as cores, lavatórios e leitos, uma multidão de objetos microscopicamente construídos, que a paciência da manhã adquirira durante uma semana inteira de investigações, pelos armazéns de quinquilharias da cidade. E a instalação, que encantadora e que trabalhosa!...
A gatinha saltava desdenhosamente por cima das otomanas e das causeuses delicadas, atirava com lavatórios e caçarolas, fazendo com a cauda desabar os guarda-louças tão ricamente providos. Quanto ao gato, foi impossível metê-lo no quiosque dourado, onde tantas preciosidades de mobília se acumulavam. Ao primeiro esforço de Fernanda para o fazer entrar, assoprou raivoso, desembainhando unhas ameaçadoras contra a doce protetora, que tão generosamente lhe ofertara opulência e conforto. E, apenas o largaram no parquet, desatou a fugir pelas salas como um desalmado evadido. Em breve, Fernanda se persuadiu da impossibilidade completa de fazer caseiro o ménage.
E a pomposa e pequenina residência passou a ser habitada por uma família extraordinária de bonecas de todos os tamanhos. A paixão do louro amorzinho pelos dois maus animais vertia agora o fel de uma ingratidão profunda. Ela não podia compreender realmente o desdém soberano dos gatos pelas magníficas provas de amor que lhes dera, no seu entusiasmo de pequena caprichosa. E, nos primeiros dias, os seus afagos para os gatinhos orvalhavam-se das lágrimas de um ressentimento angélico e mal contido. Eles, os dois patifes, adquiriram pouco a pouco a sua franca e leviana liberdade; ao almoço e ao jantar subiam pelos vestidos e pela toalha, reclamando em voz alta o seu talher de pessoas de família; atacavam sem a menor cerimônia os pratos que apanhavam sem guarda no aparador e nas bancas da cozinha; iam miar em coro por baixo das alcofas da carne crua e dos cabazes providos de peixe fresco; escamugiam-se sorrateiramente para a despensa, a encherem os bandulhos de quanto apanhavam de suculento, e umas vezes por outras, nas noites úmidas e chuvosas, tinham o péssimo costume de afiar as unhas nos mognos polidos e nos estofos matizados dos gabinetes, sulcando e rasgando, sem preferência e sem atenção de preços. Fernanda ria com eles e achava-os de uma graça cativante.
E, a todo o transe, defendia-lhes as velhacadas, orgulhosa de sofrer pelos que amava com tamanha loucura.
Chegou o dia dos anos do Artur — uma quinta-feira, em Maio. Determinaram ir passar o dia à quinta, em Carriche.
Ia a boa dama Consuelo, as pequenas Magalhães, as primas Lopes e todo o mundo infantil da família. Na véspera, disfarçadamente, enquanto Artur estava no colégio, Fernanda saíra com a mamã à compra de presentes para o dia seguinte. Tinha um mundo de projetos na mente: torres ideais de cartonagem com sinos dourados e portais de colunelos; jardins de cascatas surpreendentes; grandes exércitos de chumbo formados em ordem de ataque com baterias de latão; as arcas de Noé, em que reside um mundo inteiro de bugigangas coloridas; esquadras empavesadas de flâmulas com almirantes de estanho, comandando tripulações de madeira suíça; pequeninos teatros com figuras de verniz e paisagens ternas de Nuremberga; tudo quanto a fantasia pode realizar de pueril e caprichoso e quanto uma criança pode exigir, na incoerência dos seus devaneios cor-de-rosa.
A mamã aconselhava um cabazinho de doces frescos, do Baltresqui. Era mais delicado! Mas Fernanda tinha os olhos numa catedral de madeira branca, elegantíssima de cúpulas e rendilhados, por cujo pórtico profundo e alto, na sua escadaria de balaústres góticos, uma multidão de fiéis ia subindo, colada com goma-arábica.
— Que lindo, mamã, que lindo! — dizia ela pousando devotadamente as suas mãozinhas toute roses no magnífico zimbório com ventanas de espelho e ornatos de cartão, representando faunas engalfinhados. E imperiosa, empertigada nos tacões dourados dos seus sapatinhos de verniz, declarou que escolhera, e que o Artur deveria ficar muito encantado de um presente de tal modo original. A catedral foi conduzida na carruagem com extremas cautelas, ao lado de um chapéu que para a pequenina a mamã escolhera na Emília de Abreu. Recolheram cedo a casa, antes de o pequeno voltar, e à noite, num gabinete fechado e sobre a larga mesa coberta de tapete, os presentes da família e dos amigos do Arturinho, ostentavam, num soberbo bazar, as suas formas pitorescas e os seus matizes originais. Eram os cabazes de camélias vermelhas, bordadas de heras e pequeninos bouquets de violetas de Parma; as bocetas de cores vivas e esmaltes garridos, túrgidas de doçarias caras; grupos de porcelana e terre-cuite numa infinidade de posições ingênuas ou garotas. A Laura deixara a sua fotografia risonha de querubim pensativo, um rostinho doce coroado de uma bela cabeleira loira, em anéis. E os amigos todos, o Alfredo, o José e os dois gêmeos Nogueiras, tinham vindo trazer uma lembrança amável, chicotes, capacetes, cavalos de molas, mágicos em caixas, o diabo! Ao centro, a catedral de Fernanda, com as suas torres severas, de um gótico amaneirado, e o seu zimbório de colunelos flexuosos, erguia-se majestosamente no meio da cidade de camélias e violetas, e das pinturas vívidas dos cofres, cheios de rebuçados e pastilhas e aromatizados das mais finas essências.
