9/16/2017

A Ruiva (Conto), de Fialho de Almeida


A Ruiva

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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A taberna do Pescada ficava mesmo em frente ao Cemitério dos Prazeres, e era frequentada pela gente do sítio, especialmente de noite, à hora em que os cabouqueiros e os britadores abandonam os seus trabalhos e entram na cidade, em ruído.

Tratava-se então de levantar um muro de cantaria que fosse como a fachada opulenta da gélida cidade de cadáveres; na planura que medeia entre o cemitério e as terras, o terreno via-se revolto; os carros de mão jaziam esquecidos; os montes de pedras miúdas e de argamassas antigas tornavam penoso o trânsito. Na lama constante do caminho, eram profundos os sulcos que as seges de enterro deixavam até à porta do cemitério, escancarada sempre, como a goela de um plesiossauro faminto.

Em anoitecendo, tudo aquilo era de uma contemplação lúgubre e misteriosa, em que se adivinhava o trabalho de milhões de larvas; o ladrar dos cães tinha um eco desolado, que tornava depois mais sinistro o silêncio; a porta fechava-se sem rumor, girando em gonzos discretos, e uma luz esmaecia na treva, no fundo dos ciprestes e dos túmulos, diante de um santuário deserto, onde o Cristo, do alto, olhava vagamente o guarda-vento.

Começavam então a chegar à tasca os guardas encanecidos no mester de receber enterros, graves nos seus uniformes fatídicos, os coveiros angulosos e vesgos lançando-se de si um fétido deletério; e cada um, dando boas-noites à tia Laureana, ia sentar-se à banca, no seu lugar, chupando pontas de cigarro e pedindo decilitros. Todas as noites a casa se enchia e o aspecto era sempre o mesmo.

Ao fundo, encostada ao balcão forrado de zinco, a tia Laureana, mulher de grandes seios e arrecadas, que tinha a especialidade dos pastéis de bacalhau, e pernas másculas saindo de grosseiras saias de baetilha; ao canto o cego de chapeirão derrubado, atitude fria, faminta, dolorida e apagada, a rebeca nos joelhos, a manta de riscas ao ombro, a eterna noite nas feições. O grupo dos trolhas, junto da porta, discutia o preço das couves e o número de ventres perfurados com facas de ponta, durante a semana. Zé Claudino tinha a palavra; a sua autoridade indiscutível de orador popular fazia-lhe cair dos lábios, como um rosário de sons, as palavras graves, indecorosas, chulas e poéticas, em misto turbulento e inteligente.

Bêbedos extraordinários falam de tudo e descrevem parábolas no solo, com a sombra dos seus corpos embrutecidos. Dois ou três embirram com a sombra.

— Mete-te comigo — resmungam; — cai nessa, minha tirana!

— A velhaca — comentam — tem agora a mania de ir adiante de mim.

Esta manhã era atrás. Mas não me larga! Bêbeda!

— Era o que me faltava! Súcia de marmanjos!

E, insistentes, aos zigue-zagues:

— Persegue-me, anda, persegue-me, que levas dois butes.

— Lá isso — ouve-se outro dizer na rua —, lá isso não digo eu... Que ele há um Deus que nos governa: é boa!

Eu entrava, cumprimentando os velhos conhecimentos.

— Ditosos olhos, estudantinho! — dizia um.

— Ó seu casaca! — fazia outro.

— Seja bem aparecido e pague-me dois dedos de marufo.

Um velho fressureiro, com o olho esgazeado de sicário experiente, tocando-me o braço com a sua mão ensanguentada, ia aconselhando baixo:

— Prove-me do branco, doutor; prove-me do branco; que é uma reinação!

Com um pastelinho, não lhe conto nada...

Aqueles eram os meus amigos, perigosos amigos contraídos na intimidade do vício e no surdo deboche das tascas.

Sentava-me A Laureana vinha, sorrindo, servir-me; e o seu olho pardo, sequioso, acariciava a brancura do meu pescoço, apetecia os meus cabelos de um louro-claro, tons insípidos, sob as abas do chapéu esburacado. O seu hálito empestava a dez passos, trazido nas asas do seu amor quente e brutal, de uma infâmia cheia de mercancia. Ouvindo-me pedir qualquer coisa, o olhar adoçava-se-lhe como o dessas gatas a quem coçamos o crânio; e eu sentia exalar-se dela um fartum de gorduras fundidas, que me perturbava. Nessa noite chegou o tio Farrusco.

Era coveiro e o mais asqueroso — o da vala; aspecto repelente, perfil áspero e cortante, descarnadas as faces, as mãos aduncas e gastas, cheias de terra e de cabelos.

Sobre a testa, de uma polegada de largo, caíam grenhas fermentadas; as orelhas desapareciam-lhe sob a lã sebácea de um barrete cinzento; por um rasgão da camisa, furava uma moita de cabelos hirsutos, brancos como um pé de junco seco, nascido entre as pedras de um muro arruinado de azenha decrépita. Quase lhe ficavam pelas esquinas a que se encostava os farrapos em que embrulhava o corpo esquelético e lustroso, como de couro curtido.

Um cabouqueiro tostado, perfil adunco de coruja, bateu-lhe no ombro:

— Tio Farrusco!

O outro tentou aprumar a estatura lassa na moleza da embriaguez, e resmungou:

— Que é lá isso, patego? — O seu olho envidraçado não podia fitar; os fios de baba desciam-lhe, lentos, aos cantos da boca.

— Olá! — fez o cabouqueiro — a maré encheu. — E sacudia-o.

— Mais bêbedo é você, grande cavalgadura!

Tentava caminhar; a sua sombra oscilava, amplificada na parede, como a de um antediluviano fenomenal, e quase se não compreendia bem como aquela coisa era um homem. Arrastou-se custosamente para um canto; ao passar por Zé Claudino tomou-lhe o copo, levou à boca o vinho e esteve bebendo devagar. As gotas, de um roxo sujo, caíam-lhe pelas barbas. O nó da garganta subia-lhe e descia com vagarosos movimentos de embalo no cilindro de uma bomba. Pousou o copo com ruído, com a manga da jaqueta limpou os beiços.

— E a filha? — perguntaram-lhe. "— A Ruiva... O tempo tem estado famoso para doentes. Um sol quentinho que é um forno. — Do fundo, alguém disse para Zé Claudino:

— A Ruiva ainda é viva?

E o trolha, curioso:

— Não era essa que deitava sangue pela boca? Na tenda do Malaquias vi eu... foi pelo Santo Amaro, faz agora anos...

Mas cada um procurava informar-se:

— Uma gaja de granha encarnada, um sinalzinho de cabelos no pescoço...

O quê? Era filha daquilo? — E apontava o coveiro.

— Bem sei — diziam; — que peça! A que estava com o Nicolas das seges de enterro. Contem-me cá quem isso era. Bêbeda como ratos! Ora esperem. Ela era também da súcia da Panasqueira. Lembras-te, Zé Claudino?

— Bons tempos — fez o interrogado do fundo da sua saudade dissoluta —, aquela noite no palheiro do Panelas. Vinte raparigas dos casais, todas pimponas, vieram dormir à granja. Alta noite — piscava o olho —, alta noite... 

— Não ponhas mais na carta. Tosquei tudo! Que bailões! E a Ruiva também era... 

— Uma mulher dos diabos! Enfezadita dos nervos, mas coragem que tinha diabo. Quando ela se deitou ao Nicolau, aquela vez pelo Entrudo, além ao Quintalinho! Prega-lhe duas taponas, que nem eu sei como o não virou!

O coveiro olhava, sem compreender, um pasmo idiota na face. Na penumbra da taberna, aquele asqueroso vulto tinha uma expressão que fazia medo. O deboche nunca se concentrara tanto, podia-se jurar.

— Mas, tio Farrusco, a Ruiva vai melhor, hem?

— Melhor, melhor... — gaguejou ele. — Esta manhã via-a estar dormindo... mais branca! — Pagas cambrainha, ó tirano? Uma pessoa, c'os diabos, gosta de molhar a palavra. Quero lá saber!... 

Tentava apoiar-se na banca, com as duas mãos trêmulas. Ouviam-no cantarolar baixo, babando-se:

Foi fazer uma caçada 
A serra de Montalvão!

E, com risadinhas pequenas e cruas, geladas, doidas, que produziam como o grito do estanho, aconchegou-se ao canto, para dormir, com círculos de cão vadio que se anicha. Todos procuravam espicaçá-lo com uma chufa. Blasfemava-se, em voz alta, uma riqueza inultrapassável de obscenidades.

— A minha filha — resmungou o tio Farrusco. — Querem saber da minha filha, da Ruiva... Súcia de tarimbeiros!...

Foi fazer uma caçada 
A serra...

Ainda hoje o Nicolau, que atira à vala as reses que se abatem no hospital, me disse que a trazia ali. É boa! Se eu bem vi o saco... e cosido que ele vinha. A Ruiva em postas! — Ria-se. Caíra tudo num silêncio álgido.

Calou-se, e depois:

— Também eu hei de morrer. Quero lá saber nada daquela grande velhaca!

— Vamos — disse eu. — Há uma coisa pior que um cão danado: é um coveiro bêbedo. — E saí.

Um dia antes, o meu escalpelo penetrara o corpo dessa perdida criatura, que veio a fornecer subsídios notáveis à minha tese inaugural.

Inquiri pormenores. Disseram-me que o tio Farrusco fora casado com uma vendedeira, a Marta, muito conhecida por Buenos Aires. Soube-se depois que as hortaliças que esta mulher vendia eram pelo marido plantadas no cemitério, para lá da vala e longe das vistas dos indiscretos, hortaliças que com o tempo e o belo tempero da terra adquiriam grande desenvolvimento.

Se lhas gabavam, Marta retorquia:

— Ai! bom dinheiro custam, freguesa. Vêm todas as manhãs de Odivelas, uma estopada que eu sei!... 

E explicava que um cunhado, da quinta do senhor marquês de Borba, tinha seu vintém e um bocadinho de terra.

É no Alto de São João que se sepultam os cadáveres do hospital; para o nosso caso, porém, isso não importa onde se faziam os belos nabos e aquelas lombardas folhudas. Caro, tudo pelas últimas, dizia pondo a sogra, os cordões a luzir no peito.

Carolina nasceu no dia da morte da mãe. Até ali, o coveiro vivera sem misérias, mas, morta a mulher, descobriu-se donde vinham as couves e ninguém mais lhas comprou. Não se sabe como a pequena se criara, mas aos doze anos era bonita, franzininha, o nariz arrebitado, descalça e cheia de remendos.

E, sem consciência do que via, acompanhava o pai na sinistra ocupação de sepultar os mortos. Assim crescera. Naquela miseranda existência entrara a criar predileções. Começou a amar principalmente os mortos que paravam à porta do cemitério em ricas berlindas douradas, entre filas de gatos-pingados lúgubres, de tochas acesas, e puxadas por seis parelhas cobertas de crepes.

Visitava-os na casa das observações, acocorada a um canto, com o olhar absorto, durante as vinte e quatro horas que os caixões ali passavam abertos, e onde contemplava, deitados na pétrea imobilidade derradeira, os que na sua vaidade egoísta, corruptos e miasmáticos, iam habitar em sepulcros de mármore, com figuras sentimentais na fachada e pomposas inscrições nas lápides. Pode dizer-se que aprendeu a ler no cemitério, quando curiosa na sua pobreza esfrangalhada queria saber os nomes e posições ocupadas no mundo pelos que habitavam aquela branca cidade de mármores, de que se julgava rainha.

Uma tarde, passeando na grande rua que corre ao longo da fachada do cemitério, tinha parado a contemplar, no alto de um pedestal glorioso, a estátua do conde das Antas. E falava ainda, nos seus últimos dias, daquela enérgica figura de soldado, grande barba sobre o peito e cabeça de um vigor leonino, a mão apertando o punho da espada... e, desde então, a sua ânsia pedia-lhe militares, que arrastam nas ruas os sabres prateados e destacam, na agitação dos enterros, dentre os graves toilettes negros com a alegria embriagadora dos seus vivos rutilantes e das suas divisas sanguíneas, cor dos desejos insaciáveis. Nos seus devaneios passavam pálidas figuras de alferes, dos que tilintam esporas no lajedo dos passeios e retorcem bigodes frisados, contemplando as janelas, em domingos de procissão. Todos os dias visitava a casa das observações: ali, sobre bancas, expunham-se caixões abertos; ela mesma metia nas mãos dos mortos as argolas de alarme, e tal emprego quotidiano permitia-lhe ver gentes de todas as castas e profissões. Meninas ricas, filhas de milionários e nascidas entre veludos, áureas meninices em berços de renda, acalentadas por amas normandas de cachos louros, iam ali dormindo nos seus caixões de cetim, vítimas de tísica galopante, olhos vítreos e face cavada, lábios brancos em listras lívidas e o gelado sorriso dos mártires, clareando em reflexos os rostos, de uma rigidez de escultura.

Rapazes pobres, dos que ao clarão das forjas crestaram a vida, figuras secas de famintos, torciam nos rostos expressões de sofrer infernal e gelavam-se na nudez miseranda da morte, ao lado de reverendos, com a barba bem feita, a batina nova e grave, quebrada em pregas simétricas, finas camisas de bretanha, tiras de folhos e sapatos de fivela, cingindo, à força de apertadas com uma fita contra o peito, cruzes de marfim bento, símbolo de uma fé que nunca os caracterizou na vida.

E os grandes devassos, os magros adúlteros que nos foyers das óperas e nos camarins das cantoras, nas casas de batota e nas alcovas fáceis fazem pública a sua dissolução e desonra, vinham também, diante da pequena, exibir a última elegância.

Carolina, pelo número e aspecto dos convidados de um enterro, chegara à perfeição de fixar a posição social de qualquer defunto.

Os conselheiros reuniam graves figuras circunspectas de velhotes de luva preta e grandes pés, folgados em botas macias. Os condes faziam-se acompanhar dos coches da casa real, riqueza oxidada e rota, em que se sentiam os anos, os ratos e o óleo dos cabelos reais.

Os escritores arrastavam figuras chupadas, de luneta, vastas cabeleiras polvilhadas de caspa, expectoração de discursos com gestos amplos e eloquência estrondosa. Conhecia o bombeiro, o polícia, o correio e juiz de irmandade. E odiava quem vinha só para entrar na cova, os que embarcavam para o outro mundo sem deixar, na gare, alguns amigos da infância, ou herdeiros de guardar conveniências. Ouvia nesses momentos dizer ao pai:

— Súcia de vadios! — quando tinha de abrir cova sem receber gorjeta.

E aprendera a dizer com ele esta frase profunda:

— Até morrem pelo amor de Deus; cambada!

Havendo enterro grande, punha uma garibáldi vermelha, azeite nos cabelos ruivos, sapatos de duraque preto, sem tacões e chatos como linguados. Toda risonha, ajoelhava na passagem do préstito, movendo os lábios como quem reza. Depois, na volta: 

— Uma esmolinha por aquela alma de Deus!

E comprava pevides, amendoim torrado e alféloa, à tia Palma, uma de capote verde, sem um olho, que vinha vender à porta, num tabuleiro velho, secas gulodices de arraial. O que a abalava era aquela vida na casa das observações.

Olhava já sem terror os cadáveres, como se fossem pessoas adormecidas no mesmo quarto, cada qual na sua maca de estalagem. Os homens, sobretudo.

Alguns eram ainda novos, louros, pálidos e benfeitos; alguns, ricos, tinham a pele fina, de um contato cetinoso e bom.

