Cão!
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Sol a pino; esbraseado, rútilo sol de janeiro...
Tangendo a tropa — de volta do mercado longínquo — o Rufino estacou, de súbito, ao súbito chamado de tia Rita. E à porta da casinha branca, dentre os galhos ásperos dos espinheiros, a figura encarquilhada da velha chamava-o de novo:,
— Eh lá, Rufino!
Sua bênção, tia Rita!
Calor danado, hein?
Parece que não passa sem chuva...
— Nossa Senhora que mande.
Em roda, pelo mato mirrado e seco, secas, mirradas árvores se levantam, ávidas, para o céu. E, por entre a relva queimada, ao acaso dos campos, apenas os longos, áridos caminhos de areia refulgiam ao sol. O Rufino demorava-se um pouco, a arredar as mulas para junto dos espinheiros da cerca; sacudiu o suor, a um rápido passar dos dedos pela testa. E veio, chapéu ao alto, enrolando o cigarro tirado da orelha:
— Forte sempre, hein, tia Rita?
— Não vê! Caco de velha que a maldita nem deixa parar. Mariana já levantou?
— Levantou?! Nossa Senhora que tenha pena dela. De já hoje se foi chamar seu dr. Paixão.
— Eh! Ruim assim?
— Ruim de não tirar a cabeça da cama.
Um corvo pairava alto, voando em círculo. E a sombra negra da ave passou, rápida, por sobre a cabeça da velha. Tia Rita franziu as sobrancelhas:
— Vá longe o agouro! Cuidado com ela, hein, Rufino...
— E eu cá que já vou andando pra casa...
— Deus que te acompanhe!
O Rufino estalou o chicote no ar. E, sacolejando os jacás vazios, a tropa embicou pela estrada fustigada do sol. A casinha de tia Rita ficou para trás, muito alva, com os seus ares de eremitério em meio das roças queimadas — como uma capelinha ao centro de um campo talado pelo incêndio, pela devastação e pela morte. Ao longo da estrada nem mais sombra humana aparecia. Eram apenas, no ar imóvel, folhas imóveis de árvores imóveis. E só de entre duas mangueiras, muito ao longe, num alto, transparecia a casinha do Zé Português — um que, por noites enluaradas, costumava dizer, à guitarra, toda a saudade nostálgica da sua terra.
De novo, lépido, o látego vibrou, estalando, desenroscando-se no ar. E agora, para lá da curva distante do caminho, emergia da massa de troncos das amendoeiras despidas a ponta aguda da torre da Matriz. Em frente, tranquila e pobre, era a casa. E o Rufino apressava a tropa. Do caminho de areia em brasa, ao trote das mulas, subia para o ar uma poeira fúlgida e fina...
Mas — porque ao fim chegassem — o Rufino (cancarou a porteira; e, enquanto a uma chicotada mais forte, as mulas trotavam para o telheiro ao fundo — à cata de sombra e de água — entrou em casa muito rápido, a indagar do estado de tia Mariana.
Então, tia Rosa, e a velha?
— Assim...
Imóvel, sobre a cama de ferro, no quarto de portas abertas para o ar e para a luz, tia Mariana arfava compassadamente. Os finos braços, amarelecidos e magros, mal lhe sustinham o lençol dobrado por sobre a colcha de chita. Nos olhos vítreos errava-lhe o resto de um amortecido clarão. E tia Mariana movia monótona, maquinalmente, a cabeça. Pela porta entreaberta via-se o quarto vizinho. E nele, junto do oratório iluminado, a Úrsula, vinha de fora, ajeitava um galho de flores de espinheiros aos pés finos e brancos da Senhora da Conceição.
O dr. Paixão viera de quatro léguas mais adiante. E, mais o Tinoco, o irmão da Úrsula, lhe fora dizer que a mãe do Rufino estava, havia oito dias, com uma febre ruim, pusera pé no estribo da égua e atirara-se para a Areia Branca. A porta, ao saltar, perguntara logo se lhe não haviam aparecido uns vômitos. E fora com um ar compungido que lhe buscara o pulso, tateando-o no braço descarnado e emagrecido da velha.
