Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Quando Jorge bateu, a Albertina acabava de se levantar da mesa. Era uma rapariga alta e fina, com um tipo miudinho e arrebitado, que dá à mulher o ar canaille da ribalta. A sua elegância formulava a última novidade dos armazéns de modas, tinha o chique do dia, a cor e a graça da última revista de Paris. Vestida com uma simples saia, um reles xale e um cuia torta, teria passado indiferente até à polícia civil, que é quem na capital rói nos últimos detritos da fêmea, que o amor escalavrou por essas alcovas e restaurantes noturnos. Sem o espartilho curasse que lhe dava o ritmo postiço e flexuoso do busto, sem as meias escarlates luzentes de abelhas de ouro e esticadas acima do joelho, sem os sapatos de decote largo onde uma roseta de cetim se enroscava com volutas de serpe negra, sem o nanquim das pestanas, a veloutine da garganta, o carmim da boca e a unha crescida dos fados eletrizantes, essa boneca, que tinha o ar de parir o útero à força de comprimir as ancas, daria a simples fêmea linfática, com folies de coeur e histerismos alambicados, ninho de tubérculos no peito e uma genuína incapacidade para os misteres da sua condição e da sua classe.
Seria uma preguiçosa, uma gulosa, uma estúpida, incapaz da maternidade, incapaz da abnegação, incapaz da luta pelos que amasse, da permanência no dever como um tabernáculo inviolável, e da resignação, tão heroica e tão santa, de certas mulheres pobríssimas, na sua labuta tormentosa e quotidiana.
Aquela vida do palco era a única que ela teria podido seguir sem contrariar os seus instintos e satisfazendo todas as suas vaidades.
Em criança tivera uma educação apurada e completa — diziam os pais. Falava as línguas, cantava, tocava, e implantara no pequenino crânio a paixão do luxo e a paixão do namoro — duas lanternas que ao longe pareciam iluminar-lhe as fantasias do futuro; de uma vez que a trouxeram a Lisboa e a levaram ao teatro, um subitâneo clarão se lhe fez dentro — tornara nítida a aspiração vaga em que ardia nas suas insônias de virgem provinciana, descobrira a vereda que, havia muito, as suas tendências tateavam, como um cego em busca de uma porta para tomar fôlego. Tinha sido na Trindade, numa noite de première. As decorações da cena com os seus cambiantes tenros, as suas florescências singulares, as cascatas de pérolas caídas na limpidez ideal dos lagos cortados a palmouras de cisnes, as transmutações, os adereços, os vestuários dos príncipes e das princesas, dos pajens imberbes e das bailarinas aladas, surgindo em atitudes lascivas das cascas de ostra gigantes esquecidas na gruta marinha da penedia, galvanizaram-lhe os nervos e o coração, arrebatando-a do seu ninho de senhora nubente para a fantástica alucinação das libérrimas existências onde se vive em azul, se cingem as carnes em fotosferas de pedras, e se faz roçagar no mosaico hilariante das alcatifas as longas caudas dos vestidos de quarenta libras, amarrotados hoje e amanhã benevolamente esquecidos a Fanchette, nossa confidente e a nossa criada de quarto. Ah! como seria bom cantar ali, quase nua, com os pequenos pés inquietos calçados na chinelinha de Cendrillon ou nas botas altas do príncipe Jasmim, os cabelos polvilhados de ouro, as mãos cobertas de rubis e a garganta titilante no frêmito de um trilo ou na petulância de uma ária, escarlate de provocações!... E as paixões desencadeadas com o ímpeto das procelas andinas, as súplicas virginais dos adolescentes louros que lhe devessem o primeiro grito do sexo espicaçado, as apoplexias dos banqueiros e as surdas invejas das mulheres mordidas pela estranha auréola do seu império!... Não dormiu nessa noite. Era cerrar os olhos e encher-se-lhe logo a cabeça de bailados, coros, transformações e esplendores, cuidando estar diante da multidão, frenética ante a nudez dos bustos e abrasada pelo calor do ambiente. O expluir das ovações como a embalava numa embriaguez funesta, que lhe fazia latejar as fontes; e em círculos de diabólicas valsas vinham-lhe as reminiscências da vida de terra pequena, tão insípida de episódios e tão árida de comoções, em que a sua mocidade deslizara até ali, como em calmaria podre. Operou-se nela então uma brusca metamorfose, uma rebelião feroz contra a pequena roda em que vivia. A tranquila casa burguesa dos pais, cheia de um conforto simples e de um aconchego honrado, fez-se-lhe odiosa e triste. Entrou a embirrar com os móveis, com os velhos criados, com o jardim de canteiros oblongos e cheios de magníficas roseiras que o papá cultivava, e tinham a reputação das mais belas da terra. As suas maneiras eram agora secas, as suas respostas sacudidas e imperiosas. Sofria distrações profundas, e respirava a espaços por grandes suspiros de cansaço. Aquela tristeza sem explicação inquietou os pais e as tias. Que era? Que não era? Depois, a fase de explosão chegou, período singular de contrastes, ora alegre, ora colérico, ora sarcástico, em que nada parava, as músicas, o guarda-roupa, os criados, a reputação e a toilette das ricas e pretensiosas herdeiras suas vizinhas. Tudo achava banal e indigno da sua atenção.