Nas horas de calor, de Verão, quando sob os ciprestes os empregados do cemitério dormiam, ia devagarinho, sem ser pressentida, à casa dos depósitos, escolhia os cadáveres dos moços, dos belos, se os havia, e como um pequeno vampiro sequioso entreabria as mortalhas, despregando com uma navalhinha as camisas; metia a mão devagarinho pelo peito, metia, escorregando-a ao longo das carnes, beliscando-as levemente, com prazer; o olhar dilatava-se-lhe, havia na sua face uma mancha de excitação, mordia os lábios, exaltada; e, palpando, estudando, compreendendo e adivinhando, ficava absorta, um pouco curvada sobre os corpos, o hálito ardente, uma palpitação larga e cheia de ímpeto. A sua imaginação rasgava as névoas indecisas que, diante da inteligente maldade, a sua inexperiência despregava como uma máscara casta e límpida cheia de placidez. Estas explorações fizeram-na muito cedo mulher, preparando-a a compreender mistérios e umas meias frases que ouvia aos gatos-pingados, se passavam por ela. Às vezes, eram rapazes de quinze a vinte anos que jaziam.

Carolina em os vendo exaltava-se, todos os nervos se lhe distendiam na ânsia de um desejo que jamais formulara.

Duma vez tinha beijado sôfrega uma cara, com balbuciações aflitas, ardendo em pecado, como uma alma de réprobo.

Não conhecera mãe, nunca uma boa mulher a beijara e o coveiro não reprimia diante da filha as suas expansões brutais. Entregue a si própria, chamuscada por carícias pérfidas de homens entregues à rota corrente da sua bestialidade, fizera-se nisto. Havia no entanto dentro dela, ainda, uma coisa ideal e inexplicável, certa virgindade infantil: de noite rezava! Vinham-lhe tristezas íntimas, a insônia triturava-lhe por vezes a saúde como num almofariz de bronze. Sem saber porquê, era desgraçada. Desejaria ser como uma pequena que vira um dia costurando à porta de uma carvoaria, com uma rosa nas tranças. Mas, de súbito, alguma coisa a arremessava à lembrança condenada dos homens adormecidos na casa das observações, e via-os surgir das suas mortalhas alinhavadas, sorrindo, com vida; estendiam os braços a procurá-la; roídos de vermes, muitos vinham, como na dança do Roberto, roçar-lhe pelos quadris os membros esquálidos e podres.

E estonteada, fitando no vácuo aquela visão candente, miserável nos seus quinze anos, sentava-se, extenuada e languescida, à sombra dos ciprestes anosos e dos túmulos soberbos, com a cabeça aos baques, revolta a alma por criminosas comoções. Era já noite, muitas vezes, quando ia só para casa, fora do cemitério. O pai ficava embrulhado num cobertor com um gorro de lã preta, por cujos rasgões lhe furavam os cabelos; deitava-se no côncavo de algum velho túmulo vazio; se caía geada, erguia a tampa de um jazigo de família para ir estender-se nas gavetas, entre caixões de chumbo.

Já estava acostumado àquela folia, e depois, assim, não dormia as manhãs na cama, e podia começar cedo o trabalho, regando logo de madrugada os canteiros dos túmulos das famílias que lhe pagavam esse trabalho, varrendo dos pedestais as folhas secas que o vento despregava dos ramos, e alta noite, com passadas lentas e lúgubres, nas trágicas encruzilhadas dos ciprestes, reanimando ou acendendo, com o rolo metido nos dedos, as lâmpadas extintas pelas lufadas do nordeste.

Nem uma vez se lembrou de Carolina que ficava de noite, na cidade, separada dele, a sua filha, entregue à leviandade dos seus quinze e aos furores de coração de um aprendiz de marceneiro que a perseguia, preso de maus instintos. Carolina era branca, delicada e nervosa; o seu sangue tinha originalidades singulares, inquietações de luta e o furor da aventura, e do seu seio dimanava essa ânsia ardente de que se fazem os gozos, ansiava como uma sede antiga.

Dormiam numa casita arruinada e miseranda, oculta no fundo de um pátio sem luz de lampião, para onde abriam as janelas de tabuinhas de casas suspeitas, em que marinheiros tocavam guitarra.

A história das suas exaltações enraizava também, como uma hera, naquelas más janelas, pelas noites escuras de Verão, quando, encostada ao peitoril da janela, escutava altercações, descantes e venalidades, na confidência de carroceiros.

Nestas disputas Carolina entrevia uma coisa, que se apoderava rapidamente do seu organismo, enroscando-se-lhe no corpo como serpente com frio, amarrotando e poluindo no amplexo alguma, ainda que pouca, dessa adorável modéstia que é o tesouro das mulheres honestas.

Viam-na de manhã, quando saía, dar bons-dias à vizinhança e sorrir às pecadoras mendigas, que nas tabernas jantavam gravanzos por qualquer pataco, ter com elas palestras. Desassombradamente olhava para os homens, tinha desdéns para uma ordem de gente e criara predileções pelos louros; nos seus trapos escolhia sempre cores que dessem na vista; e, calculista, com o olho febril, arquitetava aventuras: seria de noite, uma chuva miúda peneirar-se-ia do alto, sobre as calçadas; fugiria embrulhada no xalito com um louro...

Hem?

Da janela da sua mansarda, empinada sobre um banco de pinho, podia ver o que se passava na alcova de um pobre bordel carairo. Apagava a luz para não ser vista, subia ao banco, encostada à janela; e ali, durante horas, passava a espreitar o que fazia a vizinhança. Cenas equívocas desenrolavam-se por lá.

Era tão curioso! A nudez impura dos contatos fazia-lhe regurgitar de dentro uma seiva cuja plenitude a estonteava. Era a febre do sangue inficionado pelos microzimas do vício e o desejo de cadela nubente que uma força espicaça de irritantes curiosidades e terrores deliciosos. Aquilo vinha-lhe às ondas, como a babuge das praias contra fraguedos solitários.

Coroas de padres esverdeados mostravam-se à luz de candeeiros de petróleo; no espelhinho dos toucadores das cômodas refletiam-se grupos sombrios, estranhas fantasias das encarnações de Vixnu. E alguém, dedilhando guitarras, entoava com voz rouca fados rasteiros do conde de Vimioso e da Severa, entre exalações de aguardente. E tiniam garrafas, sentia-se o cheiro das sardinhas assadas. Toasts desbragados expluíam claramente. As vozes das mulheres guinchavam. Alguém rolava pelo sobrado e rimas de pratos caíam, com estrondo, em migalhas, no meio de pragas de raios de uma vez, tresloucada, descera à rua. Domingos de Inverno. A noite lôbrega alonga-se.

Alguém gritava — Jornal da Noite, traz; a lista de Espanha!

O frio penetrava as carnes. Carolina tremia, lábios secos, uma aflição enorme subindo-lhe do estômago. Não sabia para onde ir. Quereria as coisas mais violentas, amplexos de ferro, beijos de lava, o vasto oceano de um amor sem fim e sem felicidade.

Mas o aprendiz de marceneiro, um rapaz atlético e sanguíneo, apetites excêntricos, saía da oficina, dava com ela, aproximava-se com uma piada...

Carolina recuava, humilhada e cheia de vergonha. E, sem uma palavra deitava a correr para a mansarda, subia a escada sem parar, fechava-se por dentro, e atirando-se para cima do leito desatava a soluçar sem remédio a desconsolação daquela vida, que flutuava sem linha de conduta.

O candeeiro apagava-se no alongamento da noite. Das torres da Estrela uma badalada caía sobre a cidade adormecida, a vibração enorme alongava-se num círculo infinito...

E, no silêncio da mansarda, Carolina abria os olhos com um terror em que dançavam fantasmas sardônicos com a cara do aprendiz.

Era a tarde da nossa Senhora dos Prazeres. O tempo serenara, o céu não tinha nuvens e no azul espiritualizado os voos brancos dos pombos davam uma inocência casta ao ambiente. Havia arraial nessa tarde. A procissão, saída da igreja de Santos, por entre farrapos de bandeiras e verdores de buxo, devia entrar na capela do cemitério, à noitinha, no meio de foguetes e aromas do peixe frito, cuidadosamente consumido pela fome do povoléu curioso.

Na esplanada que vai terminar à porta dos Prazeres, as pequenas barracas de lona enchiam-se de grupos; filhas de saias engomadas, olheiras fundas, com fadistas de calças esticadas sobre alpargatas de linho. As mulheres gordas, lenço vermelho, os grossos braços nus, refogavam mexilhão, vermelhas de calor; em torno os soldados passavam, de chibata, rostos vulgares e bestiais, dilatados em risos enormes; e, abanando-se, diziam brutezas às pequenas ovarinas sujas. Na confusão dos grupos os garotos sujos, vivamente alegres, corriam relanceando olhares famintos sobre os bolos secos das vendedeiras ambulantes, e de passagem pediam cinco réis. Aqui e além viam-se sobre a relva, petiscando, famílias de operários, pequenas louras e limpas, tipos de costureiras futuras, traços finos, cismadores e delicados. Os vadios esqueléticos, de calções em frangalhos, apregoavam água. No ar os ruídos multíplices abafavam-se uns aos outros, e das contínuas pulsações resultantes elevava-se um ruído uniforme e indistinto, como de ebulição longínqua. Os municipais da patrulha iam atravessando devagar, nos seus cavalos negros, e os capacetes esguios, de cuja crista jorrava a branca cabeleira dos penachos de linho, salpicavam de originalidade e paisagem. Eram um enlevo. As criadas olhavam-nos suspirando. O ruído crescia. O sol mergulhava com uma pompa escarlate no silêncio do rio, e o poente inflamado era de uma amplidão sem balizas. Dentro do cemitério o mesmo movimento de quem ia e vinha.

Pessoas fornidas de carnes, esposas espessas de oleiros, capelistas de chapelinho, laços escandalosos e sombrinha, liam, soletrando, as inscrições tumulares. Admirava-se o mármore, as fachadas. Os pequenos, vagarosos, colhiam alfazema e sardinheiras. Alguns olhavam através das rótulas, o interior dos jazigos, a ver quem tinha berloques de contas e figuras bordadas de lã em molduras ricas. Alguns ferreiros de mãos calosas descansavam na borda dos pedestais, tasquinhando as suas merendas; muitos bebiam pelas garrafas, fazendo saúde aos compadres. E todo o mundo ria a sua pândega, a fazer arraial com grossas bobages cruas de taberna e de oficina. As mulheres, de vestidos de merino, com folhos, mantas de lã com borlas caídas atrás, xale bem dobrado no braço, olhavam pasmadas. Os fragmentos das palestras, apanhados de passagem, eram os mais originais e contrastantes. Veteranos procuravam o túmulo do conde das Antas. Explicavam os emblemas, a atitude fera da estátua.

— Portugal velho! — comentavam. — Ele e o Saldanha!...

E familiares, um clarão purpúreo na face:

— O nosso velho! — diziam. — No dezenove de Maio... 

E outros queriam ver o túmulo do Palmela. Uma velha de Aveiro ouvira dizer na terra que era obra famosa. Alguém explicava as riquezas do duque, as suas quintas, dois contos diários de rendimento; a duquesa era bonita, e um pouco gorda; ele tinha sido da Marinha. De resto, boas pessoas e fidalgos da gema; pela Semana Santa pediam na Sé para os pobres e sustentavam asilos. E iam semeando o chão de espinhas de peixe, de cascas de laranja, e os ares de rumores de palestra. Mas estrondeavam foguetes. Uma filarmônica sentia-se ao longe. Corriam. Era a procissão. À frente um marceneiro espadaúdo trazia o pendão, pomposo na sua capa de seda vermelha. Virgens de branco, rosas na cabeça, tipos de gaiatos disfarçados em saias, vinham gravemente, acertando o passo. E sobre as cabeças um andor de pau dourado e pequeno trazia a imagem, cheia de flores de papel. Carolina com a garibaldi melhor, uma rede de contas nos cabelos ruivos, fora também à festa. O coveiro embebedava-se em casa do Pescada, com a barba feita, o seu carão anguloso e miserável, inerte sob as abas de um chapéu de Braga. Carolina vestira-se logo de manhã, toda brunida, botas de duraque sem tacões, brincos de vidro prateado, arzinho alegre, o branco apetite da sua carne anêmica, feminil e ébil. E fora ao cemitério espairecer um bocado, com um farnel no lenço, laranjas, duas queijadinhas da tia Palma.

A senhora Marcelina, que fora ama do padre Anselmo e agora arranjava criadas e consertava cadeiras, tinha prometido a Carolina ir lá ter com ela mais a mulata, que saíra do hospital havia uma semana e lhe estava devendo coisa de quatro moedas. A Marcelina morava no pátio também, no primeiro andar, tinha arranjos de casa e barbicas pela cara, sua meia dúzia de lenços, um rico cordão de ouro com medalha e uma Senhora das Dores com olhos de vidro, mesmo viva, a olhar para uma pessoa.

E falava-se: que havia papéis, uma panela de dinheiro no quintal, ricos manteletes nas cômodas, que tinham pertencido à irmã do padre Anselmo. Marcelina era uma pessoa baixa e vagarosa, aspecto redondo e roxo de hemorroida, feridas na perna emplastada, anéis pelos dedos e o vozeirão de um quartel-mestre saindo do capote de alcoviteira. A sua história apoiava o enredo principal no governo civil, no hospital e na Rua das Atafonas. De resto encontrara o padre Anselmo capelão da Guia e tomara-lhe amizade. Boa pessoa, o padre Anselmo, amigo do seu amigo, boas manhãs na cama, de Inverno, beberricava-lhe um quase-nada, ratão, pregando belas peças; manhã cedo, ela ainda na cama, e vinha ele da missa, descobria-a zás, uma palmada. E morrera. Tudo quanto é bom acaba. A gente fala, fala... um dia chega. E dava suspiros. Carolina conhecia-a. Mal luzia o buraco, já a senhora Marcelina corria a vidraça e vinha, de coifa branca, espanejar o peitoril. Tinha um sorriso agradável; um dente trôpego, único e esquecido, esverdinhava-lhe na boca desmobilidada; as barbicas hirsutas recordavam uma gata mansinha que se corcova, elétrica, sob as festas do dono. Era-lhe demais a mais muito obrigada... De rastos que eu ande, dizia, de rastos que eu ande, não lhe pago as obrigações que lhe devo. Quando estivera doente, com tosse e muita febre, ninguém dizia que ela escapava, a senhora Marcelina vinha dar-lhe caldos e fazer meia junto do seu leito de proletária. Havia dois anos. Mas não se davam muito; a Marcelina era mais das outras em frente, falava com elas de janela para janela, grossos risos e pesadas graças. E ratona, então, como nunca se vira. O que sabia de frades, e do poeta Bocage!... Era arrebentar de riso, senhores. Além disso andava sempre ocupada na vida, uma azáfama, xale traçado e sapato de ourelo, a massa dos seios papuda e molemente batida por mais de meio século, arrotos estrondosos... Saíam de casa dela pessoas lúgubres, de uma vez a polícia fora ali. Enfim, falavam-se coisas, ela sabia de facadas, e Carolina ouvia dizer isto — arranja pequenas a velhos. E no fundo da sua alma branca e suscetível experimentara horror. Na tarde anterior a filha do coveiro recolhera com ares de dia, a Marcelina estava à janela; falaram-se, como estava, como não estava, o pai como ia e que ela ia vivendo com o seu padecimento de entranha, amargos de boca, uma canseira, uma canseira; mesmo mortinha de todo! Tinha posto bismas de confortativo que era muito bom, andava agora tomando poses caras com a fortuna, mas o fastio era grande, aflições por dentro... O pior eram as noites, contava todas as horas. E depois as pulgas. Ai! dizia, quem tem mazela, tudo lhe dá nela. Que é feito, que é feito? Não havia olhos que a lograssem. De resto amava as criaturas sérias como Carolina; nunca fora de tricas, louvado Deus. E arrotava. Tinha almoçado uma açordinha, com o seu ovo; tudo lhe fazia mal. — É caruncho, é caruncho, comentava. E convidara Carolina a entrar, descansar um pouco, tinha rosas no quintal, uma franga preta que já punha ovos, manto novo na Senhora das Dores — minha rica mãe do céu!