O Rufino entrou, pé ante pé. E o Tinoco, que andava a rachar lenha por ali perto, veio também, cauteloso, e, logo à porta, depôs no chão a foice afiada para a tarefa. O calor abafava fora. No quarto próximo, a um prenúncio de vento, as velas do oratório estremeciam... Pela alta cruz do Senhor Crucificado — um velho Cristo de jacarandá balsâmico e forte — subia uma espiral de fumaça pardacenta; e, mal o vento aumentava, a chama das velas ia lamber os sangrentos, chagados pés do Senhor.
Tia Mariana movia a cabeça, pausadamente, de um para outro lado. Voltara-se; fincara os pés na cabeceira da cama de ferro. E a pouco e pouco, ia-se-lhe amortecendo o clarão moribundo do olhar. Era como se adormecesse, afinal, depois daquelas tantas, longas noites monótonas de vigília... O dr. Paixão fitava-a insistentemente.
Fora, no espaço, uma nuvem tapara por momentos o sol. Ventava agora. E de todo o côncavo do céu, muito alto, vinha por sobre a terra um ar pesado de desgraça e de morte. Pássaros passavam em fuga. Pela estrada adiante, às bruscas, fortes rajadas do vento, levantavam-se turbilhonando, e iam às soltas, pelos campos, as folhas secas das amendoeiras do largo da Matriz. E súbito, relâmpagos abriram um rápido, largo claro no céu.
O dr. Paixão voltou-se para tia Rosa:
— Mudança de tempo... — fez, baixo.
E com os olhos indicava-lhe a calma brusca de Lia Mariana. Mas o calor aumentava, terrível. O Rufino tinha os olhos presos ao rosto amarelecido da velha. O doutor fizera um sinal à Úrsula; e ela foi esperá-lo perto, no corredor.
— Rum!... Mudança de tempo... — repetia Lia Rosa.
E abanava a cabeça, com um ar desolado. O doutor levantou-se, ficou um pouco, de pé, em frente à janela, a mirar o horizonte longínquo. Assobiava baixinho. Deu uns passos até o aparador onde o lampião de querosene descansava num tapete vermelho, de lã. E sumiu-se pelo corredor adentro.
— Ora aí está; já tardava... — observou tia Rosa. — Aí temos nós a chuva.
Grossos, disseminados pingos d’água caíam agora por sobre a areia em brasa. E, a um relâmpago mais forte, a casinha do Zé Português — longe, num alto, entre duas mangueiras — apareceu num fundo de luz amarela, como num clarão de apoteose. Tia Mariana arfava, de novo. Faltava-lhe o ar... Do fundo da casa, escondendo o quer que era, a Úrsula veio então, chorosa, para o quarto. E, logo ao chegar, disfarçadamente para que ninguém a visse, tirou de uma dobra da saia a vela benta do Santo Sepulcro.
— Ah! É a chuva... Pois mais vale tarde do que nunca... — sentenciou o dr. Paixão, entrando.
O Rufino chegou-se para junto do médico:
— Seu doutor...
E indicava-lhe tia Mariana, inquieta, na ânsia de conservar o ar que lhe ia fugindo:
— Está ruim, não está?
O doutor não respondia. Fitava-o dolorosamente. O Rufino tinha uma coisa a apertar-lhe o coração.
— E agora? — perguntou.
— Agora, só Deus!
“Só Deus!” — Ao lado, no quarto vizinho, a figura aureolada do Cristo — plácido e sereno — refulgia ao clarão das duas velas do oratório... O Rufino fitava o rosto de tia Mariana. — “Só Deus!”
— A santa imagem do Cristo atraia-o como para um sagrado refúgio de fé. E o Rufino esgueirou-se para o oratório iluminado.
— Padre nosso, que estais nos céus...