Uma crueza de palavras entrou a expluir-lhe na boca; achava os homens pelintras e as mulheres idiotas, e reclamou um dia asperamente do primo Jorge as cartas que lhe escrevera, dizia, para gozar com ele. E, como estranharam, ela bateu o pé, trêmula de raiva, gritando que nunca seria esposa de um homem com tamanho nó de goela.
Um dia desapareceu de casa para não voltar lá mais — e dali a um mês os cartazes anunciavam o seu debute.
Seis meses que se não viam. Como o tempo passa, bom Deus! Havia três que ela debutara, e tinham-se passado tantas coisas, tantas!... Quando ele entrou, Albertina sentiu um frêmito pela espinha dorsal ao encará-lo. Estava mais vigoroso e mais bonito, correto no seu veston de grandes botões, sapatos de bicos curvos e a calça azul-ferrete caindo amplamente sobre as polainas cor de pérola. Era alto, nunca lhe parecera tão alto, realmente. E o vermelho dos beiços dava-lhe um ar sadio, que a frescura dos dentes justificava. A vida de Lisboa refundira completamente aquele provinciano tímido, pacato e sincero, apaixonado pela caça, leitor dos maus romances e cheio de uns acanhamentos que, realmente...
Ela soubera da nova residência de Jorge, e, uma tarde, quando subia o. Chiado vestida na sua peliça e baixando a cabeça às barretadas dos folhetinistas que por ali se davam ares principescos, tinha dado com ele, cara a cara.
Fingiu não o ver. Tinham-se-lhe esgarçado já as primeiras ilusões faiscantes da vida nova em que entrara; sem querer até, experimentava às vezes, naquela solidão em que se via, mesmo no calor da celebridade que se arrogara, o quer que era de remorso, tristeza impregnada de torpor, um secreto medo da morte e a ternura para os tristes velhos que quase aniquilara com os desvarios daquela vida desonesta. Ria-se destas pieguices depois. Realmente, uma rapariga como ela era, a pensar em coisas de tão ridícula sentimentalidade!...
Um dia escreveu-lhe; queria ser perdoada, amada outra vez com aquele amor tão sincero e tão simples, de homem forte e cheio de mansidão benévola dos sãos. O egoísmo da gente com quem tratava fizera-lhe sentir a necessidade de ter como defesa um amigo leal. Estimá-lo-ia simplesmente, vertendo-lhe no seio as pequenas amarguras da sua vida caprichosa. Amá-lo não, talvez não. Além de que, Jorge podia lá amar uma mulher de teatro, que ia cear ao José Augusto com atores e jornalistas, dava beijos nas faces oleosas dos empresários, e era forçada a pagar generosidades de joias com generosidade de alcova... amá-lo não, ai não! Conhecia-lhe bem a linha de caráter, escrupulosa e séria. Sentira a adoração daquele homem, ardente e balbuciante, com uma espécie de misticismo estranho. Que dedicação e que lealdade! Ah! tivesse ela conservado a sua linha casta de filha única, reclusa na paz da casa paterna, e seria agora a esposa daquele rapaz de ombros redondos e epiderme fina, sob que um sangue generoso em retículos circulava. Que vida teriam feito juntos às noites, de serão, sob a luz do mesmo globo e em torno da mesma banca de trabalho, os pequenitos adormecidos num canto do sofá, caídos os reposteiros e uma paz celeste abrindo as asas sobre o dulcíssimo grupo das duas cabeças sonhadoras! Que de asneiras se fazem na vida, bom Deus! ainda se ele a quisesse como amante... Àquela ideia, uns restos de pudor afogueavam-na, erguia-se frenética amarrotando as bordaduras da robe, uma vontade amarga de morrer.