Carolina subiu, beijocaram-se, ricas filhas para um lado, abraço para outro. Carolina sentia-se contente, uma quietação plena, chocada pela sinceridade da outra. A senhora Marcelina olhava para ela de face. E largou daí a nada este dito:

— Há de ser um peixão! — E piscava o olho pardo com ares de entendedora. Andaram vendo o quintal; Marcelina fazia-lhe um ramalhete de rosas. Dali a nada veio a mulata, encostada às paredes, uma cuia enorme de postiços e fundas olheiras, olhos de carneiro mal morto, um cheiro a cigarro e a cânfora.

Mas foi-se logo encostar. Com o tempo úmido, tinha dores do diabo nos ossos. Desejaria morrer já — raio de vida! Carolina dizia-lhe palavras comovidas; que aquilo não havia de ser nada, em o tempo limpado já a coisa era outra, que tivesse paciência, coitadinha que tivesse paciência. E a mulata arrastava-se, com um sorriso em que havia alta percentagem de amargura, aspecto chato e esmagado, como saco vazio de roupa velha. E o seu crânio pequenino de estúpida, de grande bestiaga, tinha a calva depressão idiota de uma cabaça oca. Quando ficaram sós, a senhora Marcelina, abaixando um pouco a voz, disse à filha do coveiro:

— Tenho uma coisita para lhe dizer, seu interesse.

— Sim? — fez Carolina.

— Não é coisa nenhuma má, não senhor. O seu ao seu dono!

— O que é então?

— Não se zanga, não?

— Por que havia de zangar-me? Mas diga.

— Há aí um rapazola que dá um cavacão pela menina. Um cavacão, cos diabos; um cavacão!

Carolina teve um sobressalto. O coeficiente das suas orgulhosas alegrias traduziu-se num sorriso.

— Está a gozar — disse.

— Palavrinha, é coisa séria. Ele falou-me nisso.

— Para quê? — disse ela, trêmula, penetrada.

— Ora! Namoricos; não sabe como as coisas são? Rapaziadas. Todos nós temos disso. Enfim, falar não ofende.

Carolina estava pálida, sentia-se vagamente num deleite, curiosa e cheia de excitações.

A senhora Marcelina, de olhos no chão, mordia o lábio inferior, como quem reflete.

— Com que então — disse Marcelina, — gosta?

— Hi!...

E, passado um momento:

— Um rapaz com umas casas, forte, loiraço e bom trabalhador. Hem? Sua sonsinha... Hem?

E, insinuando-se, velha toupeira:

— Tendo juízo, minha riquinha, é uma mina. Nada de cair antes de tempo, percebes?

Carolina estava rubra, com palpitações doidas.

— E quem é? Como se chama?

— Isso queria você saber, isso queria você saber!

— Não, sério, diga. — E, mais resoluta: — Há de dizer!

— Aqui, em frente do beco, há uma loja de marceneiro. Sabe. A do Ferreira, um de óculos.

— Ah! — fez Carolina. — Já sei.

— Há um oficial, o João, bonitote, muito claro. É esse. 

— É esse então? Pois senhores...

— Um belo moço! É vê-lo além na loja, a camisa arregaçada; que braços, hem!

Carolina adivinhava-o, sentindo-o na sua imaginação com um vigor de pintura.

— E depois? — disse ela. 

— E ele pediu-me que arranjasse a coisa, que lhe falasse; tinha vergonha de vir ele mesmo... Ganha seis tostões, vive só; bom rapaz no fundo.

— E o meu pai?

— Ora! Nem o adivinha. Vive sempre lá em cascos de rolhas. Quer lá saber... É vinho e deixa andar.

— Nem sei, nem sei...

— Isso, o resto arranja-se. Amanhã há festa nos Prazeres, percebes? Ele vai por ali. Tu vais comigo. Entendam-se lá como quiserem. Gostas dele? 

— Sei lá, sei lá! Não é feio...

— Entendo. Amanhã vamos ao arraial. O dia deve estar bonito.

— Olhe, vou de manhã. Lá a espero de tarde.

— Vá feito. Valeu. Faço os meus arranjos e vou depois.

— Adeusinho, adeusinho.

Desceu a escada. No portal gritou para cima:

— E obrigada por tudo, obrigadinha por tudo.

Não dormiu toda a noite. Uma turbulência de ideias desencontradas agitava-a. Havia dentro dela alguma coisa explosiva que rebentava, que se dilatava com um volume maior que o do seu cérebro e do seu coração.

Tinha projetos, predileções, vaidades. Iria comer petisqueiras de truz na frescura dos retiros, sob parreiras verdes, enquanto, na encosta, lavadeiras batem roupa. Teria vestidos azuis, de merino, ricos lenços de seda com ramos, uma sombrinha e anéis, alguma coisa como uma opulência.

A tia Palma não a reconheceria tão liró, feita uma rainha de Nantes, com botas de biqueira. E mirava-se no espelho, embevecida, desvanecimento pelintra, a admiração de si mesma. Surpreendia-se a murmurar baixinho. — O meu João. 

O meu João está na oficina. O jantar do meu João. Em o meu João vindo. O meu João saiu. — E orgulhava-se: ter um homem, ter um amigo...

Diriam dela as vizinhas — a que está com o João na oficina, uma ruiva. — Via-se aos domingos no passeio da Estrela com ele, em roda de coreto, fazendo volutas por entre os soldados de Caçadores, vestido de merino azul, de folho, arregaçado atrás, a saia branca, um lenço nas mãos suadas e gravatinha encarnada, de borlas. E dali a um ano, quem sabe, broche de ouro, de moeda! Os pequenos é que tinham de ser o diabo, ranhosos, cheios de birras, cuecas vestidas, cuecas amareladas, de rastos, fazendo galos nas testas. Deixá-los! Também as outras se aguentavam: ora! Mas um louro, um louro; que bom! Sempre tinha dito — Deus não me mate sem um louro. Às vezes, ao acordar, na moleza lassa do corpo tépido e aconchegado, espreguiçava-se pensando:

— Ai! um louro...

E lembrava as primeiras linhas do pescoço do aprendiz, linhas fortes e firmemente contornadas, tons rosa no sanguíneo da epiderme, pequeninas espirais de cabelinhos louros, de um macio quente e provocante. E depois a sua imaginação, no delírio, na incoerência, prolongava nitidamente essas linhas, harmonizando-as, moldando-as, curvas suaves e veludíneas, cheias de saúde, aqueles brancos braços hercúleos e sem um pêlo, que lhe via na oficina, um peito amplo, cheio e poderoso, em que se sentissem vagas ondulações viris de seios, altas pernas nervosas, esculturais, direitas. E diante dela surgia aquele corpo lutador, de atleta, grandes traços magistrais e simples, de um pureza de academia. E penetrava-se da cor da pele, fresca e clara, sob que se sentiam correr ímpetos de sangue rico, jovem, virginal, fremente. Tomá-lo-ia pelos ombros, redondos como os de uma estátua, e erguida nos bicos dos pés, como era baixa, dar-lhe-ia pequenos beijos furiosos na boca, sorvendo o seu hálito, estrangulando-lhe os arquejos, dominando-o e confundindo a sua na alma dele.

Seria assim eternamente, sem nunca se fatigar, e no alongamento das noites de Inverno, como grandes coroas que se rezam, deixariam cair as horas no silêncio.

No turbilhão dos seus devaneios sucediam-se rápidas as cenas, vibrantes como kolpodes que tumultuam na fermentação. Quereria a vida das vizinhas, agitações constantes da negociação dos corpos, que transformam a vida em sonho ou quimera. Via saias de goma arrastando, botinas vermelhas de roseta e tacão alto, os altos penteados característicos. As caras angulosas com manchas vinolentas sorriam para ela, deitando línguas negras de fora.

E sem explicar porquê, como um ritmo original, ouvia as pancadas de uma enxada na terra do cemitério. Gelava-se. — Era o pai que estava abrindo sepulturas! No fundo sentia-se infeliz e flutuante numa grande incoerência. Agitada como estava, o sono fugia-lhe, e as ideias, desviando-se pouco a pouco do primeiro intuito, marchavam já, como raios que se refrangem, pelo vasto plaino das recordações. Pensava na vida do cemitério, o amor medonho dos cadáveres, em cuja gélida intimidade vivera tanto, abrindo mortalhas e erguendo tampas de caixões. Na sua sinceridade confessava-se horrível, cheia de afinidades com a hiena. Nunca mais iria exaltar-se perante homens sem vida. Que infâmia! Agora tinha o seu João, carnes brancas, de semideus. Era feliz então, sentindo na alma aquela irisação de paz que a perfumava toda como num banho voluptuoso. Ser amada por aquele forte, apertada e vencida nos seus braços esculturais, parecia-lhe uma ventura, um milagre, alguma coisa como um sonho febril. Dar-se-ia plenamente e sem reservas, com uma abundância louca de contatos, frenética e possuída de um alto desejo de o possuir. A sua vida condensava-se-lhe, colorizada numa recordação deliciosa, sem compreender no deleite a saciedade, a inanição, o desprezo de si mesma por fim. No fundo do espelhinho estanhado, a sua figura iluminada pela vela de sebo tinha uma curva nítida e delicada. Sorriu-se para mostrar os dentes, pequeninos e miúdos, de gatazinha branca. E dilatou-se num vasto contentamento interior: era bela, de uma compleição tenuíssima e nervosa, toda feita de anemias. Com a mão torceu de leve, sobre a cara, uns cabelinhos ruivos, foi desabotoando, pouco a pouco, o corpete... O seio era branco, assim descoberto, estreito e apetitoso como uma miniatura, mas incapaz de amamentar um filho. Todas as linhas harmoniosas do busto, de fragilidade suave, pareciam moldadas num espartilho e realizavam uma elegância moderna, boa para ensaiar figurinos nos ateliers da Maria Cecília. Ia desabotoando: uma saia caiu, outra e outra, e a camisa envolveu-a, como uma túnica que se desaperta. Era magra e branca. Na harmonia dos quadris, na expansão geral das proeminências, exalava-se a idealidade das organizações virginais. Trivial e pequena como era, excitava assim mesmo. E ela mesmo se devorava com o olhar, examinando, ensaiando atitudes, cheia daquela forte figura do aprendiz de marceneiro. Na tarde do dia seguinte deviam encontrar-se, à noitinha, quando os pássaros se amam no mistério das ramarias; o que iria suceder? Sentiria a sua respiração ardente, com um cheiro a decilitros de Torres, queimar-lhe a face. Falariam embevecidos e frementes, cheios da mesma ideia profana, olhando em torno, receosos de quem passasse. Ele piscar-lhe-ia o olho maganamente; entender-se-iam, e, como na membrana de um fonógrafo, na sua alma vinham arfar todas as vibrações daquela loucura de prazer, em que palpitaria no dia seguinte. Que farta estava daquela pobreza, comer açordas com alho, andar feita chineleira, aí como um diabo, com as saias todas rotas! Raio de vida! Ao menos, em ele sendo o seu João, a coisa ia melhor. E depois... uma pessoa não sabe para o que está guardada neste mundo. A tia Marcelina conhecia uma que fora peixeira, pé descalço por essas ruas, a vender carapaus, um fedor a peixum de seiscentos diabos, e agora estava uma opiniosa com um fidalgo, num primeiro andar, ricas cortinas de rendas nas janelas. Podia bem ser que nem sempre estivesse com o João — que ele era bom rapaz, coitado, mas diz que de sete em sete anos mudam as naturezas, salvo seja. A variedade atraía-a. A Marcelina tinha-lhe falado nos padres como bons patrões, unhas muito limpas, sua palma benta pelo Domingo de Ramos, cotos de cera pelas Endoenças, bom lugar na capela-mor, onde se podia estar refestelada a ouvir a música do lausperene. E certos particulares, nos priores principalmente, um respeito, belos lençóis de linho, almoçinhos que era um regalo, nunca recolhiam tarde, muito limpos e pés lavados todos os dias. Divagava pelos braços dos desembargadores, dos soldados e dos marujos ingleses. Conhecia uma da esquina, a Polônia, que até tinha inscrições; todos os seis meses ia receber seu milho, que lhe pagava o governo, ou que raio era.

Outra, a Libânia, um diabo bexigoso, tinha dinheiro a razão de juros, seu grilhão com medalha, anel de luzeiro. E fulana e sicrana, que tinham do seu umas casitas, seu estanco, nunca tinham ido ao Desterro, viviam à barba longa e andavam gordas. Assim como assim, era boa vida; deixem lá falar. Para pessoa pobre não havia outra. Que ser séria era bem, bom falado, mas o resto, tudo patacoada. Havia tolos que davam vestidos, ricos xales de caxemira, pagavam a ceia, sua noite ao Price — os babosos! Depois não se cansa a gente. Quem tinha juízo, sempre ia bem. Havia tal que era mesmo pelo beiço. E citava exemplos. A prostituição desenhava-se-lhe como a solução natural no problema da vida de uma rapariga pobre, que todas amam, umas mais, outras menos. E a sua ardência aligeirava-lhe as dificuldades. Pão, pão; queijo, queijo — que ela não era lá de meias-medidas. E deixou cair a camisa. Entrou a lavar-se com pequeninos estremecimentos de frio; os cabelos ruivos desnastravam-se-lhe pelas espáduas, embaraçando-a; chapinava na água com ruído, rápidos movimentos cheios de graça, como frêmitos de diapasão.

Ouviu chorar de repente, na calada noturna, um sino, de uma tristeza de morte. E depois houve ruído na rua, os candeeiros mostravam-se pelas janelas; um grupo de tochas, sinistro e lento, passou no meio de pessoas descobertas. Era Nosso Pai, a alguém que estava agonizado. Carolina viu. 

E pôs-se a recordar a vida do pai, pelo cemitério àquela hora, gelado no silêncio noctâmbulo, enquanto os mochos deixam cair notas agudas, sinistramente escarninhas. Ele estava talvez dormindo nos seus farrapos, no coração de um velho túmulo profanado, entre caixões esquecidos. Ou perseguido pela insônia — talvez não tivesse ido ao Pescada — pensava nela porventura, na sua solicitude de pai, porque também têm coração os coveiros, mercê de Deus! E ela, sua filha, pensava em abandoná-lo, em fazer-se servir como uma isca de fígado aos cocheiros e aos trabalhadores, com redução de preços! Roçava então pela miséria do coveiro a sua piedade como uma asa de gaivota, e pensava: — Pobre velho!

Vinham-lhe subitâneas ternuras, vibrações de lágrimas íntimas, uma desconsolação patética de tudo quanto a cercava. A ideia de morrer aparecia-lhe difusamente, envolta numa fotosfera de sofrimentos. Lembravam-lhe irmãs de caridade, jovens e pálidas, um rosário na cinta, o negror do hábito amortalhando corpos de virgens maceradas. E longas penitências no mármore das clausuras, entre açoites de martírio, ao rumor dos confiteor. Ia arrepender-se, pedir perdão...

Mas o corpo do aprendiz aparecia-lhe numa tentação hilariante, branco, moço, potente e triunfador! Esmaecia, como um vago luar que empalidece.

