Ao cair da tarde
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Paramentado
com roupas de cerimônia, ele assentava, todo envergado em um fraque
apertadinho, sem fôlego, cogitativo, metendo no bolso a pontinha do dedo
enluvado, teso como um soldado espalhafatoso, fora dos seus hábitos, no fundo
do carro.
Subia-lhe
ao nariz o cheiro da roupa preta arquivada, e a essência do lenço que
intumescia-lhe o peito esquerdo. Só tinha pena era de uma coisa: ter deixado de
fumar! — porque justamente o complemento que faltava ao seu aprumo era o
charuto, o fino charuto feito para ornar o queixo admirável de um rapaz que se
julga feliz.
Porém,
senhores, ele não se julgava feliz; ou, para falar verdade, não se julgava coisa
nenhuma.
O
que ele sentia era assim como a boca da noite de um primeiro amor. Não julgava
nada, sentia-se dormente, aspirativo, com disposições para chorar, contanto que
houvesse esperanças de rir ao depois. Ai como ardia por um risozinho! Mas a sua
goela, entupida por uma laringite inimiga do bom tom, o obrigava a uma
seriedade estranha. Como seria bom soltar uma gargalhada! Como não seria
satisfatório conversar!
Havia
só dois sentidos por onde ele podia comunicar-se com o mundo das comoções: a
vista e o ouvido.
Estava
como uma pipa esvaziada...
Passavam
casas de amarelo, de branco, de azul, edificações em preto, espaços de muro,
pompudos arvoredos de praças, passeios trilhados por gente domingã, e
longínquos casebres de arrabaldes lá no topo esbatido das ruas... Lembro-me bem
da cara que lhe fez uma crioula que ia pelo calçamento com os seus alvos dentes
nas feições negras, mais alegre do que ele, como se ela também estivesse a
sentir modorrenta mente os embalões da carruagem... O ruído das rodas nas
pedras o adormentava Adiante um rapaz e uma rapariga os encaravam como se
eles, em vez de carro a descoberto, fossem debruçados pela portinhola... O seu
pouco hábito dessas coisas, a bisbilhotice de terra pequena, tudo o convencia
de que ia numa evidência extraordinária... Foi preciso abrir o guarda-sol para
amparar contra o poente o rosto de seu velho amigo, e ele ficou na ilusão de
que ia com a umbela cobrindo o viático... As habitações fugiam atadas umas nas
outras... O ambiente refrescava, e o céu se alargava como uma enorme colcha
azul com pinturas cor de leite e de cinza e de laranja...
As
impulsões das molas sacudiam, aparavam, pendiam-no para um lado, sobre o coxim,
com umas sensações de carnes abundantes... Foi arrojado a admitir que em vez de
um velho tinha a seu lado uma donzela casquilha...
O
cocheiro perguntou se parava no cemitério. O velho disse que sim.
Por
entre um alvo colo dos morros se apresentava o enorme lombo do mar azul.
Viam-se os trilhos do caminho de ferro escapando-se por entre a garganta
vermelha de uma duna rasgada até à raiz... Numa encosta polvilhada de pequenos
matinhos assentava uma palhoça, donde um caminho oblíquo vinha pela areia
abaixo, e subia um pequeno andrajoso conduzindo um pote d'água.
Para
o lado de terra branqueava lá no fim de uma avenida despovoada uma igrejinha
nitente... espalhava-se a superfície dos matos... recortava-se o dorso das
serras, onde umas nuvens pareciam estar pregadas, e sentia-se os últimos
pestanejamentos do sol. O matiz das orgulhosas copas dos coqueiros, na
infinidade verde, com o seu cunho de cultura impingiam-lhes a ideia de que se aproximavam
de povoados. O velho sorriu como se o aconchegassem à sua terra...
Desejava
virar num gigante para andar por cima dos matos como em um relvado, na oquidão
daquele céu, no saudoso daqueles grupos de serras, a lobrigar o sol que se
sumia espirrando jatos por entre os vapores, semelhante a uma metralha no
momento crítico do estouro...
Abriu-se,
numa alvenaria caiada, o alto portão do cemitério.