Encararam-se por um instante, ela com um sorriso contraído, ele de imperturbável seriedade e muito pálido. Quando Albertina lhe tocou na mão sentiu-a abandonada, como a que se dá aos indiferentes. Seis meses antes, que diferença!...
— Senta-te aqui — disse ela.
E passado um instante:
— E o meu pai, e a mamã?
Jorge encolheu os ombros.
— Que tens tu com essa gente?
— E verdade, esquecia-me — tornou ela baixinho, com um estrangulamento de lágrimas. Eram sete horas, e não havia espetáculo nessa noite. O gabinete tinha uma claridade velada, que, esbatida do globo fosco do candeeiro, amaciava os aspectos num penumbra vaga de entrevista. Comas janelas cerradas — era no Inverno — os perfumes dos enormes bouquets sufocavam, tépidos e langorosos. Nas jardineiras, em pinhas de pequeninos vasos branco e ouro, as begônias espalmavam as suas folhas decorativas. — Tordas, bronze raiado de escarlate e cobertas de um delicio crochet. Caíam pesadamente das galerias os reposteiros amarelos, destacando no fundo claro das paredes. Pelos fauteuils, na otomana e sobre as étageres douradas esqueciam-se as partituras em voga e os papéis, trasladados pela grossa letra enfadonha dos copistas. Num ângulo de mármore, jazia a cinza do charuto de um outro, que estivera antes e se fora. Jorge pôs-se a mirar em torno. Era luxuoso aquilo, cheirando a fêmea; em frente da otomana e por uma porta aberta, via-se um canto de toilette na penumbra; formas albas de cortinados de rendas, uma luzerna de espelho e ao canto a psychéde mármore branco, em forma de concha. Quem pagava aquilo tudo? dizia Jorge para si.
— Mas fala, pelo amor de Deus! — disse ela puxando-lhe o braço e forçando-o a sentar-se. E febrilmente, com a voz um pouco trêmula:
— Foi uma desgraça, bem sei. Tinha porém de ser, não há remédio já. É o destino, que queres? Fui bem má contigo. Uma mulher como eu era indigna de um homem como tu. Sabia lá fazer-me do teu tamanho!... — Atirou-lhe os braços ao pescoço: — Mas fala, fala!... — dizia entre beijos.
Jorge repeliu-a devagar, com esforço. Pensava, nem sabia em que estava a pensar. Estava magnífica, a priminha — era tudo.
— Há seis meses não usarias dessa frieza comigo — murmurou ela, deixando-lhe a cabeça no ombro.
— Eras honesta.
— És cruel, também.
— Ouve — exclamou Jorge violentamente, tomando-a pelos pulsos —, para que te pintas? Para quê?
— Eu?
— Tu. Nos olhos, na boca, nos ombros. E esta casa, quem paga? E este luxo? Não respondas. Paga quem entra, bem se vê.
— Oh, Jorge! — gritou ela em soluços. E um pouco dobrada deixava escancarar com abandono provocante a fenêtre do roupão de veludo, orlada de rendazinhas sobrepostas.
— É claro, bem claro — dizia ele com uma cintila de cão cioso na vista. E mais baixo, num tom de repreensão amiga:
— Foi para isto que deixaste Leiria, a nossa casa, o tio Arsênio e as famílias das nossas relações, não? Pensas que poderás viver sempre cantando, tendo celebridade e reclames nos jornais?
— E por que não? — dizia ela ingenuamente.
— Olha que é uma vida de encher olho, não tem dúvida. Foi então para enriquecer uma cocotte que o teu pai trabalhou quarenta anos sem descanso, não vendo outra coisa senão a filha, e não se importando com outra coisa que não fosse um teu capricho? Educaram-te nas virtudes burguesas, que na mulher preparam a mãe, simplesmente para que um belo dia fugisses roubando a casa dos teus?
— Estás doido?
— Seria melhor que o estivesse. E agora? Em que ponto ficam as nossas relações, não me dirás?
Ela quis atraí-lo a si:
— No ponto em que as interrompemos em Leiria. Por que não?
O primo Jorge riu com uma casquinada brutal.
— Tudo estás tola, priminha. Eu namorar-te? Tem graça, palavra.
E com ares de cínico:
— As mulheres do teatro não se namoram.
Albertina estava atônita do que ouvia.
— Então? — disse ela sem saber, ao acaso.