A Marcelina apareceu à tarde, depois da procissão, afogueada, cheia de esfalfamentos; que arrebentava se a não deixassem sentar um bocadinho, e que ia muito mal; a noite passada não tinha podido pregar olho; tudo eram bonecages diante dela, uma confusão, uma algazarra de meter medo. E estava ainda com febre — dava o pulso — que vissem, que vissem... Nunca fora esmorecida, louvado Deus, lá isso não; que até pela febre-amarela... ai! nem se queria lembrar. Águas passadas... Tinha ido ao banco do hospital, explicado o que sentia, e desconfiava que aquilo era coisa de um rapazote novo, que parecia ainda estudante, torcera a venta, e ela bem vira... ai! tomara já morrer; que andar uma criatura a penar por esse mundo e depois marchar da mesma maneira... ora!... que lhe faltava! Antes ir de uma vez. E que Deus lhe perdoasse, que Deus lhe perdoasse!... — Carolina sorria-se compassiva e cheia de interesse, tinha ternuras pelintras, roçava o seu rostinho branco pelo queixo barbado da inculcadeira, chamando-lhe Li-Li com voz de criança amuada. Ia caindo a tarde. O sol mergulhava no mar, acharoando de tons metálicos e cúpricos as nuvens do ocidente, em gradações insensíveis, de uma grande riqueza de pinturas. Por entre túmulos, os ciprestes antigos erguiam-se como sentinelas imóveis, armadas de capacetes pontiagudos. Fora, as guitarras rumorejavam fadinhos tristes, do Calcinhas e do João Brandão; um trolha cantava rouquejando, com voz expectorada:

Habitantes deste lugar Se m'alegra ó coração...

E vozes de garotos apregoavam — vai água ou não vai água! — no meio do vasto rumor de quem saía.

— Sabes — segredou a Marcelina ao ouvido da pequena — que ele vem ao anoitecer? Teve hoje de trabalhar na oficina; sempre são seis tostões... Está mesmo parvo, pelo beiço. Demais uma criancinha — dezoito anos ainda a fazer pela Santa Maria! Podes fazer dele gato-sapato. — E depois de um silêncio:

— O que aquilo quer é roupa branca, jantarinho às horas, festinhas e deixa andar. Vocês não sabem do mundo; ainda ontem largaram os cueiros. O primeiro que nos regala é o único asseado e de quem toda a vida se tem saudades. Que os mais — tudo gajões que a pregam na menina-do-olho!...

E que visse, que estudasse a coisa: quando se tem na mão o pássaro, é que se não deve deixá-lo fugir. E rindo, dilatada numa hilaridade de velhaca, de rameira bêbeda, mãos nos quadris, roncava, afetando lubricidades: — Ai!... Tivesse ela os seus vinte, e quem o lograva era ela. Só aquelas carnes, em que se podia lamber mel. — E, sordidamente mordida de apetites, agarrava-se a Carolina, fazia-lhe cócegas, dizendo-lhe muitas vezes:

— Ricas filhas, ricas filhas!

E rolavam ambas pelos sepulcros rasos, rindo soltamente, com um prazer de barregãs.

Dali a pouco chegou o João. Trazia a blusa de riscado vestida debaixo do jaquetão, e os cabelos crescidos e encarniçados, cheios de aparas de casquinha. Era quase imberbe ainda, branco e sanguíneo, de uma compleição hercúlea, em que se adivinhava a seiva fértil e jamais esbanjada dos corpos encouraçados na própria virilidade, e no trabalho absorvidos até à idade dos loucos amores de bordel. O seu tipo era de criança e pressentia-se o fadista mais tarde, amanhã mesmo. 

— Ora graças — comentou a Marcelina — graças que nos aparece! Uma coisa assim! Fazer esperar esta menina! — e recriminava-o, enchia-o de censuras: que para o futuro queríamos homem mais aquele; que quem esperava desesperava; era uma verdade! Mas nada daquilo era morte de homem, louvado Deus! — E fazia as apresentações. — Carolina, não to dizia eu? Um rapagão capaz de arrombar o Castelo; e que lindo, mesmo de regalo! — Mencionava pormenores, nunca tinha tido uma doença, benza-o Deus, nunca tomara remédios de botica, nem sequer uma purga. E que mãos de prata! Fazia cadeiras de polimento como o primeiro; um armário, que acabara pelo São Pedro, tinha sido vendido a um homem de fora — tinha aquela de francês, uma fala a modos esquisita — por belos mel réis. E mais coisas ainda que se não diziam.

O João, inchado, meio confuso, sorria, dizendo com inflexões variadas — Homessa! Homessa!... E, aquecido, trescalando a carrascão, a perna bem desenhada na calça de boca de sino, cambada um pouco para dentro e afeita às escovinhas, chapéu arremessado com um piparote para a nuca, fitava Carolina, mordendo-a com os olhos e resmungando:

— Deixe falar, deixe falar, que isto sabe-a toda. 

A Marcelina declarou que estava com a telha, uma alegria mesmo lá dentro, e dizia: — Viva a borga! em estrépito. E, tomando Carolina pela cintura e agarrando o braço do aprendiz para aproximá-los:

— E que canta você cá da pequena, seu petiz? Olhe que nem mandada vir de encomenda. E então esta carinha, que parece de seda... Maganão! Bem sabia que a não merecia, um chichisbeco daqueles! ai! mas queria ser generosa. E que tratasse de a estimar, melhor que o pai a tinha estimado; que a queria ver uma senhorita toda de fitas a voar e casibeques de pano fino, pelo Inverno; conhecia casadinhos que era mesmo uma gracinha, mais unidinhos e mais guapos que era uma providência. E que fossem assim toda a sua vida. — Ambos eles sorriam, corados.

Nos seus olhos úmidos, em cujas íris de inquietadas fibrilhas havia um contrair de comoções refreadas, luzia a cáustica lascívia do desejo incendido.

Carolina sentia um quebrantamento fundi-la toda; era do calor, da fadiga da tarde, talvez da contemplação do sítio. E a sua alma perdia-se em grandes esquecimentos; alongava o olhar de encontro às vastidões do céu e da paisagem, como se toda ela se expandisse naquela área sem termo, alada no vago de uma impressão que até ali não soubera formular. Viu-o preguiçosamente estendido na pedra branca de um túmulo. Era numa das ruas afastadas. Naquela posição de madraço, a vigorosa expansão do seu corpo ressaltava em linhas magníficas, de animal contente e são, que descansa. Tinha-lhe caído o chapéu, e deitada para trás, nas duas mãos sobrepostas, a cabeça parecia-lhe esbatida no fulvo dos cabelos, que à luz poente faziam um desenho de juba. Via-se-lhe o tronco oscilando, a camisa tufada por baixo do colete, uma das pernas fletida sobre o coxa e a outra estiraçada, com bestial franqueza para diante. Carolina devorava-o: era assim que ela sonhara o outro, nos seus delírios histéricos de virgem reclamando direitos de mulher fecunda em noites de entrecortada alucinação. E via-o deslocar-se aos círculos por diante dos olhos, sentindo um tremor de mãos e frialdade mortal nas pontas dos dedos, pelo seu lado, o João fitava-a com fúrias de novilho que desperta.

E, velhacamente, um riso nervoso nos cantos da boca, piscava-lhe os olhos, desafiando.

A noite tombara das encostas, pelo céu, e uma sineta batida pelo guarda do cemitério mandava sair. Barras de nuvens tranquilas estendiam-se ao oriente, aspetos esbatidos, de vaga melancolia contemplativa. A lua, de um branco baço flutuava como uma boia de cristofle, e tristes raios quiméricos mal podiam coar-se pelos galhos corpulentos dos ciprestes antigos.

Via-se pouco pelas ruas do cemitério; na ventana da capela um mocho narrava, sarcástico, em notas vibrantes, legendários terrores; um vento passava vagaroso, como vigia de arraial adormecido, varrendo o pó das brancas sepulturas glaciais. A Marcelina ergueu-se para pôr o xale rico e ia andando. 

Carolina ergueu-se para segui-la. Mas João agarrou-a pela cinta e, com voz alterada, quase gutural, dizia-lhe, atraindo-a si, corpo a corpo: 

— Olha lá, espera, olha lá.

Erguera um pouco o busto, e com inabalável teimosia puxava as saias da rapariga.

— Esteja quieto, podem ver. Mau! 

Ele porém não a escutava. 

— Não te vais daqui, não te hás de ir daqui — murmurava-lhe ao ouvido. 

Todo o seu esforço era para apanhar-lhe a cara; tinha a respiração sifilante, e um tumulto de sangue turgescera-lhe as cordoveias do pescoço. 

— E o beijo que me deves, o beijo que me deves? Dá-mo! 

Tinha-a agarrado pelas costas, metendo-lhe as mãos por debaixo dos braços, e com uma força cruel conservava-a apertada sobre o peito, enquanto lhe premia!:Os seios crespos e redondos, de mulher inviolada. Carolina tentava embalde arrancar-se ao amplexo. Conservava os olhos cerrados, um bater de narinas, a boca escarlate como a ferida de um fruto tórrido, palpitações. E dizia:

— Mau! Olhe que eu chamo, olhe que eu grito! 

E, num tom choroso:

— Ora isto, ora isto!

Ele não dizia palavra; apertava-a na cinta uivando com fome, e beliscando-a na redondeza dos quadris e na curva marmórea das espáduas. A sua exaltação crescia, e lutava a seno, com arrancos de besta na quadra fatal do cio. E, erguendo de repente o braço, forçou-a a voltar a cabeça para trás, despenteando-a um pouco na frente.

— Mau! — dizia ela. — Rasgar não vale!

Olhava-o com os seus olhos velados, que tinham uma condensação de amor voluptuoso, essa expressão parada e lúbrica que nasce dos espasmos profundos e desolantes.

O João dobrou-a vigorosamente, como se quisera partir-lhe os ossos. 

— Cala-te, cala-te! — dizia-lhe.

Os seus olhos ressaltavam, havia um arrepio de fibrilhas nos ângulos das órbitas e sentia-se o estertor da sua respiração estrangulada. Então, curvando-se sobre ela, com os seus lábios ardentes sorveu-lhe a boca palpitante, e furioso tirou-lhe o lenço para meter-lhe as mãos no seio. Ao contato das epidermes a descarga dos fluidos deu um frêmito de corpos, e Carolina esticando os braços atirou-lhe as duas mãos aos ombros, murmurando:

— Oh, matas-me...

E, como na corrente múrmura de um rio que vai fugindo, entregou-se-lhe toda, sonhando com esses fiordes serenos e brancos das regiões onde os êxtases, como as noites, duram meses, sempre iluminados por um íris de aurora polar. 

João agarrou na rapariga ao colo, como a uma criança, foi pela rua adiante ao encontro da Marcelina, que não estranhou se houvesse demorado. O João dava-lhe quatro pintos de comissão; era para comprar aviamentos para um vestido de fazenda, azuloio, que tinha ganho quando fora do alferes Sarmento. Andava precisada de botinas; as dos domingos, de polimento, tinham uma fendazinha no joanete e via-se a meia. Não podia ir a parte nenhuma que se não envergonhasse. Falara nisso ao João, mas ele enfadava-se. Já lhe tinha dado para umas camisas e para a ajuda de uma medalha, e certas miudezas, lenços de seda, um casaco de pano, bordado a trancinha, que tinha comprado à Francisca adela, com jeito no olho, um pouco gaga. E a sua tagarelice, mal apanhou quem a escutasse, entrou a estafar a paciência alheia, de comentários nunca levados ao fim, historietas afogadas no prólogo e logo preferidas a outras não menos interessantes. 

— Ai, filhos, que se vai fazendo noite, negro tudo como breu. — A mulata devia estar em cuidado já. E não comprara os carapaus para o bichaninho, o Pimpão, eram mais de sete horas! Não tinha sustância no estômago, mas havia sua vontadinha de comer. Tivera fressura para o jantar, umas ervilhazinhas com presunto que as podiam comer os anjos. Mas a fruta cara; a hortaliça estava para a gente rica. E então as mulheres da venda pelas portas, uma pouca-vergonha! Quarteirão de laranjas, dois tostões! Nunca se vira tal nesse mundo de Cristo. E com a guerra, dizia, é com a guerra. E que andavam os papéis cheios dessas coisas, mais de duas mil pessoas mortas cada dia na Estranja, a tiro. E que Deus nos livrasse, que Deus nos livrasse, cá de levantamentos. Quando fora pela revolta do quatro, ainda os dois não eram nascidos, tinham corrido rios de sangue, gente fugida por esses campos, até os santos andaram numa alhada. O nosso Senhor nos perdoe pelas suas cinco chagas! E persignava-se, dando beijos na unha do polegar, com ruído. Saíram do cemitério. Carolina não dizia nada, apertava o braço do aprendiz. A velha estava mesmo a cair, e queixava-se. Estavam-lhe lá por dentro a remoer, a remoer; a modos que coisa assim de bicha. Tinha tomado as pevides de abóbora — nada de resultado! Ai, mas ia mesmo mortinha; e que fossem enxugar uma pinga com uma iscazinha semelas... Já não estava em idade de folias, bem lho estava dizendo aquele esfalfamento. E os seus intestinos roncavam, ameaçadores. Tinha sina de morrer cedo; então!... Toda a sua gente murchava ainda nova. O seu pai, um homenzarrão com a um raio, tinha saído bom, com uma capa de briche novinha, para casa do regedor, e à noitinha dá-lhe a febre-amarela, e agora o vereis a vomitar... mandaram chamar o médico Cansado — parecia-lhe que o estava a ver —, luvas de casimira, um caixa-d'óculos corcovado, barbicas loiras, arrastando de uma perna... — Receitou para ali umas berundangas, ela foi à botica, noite fechada. Enterros por cada canto, padres a cantarem responsos. Nem ela sabia dizer bem. Quando chegou a casa, a mãe estava num berreiro: — Ai, meu homem da minha alma! Ai, meu rico amor do meu coração!... E escarapelava-se pelos cantos em saias de estamenha, sapateando as grossas solas cardadas pelo sobrado. A sua mãe fora lavadeira da infanta, muito estimada das açafatas e aios; levava e trazia segredinhos, bilhetinhos, do Ramalhão para a Bemposta e da Bemposta para o Ramalhão. Chamavam-lhe a Angelca; um cabo da guarda apaixonara-se pelos seus belos olhos e cantava-lhe modinhas. Mas ela, esperta que tinha raio! — moita carrasco! de uma vez, numa devesa, dois ganhões atiram-se a ela. Mas ena, pai!... se vocês querem ver o que era dar lambada, com os serões; andava tudo numa dobadoura, quando veio gente que apaziguou a faina. Quando não, era mulher capaz de dar cabo deles. E havia de se ralar muito. Enfim, filhos, enfim era de faca na perna — resumia com pompa, cheia de vaidade.

— Manda Nosso Senhor os bons à sua santa vista, que dos maus nem quer saber o diabo. Uma tarde a minha mãe apareceu com tosse, tossinha de gato engasgado, dores pela espinhela, calafrios... veio-lhe uma pulmonia da fortuna... pulmonia foi ela que a raspou até hoje. Foi em quinta-feira de Corpo de Deus, moravam aí para as bandas da Sé, numa barraquinha velha; todo o dia a música a tocar; tropa para: lá e para cá; a pretalhada tá — ti — ti — tá; tá — ti — ti — tá; tá tara tá! Gentalha de pagode, o rei, os ministros, a procissão, o São Jorge; e a mãe para ali amortalhada em chita velha, à espera do padre, para ir para debaixo da terra. Nem um coto de cera, nem uma fita, nem um véu de escumilha. As bilhardeiras das fidalgonas, enquanto a Angelca pôde servir-lhes de alcoviteira, fizeram-lhe festa, sim senhor. Mas quando fechou o olho — diabo que te carregue! São uma coisa que eu cá sei, aquelas peças. Não é lá dizermos, andam na berzundela um dia ou outro, mas sempre, sem nunca parar.

