9/28/2017

A "serenata" de Schubert (Conto), de Marques de Carvalho


A "serenata" de Schubert

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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I
No seu pequeno quarto modesto de rapaz solteiro, João estava deitado na rede, lendo um volume de contos de Armand Silvestre, à luz branda de uma vela de espermacete. Nove horas soaram as cornetas da outra banda do Capibaribe, na Casa de Detenção, derramando pelo ar um sopro de tranquilidade imponente, que fazia os transeuntes apressarem o passo dirigindo-se aos respectivos domicílios. O vento norte, que vinha de Olinda, entrava na sala, e desta seguia para o quarto de João, agitando a luz dentro do photo-mobile.

Na invisível palpitação da brisa, entrou uma voz de piano vibrado na vizinhança. Fanático adorador da música, João fechou o livro e prestou atenção. Eram as primeiras notas da Serenata de Schubert, esse magnífico poema musical que ele amava acima de todas as composições! De um pulo, achou-se abaixo da rede, fora do quarto, ao balcão de uma das janelas do seu humilde terceiro andar. E encostou-se à grade, com o rosto descansado na mão direita, dispondo-se a ouvir a sua peça predileta.

Na rua, ninguém passava agora. Os revérberos alinhavam-se nos passeios, como estanhos guardas do sossego público. Um crescente de lua espalhava no azul-ferrete do céu, por entre multidões de estrelas tremeluzentes, uma diminuta claridade opalina, diante da qual fugiam mansos grandes montões de nuvens recortados em figuras indizíveis. E duma casa próxima saíam as vozes do piano, misturadas com a luz do gás que irrompia pelas janelas abertas.

Como todas as músicas sentimentais, a Serenata de Schubert possui isto de extraordinário: prende o espírito de quem a ouve, e leva-o ao centro da meditação tranquila e saudosa das grandes coisas passadas, e que são sempre, quer dolorosas quer alegres, um grato consolo para a alma.

Foi por isso que João, logo ao principio, deixou fugir um suspiro e, em seguida, a pouco e pouco, embrenhou-se na vasta floresta silenciosa e redolente dos seus antigos episódios de amores, quando, ainda no seu querido Pará, podia ver e ouvir quotidianamente a encantadora donzela que deve um dia ser sua esposa. Foi também por isso que o moço estudante de direito recordou-se,— e com quantas saudades! — da magistral execução que a sua noiva sabia dar ao primor do ilustre maestro alemão,— uma execução toda sentida, interpretando os mínimos segredos, com dulcíssimos murmúrios voluptuosos, que lhe davam melancolia ao espírito e suaves langores ao corpo.

Entrou João a imaginar que estava no Pará, ao lado de sua querida companheira, junto ao piano dela, no perfumado sossego da sala deserta, extasiado na audição daquela fantasia esplêndida! E logo, por uma transformação imaginativa, o piano da desconhecida vizinha tomou aos ouvidos dele um som particular, íntimo, que o comovia todo, chamando-lhe duas lágrimas aos cantos dos olhos! E, por esta causa também, à sua alma pareceu ver desfilar nas pacificas paredes da casa fronteira um tranquilo quadro do seu passado, o qual dera-lhe outrora tantos prazeres, e que tinha presentemente a expressão poética, porém saudosíssima, de uma tela de Watteau...

Esse quadro, ei-lo:

II
Era noite de Natal. Nove horas acabavam de soar no relógio da varanda. Um sossego inalterável e feliz pairava pela atmosfera da sala, onde a família estava reunida em grupo aprazível, ao fundo, em torno do sofá. Das ruas vinham pelas janelas abertas fortes sopros de brisas cheirosas e sons de guitarras fugitivas, dedilhadas por alegres grupos de transeuntes. A espaços, uma voz, um grito chegava até à sala, revelando que pela cidade havia quem passeasse, tentando festejar o aniversário do nascimento de Cristo.

Na sala a conversa era geral. Uma criancita formosamente encantadora sugava a extremidade de um tubo de mamadeira, sobre o colo de sua virtuosa mãe, a qual, suposto conversar com o extremoso marido, não afastava do rosto da filha os grandes olhos expressivos, flutuando num lago de ternura meiga e imaculável como um beijo maternal.

Contemplando este quadro rubenesco, João pensava nos santos prazeres do lar,— ele, que era um mísero órfão, um desgraçado pariá do amor! — enquanto Dália, a sua querida noiva, sentada junto a ele, falava-lhe compungida acerca de uma infeliz mulher que, pela manhã, recebera de suas pequeninas mãos benfazejas, roupas e sustento para os filhinhos. E dominando a todos, no meio do sofá, com a expressão suavíssima do rosto espiritualizada por um sorriso que venerandamente lhe frisava os lábios, o velho Antônio, de cabelos e longas barbas sedosos e brancos, dirigia-se ao filho mais moço, ao Teodoro, aconselhando-o ao trabalho honrado, apontando-lhe como exemplo a seguir várias cenas a que assistira em sua passada vida comercial.

Uma exalação de virtude emanava daquele grupo: revelavam os rostos a tranquilidade invejável de quem vive contente com a sorte e depõe muitas confianças no futuro.

De repente, num silêncio entre duas pontas de diálogo, uma voz ergueu-se da rua, fazendo-se acompanhar por uma guitarra:

Folguem todos nesta noite,
Venha a festa sem igual:
— Hoje em nada se repara,
Porque é noite de Natal.
Hoje em nada se repara,
Porque é noite de Natal.