— É simples — ia dizendo Jorge. — Primeiro cercam-se como as cidades sem víveres. Depois compram-se. Entendeste?
Ela ergueu-se com os lábios brancos e as mãos crispadas. Estendeu-lhe secamente a mão.
— Adeus.
Voltou-lhe as costas com um ar de rainha e entrou na alcova.
Jorge não se perturbou lá muito com aquela despedida formal, e deixou-se ficar sossegadamente ao canto do sofá, fumando o seu charuto. Só quando ouviu os soluços da prima se resolveu a entrar devagarinho na alcova. Havia um cheiro de Ylang-Ylang e pó-de-arroz de Lubin; formas brancas caíam na penumbra, de cassas apanhadas efauteuils muito baixos, de casimira pérola. Os pés afogavam-se numa pele de urso, macia e branca, com garras douradas. Primo Jorge respirava alto, caminhando às escuras, entontecido de perfumes, um baque nas fontes. E muito baixo:
— Albertina! — disse ele. Voejavam-lhe diante dos olhos abelhas de ouro, em círculos febris. Os seus dedos tocavam nuns cabelos, depois um bocado de pele cetinosa. Ergueu-lhe carinhosamente a cabeça pelo queixo, ajoelhara-lhe aos pés, apoiando-lhe os braços nos joelhos. E, num tom de voz em que havia o uivo do desejo refreado, dizia-lhe:
— Pateta! ouve.
E aos beijos, com palavras entrecortadas:
— Como dantes, minha filha, como dantes...
Retesados, os seus braços enlaçavam-na pelo busto, com uma ânsia que fazia medo.
Dali a nada, Albertina terminava com voz plangente o romance do último semestre da sua vida. Era pura como outrora, apesar de tudo, jurava ela, expondo pelo quebramento da postura na otomana o onduloso desenho dos quadris e a linha elástica do colo todo abotoado nas costas, cingido num corpete de veludo bronze e aberto no seio em femêtre, donde espumava a gargantilha, numa alvura de ninfeia.
Se ele soubesse!... No teatro e na cidade sentia-se flutuar num abandono glacial. A adulação e os bouquets com que lhe atapetavam o caminho causavam-lhe a nostalgia da sua pequena cidade natal. Quem se interessava agora por ela, quem? Às vezes, olhando a gente que passava nas ruas, acotovelando-se com pressa de chegar cedo, e não querendo saber dos que paravam no caminho, sentia um medo fúnebre invadi-la toda. Se morresse, quem lhe fecharia piedosamente os olhos e acompanharia ao cemitério? Que olhasse pelas janelas daquele segundo andar a cidade, viva em baixo e à roda — transeuntes caquéticos e ruas tenebrosas, mesmo à claridade do gás. Que triste era tudo! O primo Jorge deixava-a à vontade, aninhado junto dela, como sob a tepidez de uma asa de cisne, e tendo uma das mãos em viagem touriste pelas colinas, de que o decote triangular patenteava o sopé, de uma amenidade inteiramente grega.
— E que mais, que mais? — dizia ele, gaguejando.
Albertina mirava-o com esses olhos velados de réptil que exercem em certas organizações nervosas invencível fascinação. A curva do queixo era redondinha e branca, e subia num espraiamento suave até ao lóbulo escarlate da orelha, onde um diamante faiscava como pupila ciumenta. Parecia bonita sob aquela excitação, com os olhos fendidos a nanquim, as olheiras ensombradas a bistre, e verniz labial do mais caro. Todo debruçado, o primo Jorge inalava os perfumes tépidos da sua carne, olhando-lhe, nas penugens da face encarada de perfil, os corpúsculos suspensos da veloutine que a alabastrizava. Aquela absorção letárgica e a excitabilidade excessiva que lhe viera deram-lhe um quebramento dorsal, numa lassidão de músculos e o desejo incoerente de se abandonar, num espreguiçamento eterno, sobre a flacidez ebúrnea das espáduas. Sentia um peso de pálpebras langoroso e febril, que não era o sono.
— Que horas são?
— Oito.
Eram dez e meia dadas. Albertina falava baixinho, como receando acordar um baby, e a sua voz de estranha doçura vinha, filtrada por um secreto medo, anestesiá-lo como esse insidioso gás hilariante que traz a morte entre risos.