— E cheia de reticências procurava incitar o interesse. Baixava a voz, com uma confidência obscena em que figuravam infantas de capote e lenço, passeando pelo Campo de Sant'Ana com o Chico Belas, charuto na boca, uma gazua no cinto do vestido e viva a reinação... E fulana e fulana que aí estão casadas com sicrano e sicrano, sonsinhas de uma figa, já se não lembravam de quando escreviam cartas a este e àquele, para que viessem às tantas horas... sempre se viam coisas neste mundo! Uma lástima, filhos, uma lástima! E que havia sécia que era mesmo para ali, para quem queria ver, na cocheira com os trintanários. Conhecia boa meia dúzia dessas tipas; algumas eram damas dó paço. E que o mundo era todo assim. Mas o que a raivava era quererem ser grandes santarronas, que nem quebram um prato, e no cabo deitavam abaixo a cantareira! Iam passando diante do Pescada A casa estava cheia de gente; rumores de guitarras bordavam finos arabescos sonoros de fados corridos; vinha lá de dentro um burburinho de gente avinhada; o fumo dos cachimbos azulava o ambiente, empestando, e grossos risos estalavam brutais entre histórias alegres do arraial, e largas digestões de mexilhão e pimentos. Via-se a tia Laureana, papuda e quente, encostada ao balcão, entre bojos de garrafas pretas e tabuleiros de queijos frescos. Um aguadeiro deitava ao longe o pregão monótono; para o interior da cidade, rumores de carruagens amorteciam gradualmente na morna sonolência quebrada da hora. O João lembrou que fossem comer alguma coisa. E mais aberto com as mulheres contava os seus apetites e as suas valentias; de uma vez tinha tosado um gajo, na Perna de Pau; já aquilo chuchou cascudos!... E vai, quando mal se descuida, o outro tinha passado as palhetas.

Era agora de uma sociedade Esperança e Harmonia; tinha alugado casa na Rua dos Quelhas e tratavam de arranjar filarmônica; ele tocava pratos. Havia um barbeiro na Rua das Trinas, o Lopes, que fazia comédias, galegos que namoravam as sopeiras e cantavam versos da sua terra: era reinadio! Ele fazia de polícia, tinha comprado uns bigodes de crepe... E dizia as suas boas intenções — em que se havia uma pessoa de entreter; andar para aí perdido de bêbedo? Assim sempre era mais decente. E que ela, Carolina, havia de ir às comédias; não era verdade? Para o Verão queriam dar bailes campestres numa horta, com balões de cores. Iam entrar no Pescada, mas Carolina puxou a manga do aprendiz, pediu que não fossem para ali; tinha lá o pai, se ele visse, santo Deus, era capaz de fazer alguma. — Aquilo, juntava Marcelina, em estando pingado, era o diabo mais ruim da cristandade. E, prudente, aconselhava o Manei do Altinho; ia ali gente mais pacata, havia quartos particulares, seus reposteiros de chita, um rico cozinheiro, e, enquanto ao sumo, era por conta do lavrador, sem confeição. Uva e mais nada! resumia. 

Carolina sorria benevolente, sem dizer nada. Entraram no Manei do Altinho, para um quarto. O João bateu com ostentação de ricaço na mesa, perguntou às mulheres o que queriam; a Marcelina apetecera um bifezinho. Carolina não tinha vontade e o João quis salada de camarões. E rindo, todo corado, olhava para a pequena, abanando a cabeça, dizia vagamente para achar palestra: 

— Com que sim senhor, com que sim senhor! — E confidencialmente, inclinado para Carolina:

— Não come mesmo nada, mesmo nada?

— Mesmo nada — dizia ela sorrindo, embevecida nele.

— Nem tanto como isto? — E mostrava a ponteira da bengala. — Homessa! Olhe que entisica.

Piscava o olho. Riam baixo.

— Velhaco! — segredava ela, vermelha, tocando-lhe a face. 

— Pois há de comer, há de comer por força!

E, lentamente:

— E camarões, para abrir o apetite.

O olhar do aprendiz penetrava nela como um estilete. Miravam-se com curiosidade petulante, adivinhando-se. O olhar dela afogava-se num langor amoroso e úmido, de uma simpatia impura. O João chegou-se mais e com voz quase imperceptível:

— Hoje, lá para a tarde, vou, sim? — disse ele.

— Hoje não — disse ela.

— Por quê? Que tem?

— A vizinhança deita-se altas horas. É gente má, percebe? Podia falar-se, o meu pai sabia... Hoje não. Depois.

— Mas se eu não posso, vê? — suplicou o João, com voz piegas de criança. — Então?... 

— E tímido, uma doçura insistente na boca:

— Vou, sim? Não pode recusar. É má!

Carolina deixava-se penetrar daquela imploração toda incendida de amor desonesto. E sem resolução:

— Pois sim, pois sim — disse ela —, mas às duas horas, ouça bem, às duas horas, quando não houver luz nas janelas, das tais.

A Marcelina, um pouco afastada, tinha adormecido.

O rapaz chegou com a ceia. Carolina gostava mesmo muito dos camarões. E bebia, toda palreira já.

Ao outro dia o aprendiz apareceu mais tarde na loja, tresnoitado e cheio de fadiga. Era a primeira vez que ele faltava aos seus deveres e o patrão, o Ferreira, velho direito e tostado, fisionomia vulgarmente honesta, nada lhe disse. O João era destes filhos que os pais, viciosos e desleixados, abandonam pequenos a uma vadiagem perigosa. Aos dez anos meteram-lhe umas cautelas na mão. De manhã cedo, ainda escuro, ia descalço e cheio de lama às redações comprar os jornais do dia, numa pasta sebenta, que encontrara numa escada. E, caminho dos bairros distantes e ainda adormecidos, sob a luz vacilante dos lampiões, lá ia apregoando o Diário de Notícias e o Popular que saiu agora a dez réis. Gastava assim a manhã. Algumas vezes, pequenino e todo roto, a carne suja transida do frio, deixava-se dormir nas escadas, com a pasta por travesseiro. E esquecia-se, no sono, da venda dos Populares. Recolhia a casa carregado, com os jornais intactos; davam-lhe tareias monumentais, com uma corda molhada, nos rins; de uma ocasião perdeu as cautelas, pôs-se a chorar na rua, cheio de medo. Quem passava queria saber o que era; ele, soluçante, dizia a sua desgraça, estorcendo as mãos. Alguns davam dez réis. Mulheres de ricos vestidos de cauda compadeciam-se: — Coitadinho, coitadinho... — As crianças olhavam-no comovidas, esmolando-o. Um velho alto, barba toda, de bengalão, ao passar disse azedamente:

— Parece impossível que a polícia consinta este desaforo numa cidade civilizada! — E ele envenenava o seu ânimo numa aflição profunda, expressa em lágrimas sem remédio. Ninguém tinha achado as cautelas; ia passando cada vez menos gente, menos gente; perguntava a todos, uns riam-se, outros diziam que não! Alguns nem respondiam: todos iam andando! As lojas fechavam: uma tristeza parda fazia-se na rua, obscura e fria. Os pianos choravam nas salas medíocres dos terceiros andares, velhas romanzas de Bellini e Weber, em desafinação sentimental, e, através das janelas unidas, vozes de meninas líricas diziam em italiano barbaresco afetos candentes de heroínas tísicas, com gestos cavos e baladas entorpecedores, cheias de pecado e ofensas à moral pública. Ele sentia, no meio da felicidade dos outros, pesar-lhe a sua miséria, como um globo de chumbo do pesa-mundos.

Era bonito e louro; os cabelos crescidos, anelados, revoltos e cheios de terra, davam-lhe um doçura tranquila e casta, cheia de encanto e inocência, o ar de um leãozinho amamentado num viveiro. Tinha nos olhos um azul-escuro de safira, de uma profundeza de Bambino, no fundo dos quais se sentia dormir a sua almazinha angélica, sofredora e cristalizada, como uma fina joia, desconhecida e brilhante. Não conseguira fazer com as esmolas nem metade do custo das cautelas; todo o mundo era feliz e sorria; muitos gastavam em ninharias, em bonecos e em fitas, um dinheiro louco. Só ele não tinha ninguém que lhe desse o quartinho dos seus bilhetes perdidos. Mas um homem vinha envolto no seu casaco de Inverno; ele chorava! Encheu-se de valentia e chegou-se ao transeunte:

— Meu rico senhor — começou ele —, eu tinha umas cautelas, que o meu pai me tinha dado para vender. E vai, ali na Calçada dos Caldas, perdi-as, meu rico senhor. Se eu não levar o quartinho, o meu pai é capaz de me enforcar, meu rico senhor. Tenha compaixão... 

— Passa fora, gatuno! O que tu querias nesse espinhaço bem sei eu. 

Ele recuou aterrado, convulso. 

E varado por aquela violência ficou soluçando no meio da rua solitária.

Se fosse para casa, o pai, um pedreiro incorrigível e bêbedo, tinha-lhe preparada a corda, num alguidar cheio de água. Lembrava-se que a mãe, triste criatura amarela, resignada, loira e cheia de privações, eia meiga para ele e clemente, ocultando-lhe as faltas, vestindo-lhe a nudez com os seus trapos, contemplando-o em certas noites com um amor, uma tristeza e uma suavidade toda feita de sacrifícios, de dores e apreensões. Essa pobre mulher imploraria de joelhos o seu perdão, quebrando nas suas costelas as pancadas que o pedreiro atirasse ao filho, calada e paciente, de uma humildade evangélica e de uma vileza sublime! E uma ideia cortava-lhe de repente este referver de recordações, de vacilações, de receios — se ele não fosse para casa? A tunda adiar-se-ia para o dia seguinte com acumulação de juros; a mãe, tão mesquinha e tão boa, pagaria por ele, levando puxões de cabelos, picadas de alfinetes, socos pelo vazio e pimenta pela boca, que o pedreiro, em estando com ela, era um dragão em casa. A vizinhança às vezes apitava; ele quebrava vidros, dizia impropérios, atirava-se à patrulha, à dentada, como um danado. Era no Inverno, altas horas. Começou a chover, a chover. O vento, encanado pelas ruas, ao longo das altas casas, agitava os lampiões com estalidos secos. Dois ou três coupés passaram a toda a força. Um deles levava crianças e era tirado a quatro. Era o rei que voltava de São Carlos, com a família. João ficou parado, a seguir aqueles trens opulentos, de gente que podia perder cautelas sem levar tareias, e sem passar noites fora de casa, com medo das cordas molhadas. Ser rei era para ele muito mais que ser Deus; e fantasiava uma existência inaudita e fenomenal, se fosse rei. Teria camisas de chita, de quadradinhos, camisolinhas de flanela, boas botas de Inverno, um relógio, cadeia com pingentes, mais cara ainda que a do vizinho Maurício — o da tenda de São João da Praça. E dir-lhe-iam:

— Vossa real majestade senhor rei, vossa real majestade... E ele daria a mão a beijar, com um grande anel, melhor que o do senhor Parreira, o comissário de polícia do seu bairro. E ajoelharia diante dele, repetindo: 

— Vossa real majestade, vossa real majestade...

E marcharia à frente dos esquadrões de lanceiros cheio de medalhas, uma banda, de bigodes retorcidos e tirando o chapéu armado ao povo, no meio dos hinos das bandas marciais, ou então na procissão de São Jorge, de manto e debaixo do pálio, iria descoberto, acertando o passo, com ares majestáticos. As beiras dos telhados deixavam cair as suas lágrimas monótonas com um ruído metódico e gelado. No céu escuro e forrado por igual, nuvens brancas, como de algodão fofo, esbarravam, acossadas pela nortada. Os passeios desertos, nus de transeuntes, ofereciam à claridade triste do gás o seu esguio e pálido espinhaço, que recordava o de um peixe antigo, dos que se fazem admirar em esqueleto, fossilizados, nos museus. Recortavam vagamente no ar os tetos negros a sua dentadura de pentes partidos; nas fachadas imbecis, que os reflexos mosqueavam de um livor doentio, cortadas por filas escuras de janelas toscas, as tabuletas faziam nódoas de luto, ensanguentadas por letreiros vermelhos, de modistas e de armazéns de fazendas. Ao fundo da rua, num terceiro andar, uma parteira tinha uma lanterna rubra, de aviso. Dois gatos seguiam ao longo das paredes, miando a sua paixão nervosa e excêntrica. E por sobre a cidade os aguaceiros esfarrapavam-se lentamente na sua caminhada fatal, fazendo nos confins dos edifícios afastados, longes indecisos e lúgubres, linhas frias de mausoléus — um abandono do campo-santo, desconsolado e fatídico. João pôs-se a andar vagarosamente, cabeça baixa, as mãos remexendo o forro das algibeiras, transido do ar da madrugada. Não tinha senão um pensamento — não ir para casa. O mais, que lhe importava? 

Mas sentia-se cansado e triste, como quem vai partir para um país ignorado, dos Brasis. Sentiu uma coisa dura no bolso das calças: não se lembrava do que seria. Tirou para fora: era um vidro cheio de facetas, uma rolha de garrafa que encontrara na rua. Com a curiosidade natural de crianças, aplicou o olho a uma das faces e pôs-se a mirar a luz de um candeeiro, através do poliedro. Experimentou deslumbramentos.

A luz multiplicava-se no seio do cristal em centos de imagens fulgentes e irisadas, vívidas numa saturação de amarelo-pálido. E o cristal dilatava-se como uma arcaria fantástica em mil sentidos opostos, onde cintilas cruzavam as suas linhas coriscantes, com uma abundância embriagadora. João nunca olhara coisa assim: era como um mundo de diamante e de luz, salas desertas e imensas, iluminadas como para um sarau. A sua alma, como uma borboleta fascinada, ia, em lufadas de gozo, penetrar essa vasta habitação principesca e oriental feita do que há mais puro e mais comovente: a luz, a alegria, a glória... Novamente apeteceu ser rei e viver naquele palácio, num trono. Tinha fome, desde pela manhã não comia, as pernas vergavam-lhe. 

Encostou-se ao umbral de uma porta, olhando sempre os seus salões mágicos vestidos de tapeçarias iriantes, em que a luz incidia polvilhada em átomos de glória. Mas a fadiga oprimia-o. Curvou os joelhos na pedra úmida de chuva, absorto na luz. Os olhos carregados de chumbo, cerravam-se. Mas abria-os devagarinho, para mirar. E sem sentir, uma tranquilidade emoliente nos membros, adormeceu.

De manhã acordou, admirado de haver dormido fora de casa e surpreso mesmo da proeza heroica que o expunha às cóleras do pai intratável. Corria um arzinho cortante que esburacava a névoa do rio e dava comoções fantásticas às nuvens úmidas do ar. Uma parte da cidade envolvia-se em grandes vapores translúcidos, em que se perdiam as torres das freguesias. No macadame gasto e revolvido, rugosidades de lama cinzenta faziam hieroglíficos intermináveis, gastos por vezes na profundeza dos sulcos dos carros e no remoinho de pegadas dos vendilhões descalços. Começavam a passar carroças de hortaliças para o mercado. Jumentos tristes e felpudos, de uma resignação cristã, seguiam lentamente, carregados de roupa. Uma leiteira forte, vestida de azul, grossas botas de cano, conduzia as suas vacas meigas emagrecidas, todas malhadas de branco, com velhos cobertores no dorso, e as grandes tetas, pendentes e cheias, batendo nas pernas em frente, no chafariz, os aguadeiros enfileiravam os barris vermelhos, cintados de negro, a fazer carreira; e todos sujos, aparvoados, de uma ingenuidade sórdida, chalravam a sua galegagem brutesca. No entanto, as janelas fechadas dos prédios tinham uma passibilidade sonolenta e morna; as águas-furtadas, agudas e revestidas de telhas escarlates, recortavam, acima das platibandas pardas, vagas triangulações idiotas. Nas altas varandas corridas dos quartos andares, arbustos raquíticos e estiolados pela tristeza dos vasos e pela umidade sulfídrica da atmosfera debruçavam pelos buracos da gradaria, para a rua, tristes flores esmaiadas, velhas corolas de uma sentimentalidade doente; pelas janelas, trepadeiras ressequidas enroscavam-se em caniçados, bordando jardins suspensos de amanuenses medíocres. O dia aclarava-se no côncavo da abóbada. A espaços, no bocejo das vaporizações longínquas acossadas do vento, esmaltava-se o azul lavado e fino, de uma grande paz comovente. E sentia-se despertar a população. Os moços de padeiro enfarinhados e tiritando de frio, passavam com os cestos, a correr; um sino afastado dava matinas numa toada cheia de melancolia. João ergueu-se, com espreguiçamento, quebrado da friagem da escada. O que se teria passado; para onde iria agora; o que seria dele sozinho, por aí?...