Por entre as corbeilles, extravasando cores e perfumes, os gitanos de terre-cuite dançavam aos pares, e as pastorinhas de louça com os seus trajos coloridos e os seus rostinhos frescos, pareciam de antemão celebrar a formosa manhã a desabrochar no aniversário do dia seguinte.
Como o Artur ficaria contente, quando ao outro dia abrissem à sua curiosidade aquele profuso mundo de brinquedos e gulodices! E Fernanda, nos bicos dos sapatinhos e sem fazer ruído, arrumava e dispunha tudo, ao lado da mamã, tocando com a pontas dos dedos as coisas, como numa capela, absorta num êxtase profundo de sonhos inocentes, como se o seu espírito viajasse por um grande país de quinquilharias ideais e maravilhosas.
Quando acabaram a tarefa, a mamã sentou-a no colo, comovida por aquela dedicação fraternal e solícita, que tudo queria para presente de anos do Artur; beijaram-se ambas, por muito tempo.
— É verdade — disse Fernanda —, e o chapéu?
A mamã foi buscar o chapéu: era um delicioso bijou de palha amachucado à banda, com um ramalhete de miosótis adoravelmente perdido num tufo de gaze fina, tão fina que mal se apertava na mão, parecendo espumar por entre os dedos, como champanhe vertido de uma torneira.
A pequenina quis pô-lo: ficava graciosamente, um pouco tombado sobre os olhos.
De sob as abas, em caprichosos rodopios, rebentava a cabeleira loira de querubim, que adquiria contra a luz transparências de ouro fino, enquanto uma onda de tule branco ia cingir-lhe o pescoço, como aragens tecidas por mãos de princesas mouriscas, das que falam os contos do Meio-Dia.
O desejo de Fernanda era não tirar mais esse pequenino e fresco chapéu, cuja aba tombada enchia de uma sombra úmida os seus grandes olhos. Mas era forçoso esperar o dia seguinte, quando fossem para a quinta. A pequenina exigiu que o chapéu ficasse sobre a banca, entre os presentes de anos do Artur, descoberto e aninhado na sua onda fofa de tule branco. Esteve ainda a olhá-lo: os miosótis com as florinhas miúdas, de uma contextura paciente e nítida, dispostas num forte cacho azul, entre folhas verde baço, davam um encanto ingênuo à copa cônica, um pouco extravagante talvez. Visto de lado, parecia um ninho de penugens tépidas, de que os passarinhos houvessem partido um minuto antes. De repente a sineta tocou: voltava o Artur do colégio. Fecharam a porta do gabinete muito depressa, não desconfiasse ele. No dia seguinte, quando lhe mostrassem tudo, dizendo: — Aí tens, é para ti... — que loucuras e que júbilos não comoveriam esse vermelho endiabrado, de que os velhos criados tinham já medo! Apenas o gabinete ficou só, a gatinha trepou para cima da mesa, e pôs-se a mirar tudo, dando passadinhas leves, toda cautelosa pelo meio dos presentes acumulados, cheirando e lambendo aqui além. Nos seus olhitos garotos, um clarão de malícia ingênua, parecia beber enlevadamente os matizes; farejava os cofres por todos os lados, baixando a cabecita, como quem reflete. Diante da catedral o seu pasmo pareceu crescer, porque se deteve de pescoço estendido, a medir a altura das cúpulas, de patas firmes nos primeiros degraus da escadaria, com prejuízo de dois devotos de cartão, que esmagou com uma indiferença soberana. Deu com o chapéu de Fernanda enroscado na faixa de tule branco, e a passadas lentas foi para ele, com o dorso alto, espiralando a cauda, toda contente do achado. A tarde caía, e o gabinete carregava-se de sombra.
Pela vidraça, a paisagem ganhava manchas sombrias e grandes esbatimentos de um vago picado a pontinhos de gás rutilante. Subia do bairro comercial e das grandes ruas de trânsito um tohu-bohu de labutas que esmorecem, e carruagens que se perdem, circulando. Um sino tocava...
No gabinete, faziam-se deslocamentos confusos de formas e de aromas, e os olhos da gata, fosforescentes, luziam como dois faróis em flutuação, na penumbra alastrada em torno. A palha do chapelito gemeu: a gata acabava de enroscar-se no ninho da copa, fazendo posição, para dormir. Nunca sentira cama mais macia e mais doce que aquele fundo de chapéu forrado de seda branca, onde o tule enrolado dava uma moleza preguiçosa de coxim, de edredon! ainda porém não tinha cerrados os olhos, e já o irmãozito, dando um salto ágil, caía em cheio sobre a ampla aba do chapéu amachucando o precioso cacho de miosótis. A coquette então ergueu a cabecinha irônica com um meneio crioulo de amante benévola. De cima da aba curva, como de cima de um muro, pendia a patinha do gato, toda branca e nervosa, desafiando.
