Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Um
jaquetão encarnado, com enormes botões de papelão, estava a cair das costas da
cadeira. Enroscava-se pelo tijolo uma calça de chita. Um colete azul, com um
correntão fofo, escanchava-se, como por acaso, no punho da rede, e no relógio
levíssimo escapado da algibeira lia-se uma hora e uns minutos mais adormecidos
que o próprio dono. A camisa, toda manchada, como se fora de um assassino,
esparramava-se no pó, e adivinhava-se por baixo dela a forma de um chapéu de
feltro. Um sapato pisava na mesa, revirado, entre os livros e os frascos.
Da
porta entrecerrada estendia-se uma nesga mais clara, e pelas telhas penetrava
em pequenas linguetas simétricas o dia exterior.
O
tinteiro, entornado, com o fundo azul para cima, com a larga boca embeiçava a
tinta derramada como um lago de água preta. Erguida sobre a mesa a estante, com
os livros silenciosos de rótulos disparados com a ocasião, uns em pilha, uns
escorando-se nos outros como bois de carro.
Engoiavam-se
no cabide roupas de linho servidas, uma robe
de chambre de chita alegre, e andainas diárias. Algumas peças caídas
redobradas pelo próprio peso. Num gancho um paletó branco retesava as mangas
bilateralmente. Sentia-se um odor de raízes, de poeira, e de suor.
As
varandas da rede não denunciavam o menor movimento, e dentro dela se estendia
um corpo quase na direção das águas tranquilas.
Entretanto,
positivamente, o rapaz não dormia, embora estivesse insensível à cócega que
fizessem as patas de uma mosca passeando-lhe pelo nariz.
Ele
estava era num baile de máscaras, melhor do que verdadeiro, aumentado,
completado, com delícias e com horrores...
Ele
sentia atroar pelos salões a pancadaria da quadrilha pavorosa e danada e louca,
vermelha como o sangue vivo, e negra como uns olhos que conheço.
Donzelas
trajadas fantasticamente... mancebos de máscara levantada...
Através
da vidraçaria colorida ele, do seu galope onde o assoalho fugia, avistava
duelos sob as espirradeiras do jardim à luz do gás notívago,
Aconteceu
encontroar num par cuja dama vestia de rainha do oriente... Havia grupos de
homens de ponto em branco nas portas. Além sobressaía um resplendor nuns
cabelos castanhos... Tremeluziam as cores das fantasias... Viam-se braços nus,
colos nus... E um adorável cheiro de virtude envolvia tudo como a luz dos
grossos candelabros.
De
mãos dadas, apertava e afrouxava o cordão dos pares en avant tous... O círculo
entrava a ondular-se na grande chaine como as escamas de uma cobra que
caminha. De vez em quando uma enluvada mãozinha demorava-se mais na dele, e,
temendo o choque dos olhares, punha-se a vista era no peito alheio com uma
polidez disfarçada... E sentia-se ali uma irresistível atração virtuosa de
sexo a sexo. Que enorme diferença entre aquele sarau cearense no pleno gozo das
regalias da instituição da família e as danças orgiáticas onde ele oxidara o
rijo ferro da sua juventude!...
Positivamente,
o rapaz não estava dormindo... Agora ia de braços, com outros muitos, e no
jardim, na grande luz das lanternas, debaixo da grande noite das estrelas,
libavam, trocavam ideias, gargalhadas, sentimento...
Ali
sob aquele galho de jasmins rutilava um barrete frígio num rosto moreno... por
trás de uma cadeira encostada à abundante copa de uma palmeirita branqueava uma
grinalda de penas, donde desciam cetinosos cabelos castanhos para um traje
canadense... ia, pujante e simples como a lei de Moisés, uma Raquel por aquela
avenida e duas outras donzelas metamorfoseadas em duas grandes flores.
Luze
acolá o alfanje de uma Judite e o gume de um ferro de ceifar. Pela vidraçaria
gótica, como se fossem pinturas semoventes no vidro, passam mascarados valsando...
um anjo vestido de diabo, e uma nobre menina com oavental e a touca de servente...
aquela conduz a rede e o gorro de pescador... uma, de olhar brandamente
sublime, tem a tiracolo um cantil de vivandeira onde naturalmente está o néctar
do batalhão das musas...
Treme
no tumulto das cabeças a pluma de um chapéu de caçador...
A
orquestra agora é branda e sinistra, depois garganteia, ora empurra os pares,
ora os deixa correr como a baleia fisgada... Sente-se peito contra peito o
arfar de respirações... eterniza-se o minuto bronzeamente gravado na memória...
a pobre nudez humana está completamente transubstanciada pelo milagre das
vestimentas e da nevrose... e é-se obrigado a admitir a ideia necessária de um
paraíso...
Há
meninas tênues como a garça e singelas como as grandes magnólias e da vozinha
tépida como um afago de rolas, que parecem satisfazer-se apenas e bastante com
o calor irradiante do grande sol do prazer que a todos inunda... são como os
serafins, cujas almas subiram pela sua própria leveza ao morrer o corpozito nos
braços das mães de infinito olhar sentido.
Há
outras que se tivessem asas iam estas de uma porta a outra... e são como os
arcanjos valentes dos combates miltonianos... E nuvens surgiam, e clareamentos
dourados. Debaixo dos pés ele sentia o longe trovão das coisas terrenas. Estava
como em um balão que passou o limite dos vapores adensados...
A
sonharia foi-se esbatendo até empastar-se no nada... O rapaz dormia...
positivamente.
Como
ele estava de seu!
Mas
súbito um relâmpago fulge pela rótula da janelinha e segue-se a pancada
estridente de uma vidraça que bateu no sobrado fronteiro. Foi como a voz do
patrão.
Pouco
depois arrastava ele o lençol, como uma capa de rei, pelo quarto em roda, à procura
da roupa.
E
enchia o mesmo quarto com o irresistível — ah — de um prolongado bocejo, que
tinha para ele o valor inestimável de uma descarga nervosa.
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