A verdade é que não estava para aturar o bêbedo do pai: isto é que era! Com a venda dos jornais e das cautelas sempre ganharia para comer. Podia dormir nas escadas. Às vezes tinha venda de ganhar dois tostões; havia dias de menos também: era conforme calhava. E, contando pelos dedos, punha-se a calcular: — um pão, um pataco, e chega para todo o dia; dez réis de caldo; um vintém de sardinhas; dois decilitros... ao todo, gastava seu tostão. O mais era para fato e extravagâncias cá da pessoa... Afinal era uma bela vida. Melhor que um padre de missa! afirmava. E seria livre, costado sem pancadaria, indo às hortas quando tivesse vontade — que uma pessoa não pode andar sempre no trabalho; lá chega um dia... E, repetindo frases que ouvia ao pai, para a sim mesmo parecer homem, lembrava-se irritado das brutalidades do pedreiro. Bem sabia que ele era seu pai e lhe podia bater por ser mais velho; mas as suas costelas não eram nenhum fole de ferreiro. Alto lá! Era demais, também! E que ele era muito bom, sim senhor, mas em lhe fazendo chegar a mostarda ao nariz — está quieto! Mas a sua mãe, aquela pobre mulher palidamente mártir, tão sofredora e tão resignada, que seria dela, sem o filho? Como poderia a pobre criatura, de uma fragilidade triste, suportar as brutalidades do marido? E lembrava o seu perfil engelhado e seco de privações, os seus olhos amortecidos de dores antigas e o seu peito esfacelado de tosses, côncavo e velho, de que ele pendera pequenino, guloso de mama e envolto em mantilhas frescas. Quantas alucinações rasgavam, havia tantos anos, a alma dessa obscura macilenta, dessa escrava de um canalha convicto?... E, como uma chama cantante, palpitava-lhe dentro aquele amor honesto e cheio de castidade infantil, cor-de-rosa; de uma vez estivera doente com sinapismos nas pernas, um febrão desabalado; e em delírio descobria-se no leito, cheio de agonias, vendo dançar no teto os Populares e os garotos do seu conhecimento. E em torno da enxerga, na penumbra do quarto abafadiço, de cada vez que lhe vinham momentos lúcidos, descobria o rosto ansiado da mãe, batido de vigília e escavado de lágrimas, de uma expressão que fazia dó. Todas essas lembranças atiravam a sua pequena alma a uma tristeza em que o seu coração se sentia boiar, como num lago ácido e corrosivo. Deixar a mãe, aparecia-lhe como um pecado funesto e impenitente, dos que fazem bailar Satanás. — Nem os brutinhos, dizia, nem os brutinhos fazem tal. E sem resolução, ruminando a sua incoerência estúpida, com as mãos nos bolsos das calças em frangalhos, foi comprar os jornais do dia. A luz alastrava-se pelo céu e, no oriente, lavado de nuvens agora, os feixes, no morno sol, riscavam nas fachadas poliedros amarelos e emolientes, de um agasalho caridoso e bom. 

Nesse dia, acabada a venda, foi a casa. Encontrou uma janela fechada e a porta unida; uma grande quietação flutuava nos quartos. Entrou de manso: o gato dormia sobre a cômoda, ao lado do oratório; em torno quebravam-se, na meia-luz do recinto, formas hirtas de velhos móveis mutilados, cadeiras sem palhinha, mesas sem gavetas, esqueletos de baús escancarados e vazios, com o forro em tiras. Viu a mãe caída sobre um colchão, respirando alto. Na chaminé não havia lume, nem louça; o cesto, vazio de pão, abandonava-se sobre o poial de tijolos. O João percorreu devagarinho os quartos. No saguão e sobre o peito da janela, um vaso de salsa esverdeada; mais alto, uma cana, uma camisa velha estava a enxugar com as mangas pendentes, como num desalento miserável; um chinelo úmido e proscrito sorria como um queixo sem dentes, à borda da sarjeta, e tudo aquilo soluçava um desconforto triste, como a nudez de uma tumba. O pedreiro não estava em casa — ainda bem! O João chegou-se à mãe.

— Mãe! — Ela gemeu alguma coisa confusa, mas a sua cabeça caiu, outra vez, numa prostração desolante. Enrolava a cabeça num xale; um sulco negro descia-lhe da testa à face, inflamada e ardente. O lábio escorria sangue, rasgado por alguma pancada. O João descobriu docemente a cabeça da pobre mulher, procurava com beijos dizer a sua pena. E, em súplicas balbuciadas, de aflição sincera, dizia que lhe perdoasse, contava as asperidões da noite anterior, as suas misérias, a perda das cautelas entre gente indiferente e cínica, que lhe chamava vadio.

— Triste de quem é pobre, lamentava ele, triste de quem é pobre! Com as mangas da blusa limpava as lágrimas, e vibrante, numa solicitude amorável e leal, toda feita de grandes dedicações, inquiria a história dos golpes que rasgavam a cara da mãe. Ela mal podia falar. Tinha esperado pelo filho até fora de horas: quando o pedreiro recolheu, não havia ceia — pão e água! E entrou logo a barafustar, a dizer insolências; que andava a trabalhar como um mouro para aquela grande bêbeda, que havia de fazer um dia alguma de rachar pedras. De resto tanto lhe dava ir para a costa d'África como ficar no Limoeiro Novo; em toda a parte se ganha pão, com seiscentos diabos! Ela queria convencê-lo, prestava-lhe contas da semana; pouco recebera da féria, ele bem o sabia; como era possível tornar o pouco em muito? E esboçava róis: tanto de pão, tanto de arroz, pano para uns remendos, conserto das botas... O marido nem deu palavra; cambaleante, tocado de vinho saiu. Ela quis retê-lo, que se fosse deitar, que não fizesse distúrbios, pelo amor de Deus, por tudo quanto tinha de mais sagrado!... Mas cortou-lhe a palavra uma bofetada crua que a derribou, com um gemido. Atravessou a rua, desceu à taberna. Das bancas gordurosas saudavam-no como a uma pessoa íntima e querida. Ela, coitadinha, chorava atrás da janela, enquanto, na parede do fundo, a lamparina do oratório, posta atrás de uma cesta, enchia de sombra o papel desbotado, cheio de manchas escuras e fatídicas.

À uma hora viu entrar o marido, chapéu à banda, a tosca fisionomia viciosa, com ângulos de vértices sinistros sombriamente cortados em sombra, os olhos absortos, fixos num pasmo selvagem, feramente imbecil — como a encarnação do crime! Ela cosia-se com a sombra, sustendo a respiração. A rua estava dormente, a vizinhança recolhida; viam-se passar os gatos de escada para escada, num silêncio lúgubre e frio. O pedreiro agarrou numa cadeira e esmigalhou-a com estrépito, no meio de pragas. E, não tendo resposta, agarrou no oratório. Os mártires mutilados e cheios de fitas, os seus rostos de pau pintado cheios de inchações vermelhas, caíam com uma resignação bíblica no meio da casa. Ela então saiu da sua sombra discreta e disse-lhe com os dentes estralejando de medo:

— Manuel, anda deitar-te, homem. Tem hoje paciência, amanhã se fará o que queiras.

O pedreiro cresceu contra a pobre, com um pé de cadeira quebrado na mão; agarrou-a pelas goelas com uma força de salteador, e torcendo-a, rangendo a queixada, ébrio da sua ferocidade surda, descarregou-lhe pancadas furibundas nas costas, na cabeça, contra o peito. E ergueu-a inerte, como morta, para a lançar no chão moída de pancadaria. No entanto, a vizinhança acordava pelo rebuliço; apitos soaram na rua; duas mulheres em saias brancas gritavam — ó da guarda! — e polícias, arquejantes da corrida, enfiaram pela casa com os chanfalhos em riste. O pedreiro queria lutar, esbracejava furiosamente entre os pulsos cabeludos dos agentes, blasfemando. Pelos grupos, uma velha suja, olho de coruja, andava tomando informações, de uns para outros, com lamentos de uma piedade desenxabida. Tinha-se alastrado na rua o burburinho. Alguém trazia arnica para as contusões da prove. Uma rapariga aconselhava cerveja preta, coisa de quatro dedos, que não havia nada melhor para maçadas de arrocho. E vários narravam casos de pancadaria com pessoas tesas, que desarmavam a patrulha com três tabefes. O pedreiro, amarrado entre dois polícias, passou entre as mulheres curiosas, no meio de pragas. E explicavam-se as feridas da mártile: havia uma na cara com a dois dedos, e já aquilo vertia sangue!... Uma rapariga trigueira, de uma prenhez disforme, tinha suas desconfianças que havia costela partida. Outros gesticulavam, tentando elucidar, com figuras e arremedos, a narração que iam fazendo de como a gente era cá por dentro. Mas ouvia-se a voz da patrulha que descia a rua.

— Nada de juntamentos aqui! Nada de juntamentos aqui! — E cada um foi para a sua banda, dando boas-noites. A triste espancada nem dava acordo de si. Corridas as primeiras curas das feridas, cada um foi dormir descansadamente e ninguém se lembrou de chamar o médico.

Sem o filho, sem uma pessoa que velasse por ela, a triste mulher revolvia-se nas enxergas, às escuras, em gemidos de dor e desvairamentos de febre.

E como de costume a manhã rompeu dali a cinco horas, anunciando uma terça-feira de Inverno.

O dia correu no meio de tristezas carregadas. A casa emergia num torpor abafado. Na rua dois ou três pequenitos brincavam, seminus, com lama. O João andava de uma banda para a outra, sem poder sossegar. Desde as onze horas que a mãe perdera o tino e mergulhara no delírio. Sentia-se sepultar num horror sem limites, como se fora um ponto suspenso no centro de uma grande esfera vazia, inerte, sem fim, em que eternamente se gira e embalde se chora, sem eco. Fora, de mansinho e descalço, cheio de uma ternura lacrimosa, chamar por ela, dar-lhe água: a sua pele seca, de um contato áspero, ardia de febre intensa. Os olhos, de um azul apagado, escancaravam-se num pasmo doloroso; um sulco parvo distendia-lhe a boca, seca e fétida; a respiração cortada, longa, lenta e difícil, soava por toda a casa, com um ruído de serra. O João parara então em frente da cama, absorto e diluído em pressentimentos trágicos. A alcova era estreita e nua, de teto muito baixo, toda pespontada de moscas. Uma cruz negra pendia à cabeceira, com uma palma seca, ao través. Num canto, um caixote cheio de ferramentas manchava cruamente as faces retangulares do recinto. Umas saias esfiadas pendiam num cabide, com um capote verde, e em torno, moscas aos magotes, zumbiam famintas, como quem se aborrece da ociosidade. Dali a nada entrou a senhora Joaquina, a vizinha do lugar. Trazia um caldo, duas maçãs, cobertas com um guardanapo. E, curvada para a doente, perguntava como tinha passado a noite, mas calou-se logo, empalidecendo, com a xícara na mão.

O olhar do João colava-se nela como um borracho sob a asa da mãe, um terror ululante penetrava-o, com profundeza gélida e cheia de alucinação. A senhora Joaquina olhou para o pequeno e disse isto:

— A coisa está mal! — E sem uma palavra ergueu-se e saiu. Ele ficou pregado na parede, sem resolução: ouvia os baques do coração convulso, mas não pensava nada, não se lembrava de nada; ficara para ali, como se o atirassem. E media as palavras no ouvido: 

— A coisa... está mal! O que seria? — Tentava fazer um supremo esforço, queria por força voltar à sua disposição habitual, respirar livre, mover-se elasticamente, marchar firme, com os seus rijos pés plebeus, mas experimentava uma coisa, inexplicável talvez: era como se o seu corpo se alongasse muito numa faixa elástica, e lhe tivessem esmagado a cabeça entre lâminas de ferro, depois de o haverem adormecido com cloral, em grande dose. E no fundo do seu peito dobravam, como num enterro, aquelas quatro palavras lúgubres: 

— A coisa está mal! — Os seus olhos erravam pelo teto, pelo cabide de que pendia o capote em contornos de mortalha, amplas dobras de um funerário abandono. E, casualmente, desceram contra as roupas da doente, que arfava ao tique-taque da respiração. O dia estava triste e forrado de burel; ouvia-se cair a chuva nas telhas, com um compasso monótono e fino. À alcova mal chegavam franjas pardas e mal definidas de luz; que não conseguiam contornar as coisas e, em triângulos colossais, amontoavam penumbras ondulantes de um pavor febril. No ânimo do João também enormes cenários de trevas desciam, e, o bélico de bronze, o infortúnio como o aniquilava sem apelo. A sua imaginação viva e de uma excitabilidade supersticiosa e audaz fazia surgir, como no alvo de um fantascópio, grupos nubívagos de defuntos e velhas histórias diabólicas de enforcados que ouvira às vizinhas: e tudo eram olhos pela parede, pelas enxergas e pelo chão, na sombra, na treva, na incerta claridade da porta, que o fitavam escancarados, com uma teimosia agoureira e uma surpresa cobiçosa. E parecia-lhe que alguém o ia a tomar pelo gasnete, que velhas sardônicas, cheias de feitiços, afiavam estiletes para o rasgarem, e um papão de grandes barbas revoltas, capuz profundo de asceta, levantava sobre ele os braços, prenhes de maldições e castigos. Os seus ouvidos ressoavam interiormente numa vibração confusa de arqueus; sentia as fontes baterem com uma onda de sangue convulsionado, e todo o seu desejo era fugir dali e correr para fora; mas tinha medo de voltar-se; o silêncio gelava-o, como de cripta secular, em que se tropeça em ossadas de cavaleiros, e se abrem caixões de veludo preto, ao gemer estranho do órgão. Pela tarde adiante a vizinha chegou, com uma garrafa, mostarda, lençóis lavados. E pôs-se a fazer sinapismos, esfregações, toda repartida em desvelos amigos. Ao lado, o João, imóvel, abria os seus ingênuos olhos azuis, uma admiração tosca e vagamente reconhecida. A Joaquina ajeitava as roupas, desembaraçada, mangas de lã vermelha e um lenço de ramos sobre os seios murchos, como frutos sorvados. E dizia:

— Isto é lá cama, nem a minha avó!

E alto:

— Vocês não têm um quarto com janela? Mudava-se para lá a cama, sempre há mais ar.

— Há, ao pé da cozinha. É o meu. 

Foram ambos ver. Era um casinholo arruído. Quase no teto, uma fresta piramidal e profunda, sem vidros, dava uma claridade amarela: ouviam-se ratazanas roer o forro, familiarmente. 

A vizinha resmungou: 

— Pior a emenda que o soneto! — E com um ar distraído: — Doenças destas, ou bem tratadas ou então...