Caíra de joelhos. E as palavras sagradas da reza borbulhavam-lhe dos lábios, trêmulas e repetidas. “Santificado seja o vosso nome...” E eram padre-nossos por sobre padre-nossos — Agora, só Deus!
“Ave Maria, cheia de graça...” E vinham-lhe ave-marias por sobre ave-marias. “O senhor é convosco, bendita sois vós...” As velas morriam aos pés sangrentos do Senhor.
Mas, no quarto da velha, houve um lúgubre ruído estranho. Parecia que todos se haviam levantado a um tempo. E, para logo — ao surdo baque pesado de um corpo — o grito estrídulo e doloroso da Úrsula estrugiu. O Rufino atirou-se para a cama de tia Mariana. De mãos postas, agarradas à vela benta do Santo Sepulcro, mal sustida pelo Tinoco e pela tia Rosa, a velha, esticada num último arranco, punha os dois olhos vítreos fincados no teto.
O Rufino parou:
— Mãe! — soluçou, num gemido.
— Tenha paciência, Rufino...
E o doutor consolava-o:
— Tenha paciência... Também a minha mãe um dia morreu...
— Morreu!
Não via mais nada, não ouvia mais nada. Os olhos prenderam-se-lhe ao corpo desfalecido da velha, vergaram-lhe as pernas. Ria, de um riso nervoso e trêmulo; chorava, de um pranto sem soluços nem lágrimas. Parecia que lhe rebentava a cabeça.
E um peso enorme oprimia-o, fazendo-o pender para o chão.
Mas, a um relâmpago mais forte, a foice do Tinoco luziu, abandonada, num canto. E, do outro lado, no quarto vizinho, as moribundas velas de cera finavam-se, trêmulas, aos pés sangrentos do Senhor crucificado. O Rufino voltou-se para o Cristo; não tinha um gesto, não tinha uma palavra. Os olhos iam-lhe do crucifixo para o límpido aço da foice; da foice para a imagem sagrada do Senhor.
— Cão! — fez, de súbito.
A foice luzia, de novo, a um rútilo relâmpago mais demorado. O Rufino tomou-a de um gesto brusco, e — mal a apertara na mão crispada e trêmula saltou, num ímpeto, do quarto para o oratório iluminado. Fuzilava-lhe a cólera nos olhos avermelhados e úmidos.
E, a um golpe, loira e fina, a benta Virgem da Conceição voou em pedaços. E a outro golpe, a outros, àqueles desencontrados, doidos golpes sacrílegos, piedosas Virgens santas, e sagrados Apóstolos, e bentos registros imáculos redomoinhavam no ar.
— Cães!
A imagem do Senhor fitava-o do alto, serena e aureolada. O Rufino vibrou-lhe a foice, certeira e rápida. E eram novos golpes, doidos, repetidos golpes certeiros. Mas, porque a foice lhe escapasse, a um gesto mais violento, tomou do crucifixo pelos pés. Vibrava-o agora às tontas, contra as paredes contra os móveis, contra os portais. Tia Rosa, muito pálida, correra para arrancar-lhe a imagem. Mas o Rufino galgara a porta. A chuva caía em torrentes. Rútilos, rápidos relâmpagos cortavam o ar. E como uma cachoeira enorme, o vendaval descompassado bramia por todo o campo em redor.
— Cão!
O Rufino atirou-se, estrada a fora. Tia Mariana ficara de olhos vidrados, muito hirta, ao centro da cama de ferro. E o Tinoco correra a pôr fora a água tia talha, para não fazer mal. O Rufino subia sempre, galgando a árida estrada, através da tormenta. Agora, revoluteava o crucifixo no ar. Vibrava-O de encontro às cercas, rachava-o de encontro às rochas ásperas, partia-o de encontro aos ásperos troncos nus. E, do alto — alma doida! — vinham-lhe os soturnos gritos roucos, por entre as sombras da tarde que morria:
— Cão!... Cão!...
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