Essa pata estendeu-se, estendeu-se e, sutil como num jogo de prendas, deu uma sapatadazinha no crânio da fêmea, retraindo-se logo. Mas a gatinha parecia querer dormir e aninhou-se de novo no seu fundo de copa, onde a seda punha a alvura cariciosa de uma alcova.
A tática do gato mudou então: rebolando-se lascivamente pelo declive da aba, o marau pôde atrair a si todo o tule da faixa livre, que Fernanda enrolara ao pescoço, um momento antes.
Uma vez envolto nas ondas de espuma do tecido, entrou a arrastar o chapéu atrás de si, pela mesa fora. Foi o sinal: a gatinha sacudiu rapidamente a sonolência, espreguiçou-se com uma distenção prolongada de patas e de espinha dorsal, escancarando a goela e distendendo vigorosamente o corpinho da fera contente, que desperta. O dorso, de uma alvura singular de arminho, teve um lampejo brusco de centelha, quando o crânio chato e muito curto, de maxilas ferozes, roçou com um deleite pérfido de volúpia as penugens imperceptíveis das patas, armadas terrivelmente de alfanges curvos. Com um pulo agachou-se na copa do chapéu, como numa caverna, à espreita. O seu olho inquieto fuzilava. Todo o corpo encolhido percorria-se de pequeninos frêmitos de impaciência, que as orelhas continuavam, imprimindo à cabeça um grande cunho de astúcia recalcada. O gato vinha de rastos, apagando o som dos movimentos, garrido no seu tule como um pajenzito aventureiro. E, à medida que ele vinha, o pescoço da gata, do outro lado da aba, alongava-se, escorregando docemente pela seda do forro. Por fim, as patas encontraram-se, e cada qual disputou o tule, às unhadas, a dente. A faixa, que se desenrolava do corpo dele, acabou em frangalhos nas unhas dos dois.
Um golpe desunira porém duas fibras de palha, da aba derrubada. O gatinho meteu a cabecita pela abertura, radiante de maldade, e foi morder o cacho de miosótis. Do seu lado, a gata continuou a obra, descobrindo os dentinhos brancos. Mas em breve o destroço se propagou aos presentes de anos do Artur, com uma rapidez de saque premeditado. As corbeilles viram-se despojadas das suas cintas de hera, reluzentes e excentricamente recortadas, e dos seus maciços de camélias reais. Na vertigem do can-can desenfreado, que os dois diabitos armaram por cima da banca, todos os objetos leves eram arrojados para a banda num rodopio constante: os gitanos partiram braços e pernas, as pastorinhas ficaram sem cabeça, algumas bocetas violentadas cederam, e foi um destroço geral de natas, especiarias e recheios. Um rebuçado de ovos ficou pegado à catedral de Fernanda, obstruindo o pórtico por onde os devotos de cartão começavam a entrar, envernizados e festivos. E a valsa extraordinária continuava sempre, sem respeito e sem cansaço. Na manhã do dia seguinte, enquanto no pátio o cocheiro punha o landeau, e as carruagens chegavam, trazendo os priminhos e as numerosas tias, Fernanda, com uma deliciosa túnica azul-céu e um largo colar de marinheiro bretão, foi chamar o Artur, que acabava de vestir-se.
— Bons-dias — disse ela, beijando-o. — Tens ali muitos bonitos, vem ver.
O pequeno não quis saber de mais; foi às carreiras abrir a porta, e entrou cheio de avidez no gabinete onde estavam dispostos os presentes.
Ao princípio, Fernanda e o irmão entreolharam-se num desolamento indescritível, vendo os dois gatinhos abraçados, que dormiam tranquilos, no meio das ruínas do soberbo bazar construído na véspera. E tão sossegados como se nada lhes pesasse do que tinham feito!
— Olha — balbuciou Fernanda, sentindo as lágrimas na garganta —, estragaram tudo!
— É verdade — fez atônito o Artur.
Veio-lhe um ímpeto de raiva sanguínea contra os dois patifes, que pareciam zombar, com os seus tranquilos olhares, da assolação que tinham feito. E, com o primeiro chicote que viu, descarregou nos lombos do grupo uma vergastada sibilante, que arrancou um berro às duas gargantas contraídas.
Diante do esqueleto do gracioso chapéu de palha, tão pitorescamente ornado do seu cacho de miosótis, a pequenita, cruzando as mãozinhas pálidas, de uma escultura fina e reticulada de veias microscópicas, chorava silenciosamente as pérolas de uma dor serena e de um amor espezinhado de ingratidões — porque amara com paixão os ingratos pupilos.
— Seus maus! — dizia ela sempre que os via na cozinha, já crescidos, dormitando na mesma cadeira.
Mas quase sempre a sua mão, esquecida e meiga, lhes ia afagar as cabeças sonolentas e chatas, como de dois pequeninos tigres preguiçosos.
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