As últimas palavras fizeram calafrios na espinha do rapaz. A Joaquina corria-lhe a mão pelos cabelos, com ternura de mãe. E olhava-o esquecida, uma tristeza contemplativa cheia de pressentimentos e emoções. Uma lágrima caiu na mão do rapaz. Ele então quis olhar firme, com a coragem de um homem, mas alguma coisa estrangulou-o, e deixou escapar um soluço...

Quando acabou de chorar, a Joaquina tinha-o no colo, dava-lhe beijos, dizendo-lhe consolações banais e cheias de mimo. E dali a nada: 

— Olha, filho, se ela pudesse tratar-se no hospital.

Ele ficou aflito, todo desconsolado: 

— Mas ficava aqui só. Não a via nunca — objetou. 

— Qual! Aos domingos dão licença para visitar as enfermarias, lá isso dão. — E explicava: havia muita caridade, boas roupas, tudo de linho, e quanto a médicos... a mestrança... upa! 

O João, com as pernas apoiadas na parede, a cabeça no avental da vizinha, resistia tremendo. Cortava-lhe a resolução, como uma lâmina frígida, esta ideia excêntrica e rubra: 

— Se ela morresse...

Tinha os olhos cheios de lágrimas limpidamente angélicas e uma palidez definhada retocava de um mimo casto a graça correta do seu rostinho ingênuo. Por mais esforços que fizesse deixava-se ir vencendo por um quebramento pesado de fatalidades lívidas. A Joaquina fazia também grande esforço querendo parecer forte, exteriormente alegre, e a cada passo o seu ar tranquilo e descuidoso obscurecia-se de angústias, que o seu coração de burguesa bolsava em golfadas. E dizia como para si:

— Mandei chamar o médico para ver a minha vizinha. Se ela for de parecer que vá para o hospital, agarramos nela e toca! O meu homem é muito dos enfermeiros. Um deles, o Bento, é afilhado; o Zeferino é até compadre de águas bentas. Ia bem recomendada, não tem dúvida. Lá isso... Tratada que nem uma princesa, olá! — E circunvagando a vista pelos andrajos do quarto: 

— Que nesta pocilga, meu rico, até morrem os que têm saúde. Nem sei como vocês aqui viviam e lidavam. — Cuspia de nojo, e ressentida: 

— Aí Tudo por causa daquele negro daquele bêbedo. Deus me não castigue, pela sua misericórdia!

Ao anoitecer, a doente, empacotada numa maca, foi aos ombros de quatro galegos para o hospital. Era um cortejo doloroso. As mulheres chegavam às portas, arregaçadas, no meio de filhos descalços. Algumas diziam — coitadinha!... de uma janela, a costureira explicava o caso para o segundo andar, e duas ou três tinham lágrimas e torciam os aventais, lamentando as coisas deste mundo. A maca era velha e rangente; o vento da noite erguia a espaços o oleado carcomido e aparecia então na caixa do leito o corpo imóvel e morto da velha, coberta com o capote, indecisamente esboçado. Ia atrás o João, descoberto e aflito, triste na sua pobreza descalça e órfã, como um cão fiel que esqueceram. A Joaquina, parada à porta, chorava. Uma ovarina passou, inquiriu do pranto. A outra mostrou-lhe com o dedo a maca, que desaparecia no cotovelo da rua, e disse:

— Aquela já cá não volta. — Escurecera de todo. Um homem de blusa acendia os lampiões.

No hospital, a, maca pousou. Dois moços vieram para expulsar o pequeno, que queria ficar com a mãe. Sozinho, abandonado e partido de soluços, foi-se acocorar numa porta; ficava diante, com uma grandeza sepulcral, a parede branca do edifício, glacial e esburacada de janelas, onde uma luz vaga, mortiça, esmorecia. Junto da porta a sentinela girava, e no pátio, através das grades, figuras de apóstolos enfileiravam a sua majestade de pedra junto da parede, em pedestais geométricos e frios. Ali estava a mãe! O que iriam fazer dela? Nunca entrara na enfermaria: como seria? E figurava camas de palha cheias de podridão, em que se estorcem corpos de galegos e mulheres tísicas, numa promiscuidade canalha. Sentia sufocações no peito: nem podia chorar! E a rua, no entanto, sonora de passadas de transeuntes, operários que recolhiam, garotos felizes que vadiavam gritando, oferecia aspetos alegres e cenas de vidas bem alimentadas no quente aconchego dos ménages probos e robustos de labor. Uma saudade lacerante entrou no coração do garoto; e, como nunca, encarou a sua vida miserável. Quando entrou em casa teve medo: uma solidão mortal na cozinha, as ratazanas tripudiando no saguão; abandono, pobreza em tudo. E seria assim sempre! O pai na prisão. A velha no hospital. Que desgraça, que desgraça a sua!...

No dia seguinte era preciso comer. Por conselho da vizinha foi vender jornais, para não perder os fregueses. Ao meio-dia foi saber da mãe. Expulsaram-no de novo, com uma vara. Perdeu a vontade de comer, voltou para casa aniquilado, amarelo e vazio.

— Se ela morreu! — dizia... E pavores imensos, soturnos fantasmas de umas transparência mágica, surgiam-lhe de noite aos portais, gemendo credos de monges, e mostrando dentuças formidolosas. Uma tarde estava no lugar da Joaquina, com os pequenos. Entravam uns e outros a beber vinho: ao balcão um grupo conversava, entre a fumarada dos cachimbos. À voz da vizinha gritou: 

— João! 

Ele foi. A Joaquina disse: 

— De amanhã em diante, hás de levar o Notícias a este senhor. — Apontava um velho seco, olho morto, ar veterano, de blusa azul.

O João olhou timidamente. 

— Pois sim, meu senhor, pois sim — disse ele. — Seja pelo amor de Deus. Em que rua é, meu senhor?

— Não é rua — fez o homem. — Tu entras pela porta do carro, percebes? É no Hospital de São José! Vais por ali dentro, percebes? Tudo por ali fora. Há umas grades, entendes? Vais por ali adiante e vês uma casa baixa, entendes? Tem uns degraus: é aí. A porta está aberta para quem quer. Renda barata, entendes? — Ria-se, um riso enorme, adunco, de carnívoro.

Os mais tinham gestos comprovativos. Um até disse isto: 

— Livra-te de lá morares, rapaz. 

O João não percebia nada. Como era no hospital, observou: 

— É onde está a mãe? 

O velho tossiu cavamente. 

— Talvez já fosse minha inquilina, percebes? Mas entram e saem muitas, nem reparo. 

— Sim, sim — fez o outro. 

O homem juntou: 

— Lá, os semestres têm vinte e quatro horas entendes? — 

Tornaram a rir-se. O que era velho tinha dentes aguçados e negros de cárie: quando ria, esgares de grotesco bárbaro repuxavam-lhe as maçãs do rosto tostado, de ídolo. Os anos tinham-lhe polvilhado os cabelos, hirsutos como juncos secos. 

No outro dia mal amanheceu, o pequeno entrou a porta do carro, subiu a rampa, encostado à Escola. No terreiro parou para orientar-se. A porta parava um estranho carro negro, linhas de cofre, todo crivado de buracos, lúgubre e frio como um caixão. Sobre a tampa havia uma urna esculpida, meio coberta com um pano e toscamente executada. Um homem sentava-se na almofada; tinha o seu capote azul, o seu chapéu de oleado e a cara vulgar dos caleceiros nem maus nem bons, imbecilmente honrados. Outros dois, em mangas de camisa, traziam fardos de dentro, feitos de serapilheiras esburacadas, mendigas. O João mal reparou naquilo: tinha visto a casa baixa ao fundo da rampa gradeada: era ali que lhe mandavam deixar o Notícias. Foi lá. O velho estava em mangas de camisa almoçando café, à entrada. Era um corredor estreito para onde abriam óculos de vidro de pequenos compartimentos claros e cheios de ar; a luz crua da manhã caía do alto, pelas vidraças abertas. Ao fim do corredor, um altar negro frisado de douraduras saía da parede, e em cima um Cristo de pau, entre velas intactas e cheias de moscas mortas, estendia os braços cilíndricos, dourados a casquinha. 

Um arame escuro, de algum timbre distante, riscava a brancura do teto e unia outros arames convergidos de cada compartimento, como uma espinha de peixe. Oxidada e velha, uma lâmpada de latão caía de cima com a sua luz inútil na claridade diurna. Tudo aquilo era de um aspecto lúgubre e frio através de que se sonhavam infortúnios e alucinamentos. O João esteve a mirar tudo: estaria ali a mãe? Era o hospital — devia estar. E via o velho ensopar em café grandes pedaços de pão; olhava...

— Aqui está o jornal — disse. E ficou-se. Tinha ganas de perguntar pela mãe; acanhava-se. Ao fundo, a lâmpada pendia, como num nicho. O altar negro e frisado de ouro lembrava uma capela de jazigo. Tirou o barrete, reverente:

— Ó meu senhor... 

— Que é? — fez o velho. E tasquinhando: — É o Notícias, hem? Aposto que traz o caso da sopeira dos Calafates!

— Ó meu senhor, isto aqui é igreja? 

— É hospital: tu não vês? 

— É hospital...

E a medo, uma ansiedade íntima: 

— A minha mãe está aí, está, meu senhor? 

Tremiam-lhe os lábios, e conhecia-se a dolorida expansão de um amor de ave, implume e doce, que descobriu amparo. O velho olhou-o com ironia, depois teve dó, um dó alarve, quase insolente. 

— Procura-a se queres — respondeu. 

E o seu dedo escuro e cheio de nós apontava os óculos dos pequenos cubículos, abertos sobre o corredor. O garoto entrou a medo, como numa igreja: como era baixo, não chegava aos vidros. Havia um banco: agarrou nele, assentou-o junto da primeira porta, subiu corajosamente com a pasta debaixo do braço. Esteve a olhar, a olhar.

— É um homem — disse ele. 

O guarda parara de comer; na dilatação da sua pupila poder-se-ia adivinhar a alegria surpresa de quem vai pregar uma boa peça. 

— É um homem, é — concordou. 

— Dorme, coitadinho. — E, penalizado: — Tão magro!... Tem filhos, meu senhor, tem?

O velho não respondeu. A esse tempo, já o pequeno tinha o banco ao pé da segunda porta e subia.

— É uma velha — notou ele. — Olhe, meu senhor, está a rir. Cada olho! 

— Ri-se de ti talvez — comentou o guarda. E para o afastar do óculo: — Está doida; sai daí.

O João detinha-se muito pálido e nervoso, pressentindo alguma coisa horrível. E não podia descer. 

— Mas ela não mexe! — Tremia de medo. — Meu senhor! 

— O que é?... 

— Aqui é o hospital?... Diga, é o hospital? 

— Pois o que há de ser? Não vês as camas, os doentes. 

O João hesitava, agitado.

Não disse nada, desceu devagar, com a cabeça pendida numa absorção angustiosa. Pôs o banco ao pé do terceiro óculo; subiu. 

— É a mãe! — Tinha os últimos alentos na voz; uma revolta de amores, desconfianças e luto, impulsionara agora de súbito nessa organização inerme uma desusada atividade, quase uma audácia. Saltou para o chão, arremessando ó banco. Ia abrir a porta. O guarda correu para ele, deu-lhe um encontrão brutal! — Eh rapaz!... Diabo! — Segurava o fecho, olhando.

— Pelo amor de Deus, pelo amor de Deus! — implorava o pequeno — É a mãe, é a minha. Deixe-me ir falar-lhe, deixe, meu senhor. 

E de mãos postas: 

— Pela sua saúde, por alma dos seus defuntos! — E com um desespero explosivo: — Ora isto! ora isto! — Levava os punhos cerrados aos olhos; um choro dilacerante abalava-o. Tomou as mãos do guarda: — Só pedir-lhe a bênção, meu senhor; vou-me logo embora, vou-me logo embora! 

Essa alma dura do velho verteu compaixão. 

— Mas não podes, não tenho ordem, percebes? — E dava razões: ela estava com cáusticos, com uns emplastros na espinha: tinha acabado de tomar o remédio; era um banho forte, que fazia dormir. E que bem tinha visto pelo óculo, pois não era verdade? Não lhe tinha visto os olhos fechados? Era sono, está claro! E que, se queria vê-la boa, não a fosse agora acordar, a pobre velhota. — Percebes? 

— Amanhã vens tu aqui, entendes? de manhãzinha cedo, e talvez já ela esteja capaz de te ver; entendes? Pois isto é que é.

Ele, de cabeça baixa, refletia. 

— Vossemecê não me engana, não? Sou um pobre de Cristo, vivo dos jornais; não vê? — E apresentava a pasta. O guarda compadecia-se. 

— Não engano, homem: para que te havia de enganar? E boa! 

Armava no rosto uma sinceridade benévola e rudemente ingênua. O João saía vagaroso. 

— Então amanhã, meu senhor. Adeus. Seja por alma de quem lá tem. 

Ao fundo dos degraus deteve-se para voltar a cabeça. E ficou-se a murmurar pensativo: 

— Mas quando uma pessoa está doente, não apanha ar. Ali têm as janelas escancaradas. — Ia devagar, embebido, com os jornais na pasta. — Eles sempre são cirurgiões — disse —, entendem mais que um qualquer. — E a espaços: — Então amanhã. Hei de lhe contar que estou muito obrigado à vizinha; nem que fosse minha mãe. — E chegou à rua, ergueu o pregão. Todo o mundo era feliz e sorria. Ninguém reparava nele.

Disseram-lhe depois que a mãe morrera, e a sua vida mudou. Nunca mais foi visto no sítio nem tornou a levar ao velho o Notícias, todas as manhãs. Dormia nas escadas, de manhã vendia os jornais, o resto do dia passava-o nas ruas, sentado pelos bancos das praças, dormitando canalhamente ao sol. E a suavidade de gênio, a doçura "implume dos seus olhos derivaram numa rispidez, numa malícia de garoto. 

Entre os da sua idade começou a ter predomínio; era o das partidas sutis, o que comandava as troças que o bando fazia aos velhos, o que ia gritar nas escadas, o que armava intrigas, desenvolvia contendas, e nos magotes repartia socos e pontapés, no meio da grita e das risadas dos taberneiros. Durante dois anos viveu esta boêmia das ruas, tripudiando no meio ínfimo a sua turbulência e a sua alegria. Às vezes tinha fome: ia pedir nas ruas escuras, com o barrete na mão, a quem passava. E o seu coração sofria todos os maus modos e todas as humilhações, sem rebeldia. Nesta senda privou com os incorrigíveis, conheceu os mendigos, os gatunos e as velhas de capote verde, sem meias, que esmolam nos adros das igrejas, em lamentações dolorosas. Uma vez a polícia entrou numa casa de malta, na véspera de uma parada, e varreu quanto lá achou para a prisão. Os pequenos foram metidos na Casa da Correção e os gatunos no Limoeiro, por contas antigas. Sentiu duramente o cárcere, e sinceramente chorou a vadiagem dos antigos dias, em que o seu pé vivo, forte e ágil, pisara livremente as ruas em corridas ruidosas, em pândegas de boa marca. Na reclusão, os seus dias medidos por ocupações sujeitas a uma tabela e a um horário foram enlutados no tédio e no sentimento da própria inutilidade: levantava-se antes de nascer o sol com os demais companheiros estremunhados, tiritando do frio que ao longo dos corredores se esfuziava cantando; um sino batia horas acima das abóbadas, e o eco ondulava de cela em cela, como o soluço de uma alma penitente, a quem não perdoam; pelas profundas janelas do antigo convento, pedaços de céu faziam manchas lúcidas de espiritualização inefável, em que o olhar dos pupilos se dilatava com grandes tristezas de oprimidos. Caminhavam formados dois a dois para a capela, à oração da manhã. Depois cada um ia para a sua oficina, ou para a aula de estudo. Os rudes prefeitos passavam lúgubres, lívidos e cheios de consumpção, e os seus olhos ferozes corriam sobre as cabeças humildes dos rapazes, curvados sobre os livros ou sobre os trabalhos de oficina. Aos domingos ouviam missa; uma charanga tocava no pátio e os jornais convidavam o público a ir ver o colégio, louvando os desvelos do diretor e proclamando os resultados da instituição beneficente. Ali tomou ele próprio, aprendendo a ter asseio, correção e aprumo; aos dezoito anos o Ferreira tomou-o para aprendiz; era uma pessoa cheia de si própria, estatura avantajada, completamente formada, que passara incorruptível no meio viciado do hospício, resistindo aos vícios mórbidos e fatais da caserna, e salvo, numa palavra, da ociosidade e do desprezo de si mesmo. 