— Amava-o, tinha-o sempre amado como em criança. Por nenhum homem mais sentia aquela atração, aquela confiança e a íntima alegria de lhe falar sem receio. Por que fugira ela de casa, e se afastara da profunda ventura de ser dele, mediante os latins de um padre? Mas não se separariam nunca mais, não era verdade? Nunca mais! Seriam como um irmão com uma irmã, ela dizendo-lhe a sua vida sem omitir o episódio mais vulgar, ele contando-lhe também au jour, le jour, as suas esperanças e os seus desalentos. E seria ela quem lhe faria tudo, quem o trataria se estivesse doente, quem lhe daria conselhos e lhe engomaria as camisas, obscuramente, sinceramente, sem o menor resquício de pecado entre os dois. Os perfumes que pelo decote vinham do seio dela embriagavam-no; sentia-se penetrado por aqueles olhos de salamandra, como velados por uma nictitante sutil. Havia dois meses que tinha entrado na chamada grande vida, vida realmente bem pequena, que consiste num sujeito estragar o estômago nos hotéis, dizer asneiras numa tabacaria, num café ou no camarim de um ator e arranjar, pelo atrito das solas duras e das convivências safadas, ao mesmo tempo uma coleção de calos e um museu de vícios pelintras.
Estava no primeiro andar do Alliance, quarto e saleta com porta independente, frequentava os teatros e batia em tipoia pelo Chiado às quatro da tarde, mostrando no assento dianteiro os bicos dos enormes sapatos de polimento e a seda cor de pérola das meias esticadas. De resto, fazia um gasto decente no elemento espanhol, sem indagar se lhe vinha diretamente das Caldas ou da agência de criadas. E à noite, descendo o Chiado com a gola do carrick levantada, sentia-se apetecido pelas senhoras pálidas que iam pelo braço dos maridos caquéticos ou condescendentes, com o adultério nos olhos. O seu ar de campônio de bom sangue fazia impressão: era desejado. E como tinha dinheiro...
Extinta a fase nevrótica com que é uso iniciar-se um bourgeois gentil-homem na roda galante da juventude ouro e azul, o primo Jorge entrou a ver um pouco nesse como encandeamento em que se deslumbrara. Mesmo entre vadios é forçoso ter posição. Já hoje se começa a penetrar um pouco pela vida íntima de cada qual. A Jorge bastaria o ser rico ou parecê-lo — uma amante sempre dá outro ar, outro tom e outra consideração. Foi quando recebeu a carta de Albertina. Que diabo! Já lhe tinha feito a corte, demais a mais. Eram três da manhã quando se despediram.
Ela, envolta num grande penteador de cauda, tremia de frio, oferecendo-lhe a testa ao último beijo, pés nus sobre a felpa cariciosa e fofa do tapete. Falavam muito baixo, com singulares fulgores na pupila e uma meiguice de termos que lhes vinha do orgasmo nervoso em que estavam.
— Mas és lindíssima assim — dizia-lhe Jorge cingindo-a pela cinta e beijando-a na boca.
Albertina tinha um riso delicioso, gulosamente recortado pela dentadura, de gata irascível. E mordaz:
— E aquela tua tirada de há pouco... — disse ela surpreendendo-o vencido e batendo-lhe na face com o ar petulante que tantos aplausos lhe rendia no palco.
— Moralista! — dizia zombeteira. — Todos o mesmo.
Cantavam galos pela cidade, quando ele saiu. Desenhados em negro, ora no clarão baço dos lampiões batidos pela ventania do Inverno, ora alongados na penumbra das ruas e lembrando arganaças estropeadas, os varredores desciam de vassoura ao ombro, batendo galegamente os tamancos. Primo Jorge ia contente, cérebro lúcido, um bom charuto na boca.
Ao entrar no quarto do Alliance, não se conteve que não dissesse:
— O que ela sabe, senhores, o que ela sabe! — Despia o carrick de pelo fulvo. — Esplêndida! E que artista...
Viu sobre a mesa uma carta. Era da mãe de Albertina, dizendo ao sobrinho que estava viúva, e suplicando-lhe instasse com a filha para ela abandonar a vida má que empreendera. Encontrá-la-ia de braços abertos, cheia de perdão no seu luto, e pronta a adorá-la como outrora. O primo Jorge riu-se. Estava um pouco bêbedo, e passara sempre por isto que se chama — um bom rapaz.
— Está tola, a velhota — disse ele.
E queimando a carta:
— Afinal, se não for eu, é outro. Ao menos fica tudo em família.
E dali por diante acompanhou a prima todas as noites ao teatro, e ficou com ela por amante.
Acrescentando com ares devassos:
— Até aparecer coisa melhor.
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