Uma
calçada larga, de tijolos vermelhos, convidou-os a penetrar... Como uma enorme
guarita branca, ali erguia-se a capela... O sacristão, na atitude de quem
rumina o café do pospasto, conversava com uns amigos no cordão da alta calçada
com as pernas penduradas, batendo alternativamente com os tacões num epitáfio...
Os caminhos abriam-se entre as obras de mármore, entre as cruzes, entre os
gradis, entre os pequenos túmulos de alvenaria. O chão ia em declive para
dentro. Já estávamos longe dos túmulos do General Sampaio, onde a pátria chora
sobre uma urna, e do Senador Pompeu, onde uma figura, no topo, encara os
horizontes.
Uma
floresta de cajueiros e acácias subia de uma floresta de cruzes pretas traçadas
de letreiros brancos... Muito longe passava a fitinha do muro do fundo...
Entramos a arrodear a base da capela, um prisma gigantesco, com duas ordens de
sepulturas onde se metem os esquifes como se fossem gavetas...
—
Aqui jaz...
—
Conheci este, era um excelente cantor.
—
E...
Uma
criança reparava para o coveiro, que ia lá por junto das catacumbas do muro,
com a enxada ao ombro e uma cambada de peixes na outra mão.
—
Estas perpétuas já estão apodrecendo pela chuva...
As
fotografias ocupando o centro das coroas de perpétuas resguardadas por umas
ovais de flandres envidraçadas, traziam-lhe à ideia aqueles mortos como se
eles fossem apenas ausentes...
Um
recinto reservado isolava o repouso eterno de umas freiras... E, como uma
enorme pança, a areia suja upava no abaulado de uma sepultura fresca.
—
Aqui estão virgens, meu velho!
E
o moço bateu-lhe no ombro.
—
Nestes corações o amor não alevantou os vapores negros da sua fornalha.
O
velho a modos que consultou o próprio coração. E como se fora míope, seguiu
passando a mão de epitáfio em epitáfio... Ora lia, ora adivinhava as letras
apagadas... uma simples parede, mais ou menos lisa, e até bem adornada... era
agradável...
A
mão entrou e os olhos recuaram. Como uma boca que quer chupar abria-se uma
catacumba no muro, subitamente, a única desocupada. — Acaso algum de nós virá
enchê-la?!...
Arrepiaram
os cabelos... e o rapaz sentiu-se dentro de um esquife... entrando por aquele
buraco apertado...
Ouvia
o ranger do pinho, a fala e o sério dos coveiros, o silêncio doloroso dos
amigos, e, mais tarde, já estando lá dentro, o barro frio, frescal, bem
amassado, a estender-se maciamente, o cabo da colher do pedreiro batendo surdo
a acertar a fiada, e o gume cortando no ar um tijolo para dar na forma arqueada
da boca... O pedreiro botou o último tijolo que foi um pedacinho, com uma
pitada de barro... E ficou o interior escuro, abafado e o morto sentia de si
mesmo um cheiro insuportável. Estava à espera que chegassem os senhores
vermes. No dia seguinte viriam rebocar a parede, no outro caiar, no outro
escrever o epitáfio...
—
Aqui jaz...
O
seu coração inchava e parecia ocupar a catacumba inteira...
O
velho puxou-lhe pela aba do fraque, estendendo um olhar indicador para um grupo
de moças que arrodeavam um pequeno mausoléu plantado de sempre-vivas...
Tinha
desaparecido o doloroso sonho de morte e vinham os bons ideais de borboleta.
As
donzelas vinham para eles.
Houve
uma fulminação recíproca de olhares...
A
catacumba vazia, bem como o coração boêmio do mancebo, voltaram às suas
naturais proporções de casas de aluguel.
Tenho um blog - Da Cadeirinha de Arruar", onde há mais de um ano não publico. Em 2011 publiquei uma biografia de Manoel de Oliveira Paiva, em capítulos conforme foi publicado no jornal O Nordeste de Fortalezam em 1952. Referida biografia é de autoria de meu pai, sobrinho materno do autor de Dona Guinha do Poço. Já publiquei os seus contos no meu blog. Estou feliz em ter encontrado esse excelente blog. Obrigada!
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