E a guitarra chorava em tom menor, fazendo coro ao ritornelo. A voz de um agradável tenor prendeu logo a atenção dos que estavam na sala:

Esta noite abençoada
Pertence aos que têm amor;
No presepe bethlemita
Veio ao mundo o Deus-Senhor.
Novo ritornelo choroso na guitarra.

Por isso, moços e moças,
Entregai-vos ao prazer,
Enquanto não vem a idade
Vossa fronte encanecer!

Terceira e última plangência melancólica desferida na guitarra.

Aos derradeiros versos, o velho Antônio levantara a cabeça, numa energia de movimento, com as narinas aflantes, os anéis da cabeça tremendo-lhe sobre os ombros.

— Tolo! — exclamou, referindo-se ao cantor, cuja voz perdia-se agora ao longe, na extremidade da rua. — Pois que venha cá, a ver se os velhos não têm amores e prazeres!... Que venha presenciar a este quadro e me dirá ao depois se eu não amo as minhas queridas filhas, o meu bondoso Braga, o meu Teodoro e à inocentinha que aí dorme sob as bênçãos do meu olhar!...

Um soluço gemeu-lhe no peito: Dália ergueu-se, radiante como a encarnação do carinho e, muito piedosa e pura,— qual um raio de sol iluminando a face de uma estátua antiga,— foi beijar amoravelmente a fronte do ancião...

Que não se afligisse, pediu-lhe afagando-o; — que não desse importância a semelhantes asneiras. Todos sabiam perfeitamente com que intensidade ele amava a família, e que suaves prazeres tirava desse amor. E demais, aquela noite era de festa, como dissera o desconhecido cantor, não valia apena entristecer-se...

— Para o lado os pesares! — terminou sorrindo. — Como distração agradável a todos, vou tocar ao piano a Serenata de Schubert.

Já se tinha João levantado, prevendo este desfecho: correu ao piano, abriu sobre a estante a música desejada e, acendendo as velas, sentou-se ao lado do banquinho, que Dália veio ocupar.

III
E começaram então as primeiras melodias da Serenata.

João cerrou os olhos, extasiando os sentidos na audição da formosa peça, tão bem executada pela donzela cuja alma eminentemente artística compreendia os segredos de poesia que a música de Schubert encerra. Uma figura, ao princípio flutuante e indecisa, mas que logo tomou relevo, aparecendo em primeiro plano, desenhou-se na tela da imaginação do moço. E surgiu então um jovem de bandolim em punho, debaixo dos balcões floridos de um elegante castelo, que se erguia a meio de uma paisagem germânica, onde os robles farfalhavam à borda dos lagos tranquilos, sobre cujas superfícies grandes garças deslizavam elegantes, ruflando as brancas penas em donosa majestade. E a voz a ele era meiga qual um canto mágico de iara amazônica, sentida como uma recriminação paternal, doce como um beijo apaixonado. De seus lábios cor de papoula destilava-se o mel da música de Schubert, que ia cair com uma suavidade de bálsamo sobre a alma enamorada de uma jovem castelã formosa, oculta entre os refolhos das colgaduras das janelas! A voz do amoroso trovador tinha um não sei quê de melancólico, um tal cunho de poesia dolente, que João emocionou-se tanto em face do quadro que a sua imaginação lhe descrevia, que não pôde deixar de cantarolar baixinho, com um meio sorriso, acompanhado pela correta e sentida interpretação de Dália:

"O Châtelaine,
Entend ma peine!..."
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..............

Dália executou o morendo final da Serenata. João acordou da sua rêverie, erguendo os olhos para a pianista, em cujo rosto simpático bailava um risinho engraçado.

De pé, encostado ao piano, estava o venerando Antônio, com o semblante iluminado numa expressão de inefável ventura. Dos lábios entreabertos parecia escapar-se-lhe uma bênção muda, que se completava pelo gesto das mãos erguidas e espalmadas no espaço!... Era o pai a abençoar o futuro feliz dos filhos idolatrados!

IV
Estava neste ponto a saudosa recordação do moço estudante, na janela do seu modesto terceiro andar de uma das ruas do Recife, quando o piano da vizinha desconhecida gemia também o adorável remate da Serenata.

João sentiu-se comovido por aquela música inspiradíssima, que lhe avivara tão grata lembrança de seu venturoso passado,— agora que ele estava ausente do querido solo natal, onde moravam todos os que possuíam-lhe a flor do afeto. Ergueu os olhos ao céu, numa necessidade de soltar livremente o espírito pela amplidão infinita do vácuo. No firmamento azul tachonado de louras lucilações, o crescente de lua vogava para o ocaso como uma alegria fugitiva; pequeninos flocos de nuvens seguiam, muito calmos e etéreos, pelo espaço adiante, projetando sombras cinzentas sobre o calçamento da rua. Da margem oposta do Capibaribe, uma voz de soldado ergueu-se bradando — alerta! — à sentinela.

Então, por um impulso de agradecimento, o espírito de João partiu pelo infinito a fora, chegou ao Pará, atravessando a cidade, e foi ajoelhar-se piedoso à modesta pedra gradeada que sela o túmulo venerando de Antônio, o estremecido pai de sua noiva.

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