Resolveram encontrar-se, o João e Carolina, todas as noites, à hora em que fechava a oficina; iriam passear, falando dos seus negócios sem temer ditinhos da vizinhança. Ele instara vivamente para que se ligassem; era assim melhor, não sofriam tanto as saudades da ausência e estariam à vontade; e se a coisa tinha que ser, que fosse quanto antes. Carolina lutava um pouco; todos os seus cuidados eram o pai; quando ele chegasse a casa e os visse, que diria? E suplicante, uma meiguice infantil, obrigava João a ceder, com pequeninas carícias voluptuosas e finas. As noites eram frias e escuras, orvalhadas no alto de cintilações de estrelas, arquipélagos de luz num Pacífico lôbrego e sem fim. Reuniam-se a uma certa hora no Largo da Estrela, e de braço dado, estreitamente unidos, com declarações pelintras empoladas de palanfrório sem nexo, diziam um ao outro o seu amor eterno, citando cantigas, pequenos versos de manjerico, procurando a sombra, desviando-se das zonas claras projetadas pelos lampiões, como proscritos cônscios da sua culpa. De ordinário vinham por São Pedro de Alcântara, São Roque, até ao Chiado. Àquela hora as ruas atulhavam-se de gente abafada em capotes felpudos, carruagens cheias de mulheres melancólicas; um largo ruído emergia da luz, da vida e da enorme respiração da cidade, espapando-se nos ares num tom indistinto e abafado. À porta da Havanesa um forte grupo enchia o asfalto; caras em sombra saíam das golas altas; de todos os lados partiam rumores de palestras que, apanhadas de relance, davam a diversidade mais curiosa e frisante; marialvas pálidos e bonitos, altas pernas apertadas em calças prenhes de joelheiras, chupavam cigarros em grupo, provocando as costureiras que recolhiam dos armazéns; militares secos, sonoros de esporas, uma curva de espinha, discutiam às esquinas. À porta da Casa Singer, destacando em sombra a crua luz irradiante do lustre, um cônego forte e barbeado, envolvia-se na sua capa, baixo perfil de javardo estupidamente grave. De um lado e outro, a fileira de transeuntes seguia, gente de todas as castas, mulheres embuçadas em mantas, rapazes débeis e palreiros, velhos dilettanti da ópera que faziam a digestão com charutos fortes; ao trote de grandes parelhas, as famílias iam para São Carlos, recostadas nos cochins dos coupés; e Carolina, invejosa da vida que não vivia e da opulência que a deslumbrava, ia picando as cenas de comentários amargos, um vago rancor de proletária. O João murmurava de vez em quando: 

— Isto é o tom, isto é o tom! — Gente pasmada parava em frente das vitrines do Seixas, admirando oleografias, porcelanas, pequenas esculturas suíças; em frente quase, no Elie Bernard, as amas de toucas de renda apartavam polichinelos, pequenas arcas de Noé, para frescas crianças de banqueiros, aconchegadas de arminhos e louramente ideais. No Leonel, as senhoras de cauda princesse, perfis orgulhosos de marquesas, palidamente altivas, viam cetins da estação, fortes veludos de pregas elétricas, opulência cara. Sentia-se apregoar o Jornal da Noite. Divas de mantilha, marmóreas de riz, elegâncias de figurino, vendiam-se a quem passava com pequenas tosses e psts! Eles atravessavam a multidão, isolados no ruído como estrangeiros. A Rua Nova do Carmo tinha menos gente, menos luz. No fundo do Margotteau, uma luz soturna agonizava sobre estofos amontoados, pilhas e coxins, bancas de jogo marchetadas e brilhos de lustres, pendentes do teto. Sobre o Rossio caía a cúpula tenebrosa da noite, como um assombro legendário; em D. Maria, acima da arcada, pontinhos de gás escreviam espetáculo; em torno da praça rolavam os trens; soldados risonhos saracoteavam-se na penumbra entre os grupos de velhos celibatários; o Martinho estava cheio de estudantes e literatos; e contratadores de senhas, cauteleiros e americanos em marcha faziam um ruído infernal e contíguo, o tohu-bohu das capitais exaltadas pela nevrose da noite. Eles iam seguindo vagarosamente. Fechavam as lojas. Chegavam de ordinário a casa muito tarde. A vizinhança dormia. No relógio da Estrela badalavam quartos, som lúgubre. Passavam a noite amando-se, jurando a si mesmos fidelidades eternas e amores fenomenais, enquanto a vela de sebo posta a um canto, deitava clarões amarelos e um cheiro sufocante de morrão. 

Afinal o João fez conduzir para casa da rapariga o seu baú, os seus arranjos. A vizinhança falou do escândalo, nunca se vira uma pouca-vergonha assim, o mundo estava perdido.

Muitos diziam: 

— Já a comadre bebe! Mas deixa que o pai saberá...

Só a Marcelina achou natural.

— Cada qual governa-se — sentenciava ela.

Os primeiros dias correram-lhe distraidamente, nas espiras de um amor canino e desonesto.

O João aparecia tarde na oficina, cheio de sono e de fadiga. E sofria as meias palavras do Ferreira, a sua grosseira rabugice de velho rigorista, via-o atirar as coisas com mau modo, girar nervosamente por entre os bancos de trabalho com o olhar relampejante através dos óculos. Para o aprendiz, o melhor tempo era o recolher do trabalho, ao cair da noite: ia quase a correr para casa, subia a escada a quatro e quatro; Carolina estava de ordinário costurando, com um casibeque de lã, lenço na cabeça, a face de uma palidez transparente e doce. Ele tomava-lhe delicadamente a cabeça, com as duas mãos; beijavam-se com uma sofreguidão provocante, e toda ela vergava languidamente no peito do aprendiz, sonhando as divagações mais sublimes. Nunca saíam, senão noite feita. Diante de uma mulher, o João experimentava um aconchego tépido, delicioso: com ela, a sua força, a sua forma vigorosa e superior, acobardava-se, quebrantava-se, caía: era então dos sentidos. Não se lembrava de olhar em torno de si, no desleixo da casa, nua, repartida em compartimento baixos e retangulares, sem luz e esfolados nas ombreiras, com laivos de oca barbarescos no rodapé. Pelas paredes encostavam-se móveis antigos e coxos; leitos de ferro, de varais tortos, tinham colchões estripados e cobertores de uma farrapice sórdida; em volta nem um objeto limpo e cuidado, nem uma cor alegre e rutilante, em que a vista pascesse uma satisfação honesta; todas as formas duras e cruas das coisas tinham um desleixo antigo, de anos, e desmantelavam-se como bem lhe parecia. Pelos aspetos, via-se a história de Carolina, a sua orfandade, as ausências do coveiro na desolação das covas, como um desterrado. Na cozinha, a chaminé derruía lambida da fumarada, cheia de terra e tijolos partidos, abrindo como uma goela calcinada e pulverulenta. Teias de aranha, espessas e papudas, faziam prateleiras aos cantos. Num poial úmido e cheio de covas, rimas de pratos sujos, de almoços antigos, estavam para ali de semanas; sobre o peito da janela, uma palmatória de barro tinha um coto de sebo; a miséria enrodilhava-se pelas coisas, numa frialdade canalha e vilíssima, em que se acusava uma existência sem destino, sem direção, sem o exemplo da outra. Nenhum móvel no seu lugar, o lavatório vazio, uma bacia numa cadeira, saias enxovalhadas nos ferros dos leitos e o gato lambendo-se sobre um xale. E à medida que passava o tempo e os dois conviviam, Carolina que, no começo, por pudor, fora um pouco cuidadosa, entrou em entregar tudo ao acaso, para ali, ao deixa-te estar que estás bem. Enquanto só, era ela quem lavava a sua roupa, de mês a mês. Quando o João se ligou com ela, foi impossível continuar aquilo. Eram precisas camisas engomadas, roupas, lenços brancos, quem costurasse, quem cuidasse com amor, sem fadiga, sem mal-estar, todos os pormenores do lar de todas as pequenas necessidades do trajo. Carolina nunca engomara. Foi perguntar à Marcelina como era. A velha deu explicações: que se molhava primeiro a roupa em goma fervida, com um trapinho, e depois se punha a enxugar muito bem, a enxugar... Carolina lavou corajosamente as camisas do aprendiz, mas não ficaram brancas — que birra! E, resignada, aqueceu o ferro, pôs em prática quanto ouvira da velha; mas o ferro tostou-lhe o pano deixando uma nódoa escura e fumegante; ela ficou toda desconsolada, lacrimosa, temendo ralhos, quando o João viesse. Fazia um mês que se tinham visto no arraial. E Carolina, refletindo, comparava os dias à medida que eles se distanciavam do primeiro: as coisas não são algumas vezes o que parecem; nem tudo o que luz é ouro — lá diz o rifão. Era verdade! E entristecia-se. O jantar foi menos animado que os anteriores. O João não tinha vontade, era sempre a mesma coisa... E em conversa disse os seus pratos mais prediletos, em que havia mexilhão, cabeça de porco, refogados. Ela estranhou a palavra. 

— Refogado! — disse sem perceber bem. Olhava o teto. — Refogado! 

— Sim, não sabes? — fez ele admirado daquela ignorância. E pôs-se a dar explicações, a dizer como era. E dali a pouco: 

— Em coisas de cozinha, a modos que sei mais que tu. — E sem mudar de tom: — Diabo! Que te ensinaram então! — Carolina ressentiu-se um pouco. Estiveram distraídos nessa noite; queriam ambos disfarçar, ter excessos, exuberâncias, brincadeiras, pequenas ternuras piegas, mas de repente esqueciam-se e paravam, sem saber porquê, absorvidos. Ele perguntava-lhe: 

— Em que estás pensando? 

Carolina encolhia imperceptivelmente os ombros, um meio sorriso sem expressão.

— Nada. — E ao acaso: — No meu pai. Por que perguntas? — Estiveram assim. Viam-se os seus esforços para entabularem palestra e parecer como nos outros dias, mas um tédio e uma contemplação íntimas dominava-os, atraiçoando-os. 

— Amanhã é domingo — observou Carolina. E com admiração: — Já amanhã é domingo, hem? 

— É verdade — perguntou ele —, tenho roupa? 

Carolina sentiu-se empalidecer. Balbuciou: 
— Tens. — O seu desejo seria aventurar uma explicação, dizer o que sucedera, afiançar a sua boa vontade, pedir perdão da sua simpleza selvagem, mas que vergonha!... Qualquer rapariga engomava, varria, sabia cozinhar, manter limpas as coisas, brancas as ombreiras, sadias de traça as roupas guardadas nas gavetas e nos baús: e só ela, a burra, nada sabia, aquele grande cavalão! Tomou coragem! 

— Olha... — disse, e ficou-se; sentia-se palpitar. 

— Que é? 

Na calada a asma do gato resfolegava. 

— É que eu... — curvava a cabeça com a vista obscurecida de lágrimas. O João ergueu-lhe a cabeça com a mão, tomando-a pelo queixo, com carinho quase.

— Que diabo tens tu, filha? Então! Que diabo quer dizer essa aquela! — E sem obter resposta: — Se tens alguma coisa, Carolina... — E comovido, admirado: — Mas ofendeste-te do que eu disse há pouco? Nem reparei, foi sem tenção de te magoar. — Beijava-a repetidamente, procurando chamá-la a uma tranquilidade conciliadora e a uma justa apreciação de palavras.

— Não vês que te amo tanto, hem? Não vês? Uma pessoa, às vezes, nem repara nas coisas que diz; vês tu?

Ela abafava soluços, com o lenço.

— Não é nada, não é nada: isto é do meu gênio a modos tristonho — dizia ela; que eu bem sei que não sirvo para nada, bem me conheço. Para que serve um diabo assim?... Nada sei fazer, nunca tive quem me ensinasse, pela minha desgraça! Até nem roupa...

O João acudiu logo: 

— Se não está arranjada é o mesmo; lá isso não tem dúvida; não nos havemos de ralar por tão pouco. Ora! Manda-se à engomadeira; alguma vez aprenderás. — E enxugava-lhe as lágrimas. — Sua tola! Agora a choramingar. — E dava-lhe pequeninos beijos, abraços amigos, dispensando-lhe solicitudes paternais. 

— Vale lá apena! — resumia. — Não sabes, acabou-se. Ninguém nasce sabendo, isso é velho. Ninguém te ensinou... não tens culpa; é boa!...

Mas no seu ânimo encrespara-se um mau humor que o ralava, e uma irritação sem alvo fazia-o passear com rapidez, acentuando as passadas no solo. Não saiu no domingo, ficou à janela fumando. Via passar na rua grupos todos asseados, mulheres vermelhas e fortes, cheias de saúde e de alegria. E sem querer punha-se a compará-las com Carolina, tão linfática, tão desleixada e tão pouco limpa. Homens iam de charuto, fumegando com pompa, bengala, suas botas engraxadas, camisa muito branca. 

E ele não tivera camisa lavada, nem gosto para dar o seu giro às hortas ou ao passeio. 

E molestado, roído, retirou-se para dentro, foi estender-se ao comprido na cama. 

— Ai! — suspirou. — A gente sempre faz cada uma! — E ficou-se imóvel, refletindo, com saudades dos tempos em que era livre e tinha camisas lustrosas, todas brancas, cheirando frescamente a sabão. 

Pouco a pouco o aprendiz pôs-se a reparar em tudo, na casa, nos objetos de uso, na cozinha, nas lavagens. Carolina não tinha nenhum desses instintos delicados e espontaneamente artísticos, que são a revelação da mulher; nos seus menores labores era de uma incorreção tosca e de uma rotinice escura. Não varria a casa, ou varria-a mal; nenhum método, nenhuma paciência, nenhum amor em conservar as coisas. O João mandara para casa uma cômoda, cadeiras, um pequeno espelho, duas jarras de louça azul, e ele mesmo tinha disposto tudo, esfregado o solo, as portas, consertado as bancas e o leito, nas horas vagas. Mas dias depois o pó cobria tudo, havia sinais das mãos gordurentas de Carolina nos puxadores das gavetas; a cama estava sempre desmanchada, com o sinal dos corpos. Ele perguntou-lhe uma vez: 

— Que fazes tu, quando eu vou para a oficina? 

— Costuro alguma coisa, durmo. É tão triste!...

— Mas, filha, deves arranjar a casa... — aventurou ele. 

Carolina ficou-se. A sua natureza preguiçosa, habituada aos ócios, quebrava-se de fraquezas, bocejos e espreguiçamentos, só de lembrar-se do trabalho que tinha a fazer. Às vezes lutava, fazia uma grande atividade, mexendo por um canto e por outro, mas vinha a fadiga, o aborrecimento: atirava-se para cima dos colchões.

— Se eu não posso!...

O aprendiz dera-lhe vestidos novos, uma pequena capa de xadrez, mantas, roupa de patente com abertos. E tudo andava pendurado pelas portas, à poeira e aos encontrões, desmazeladamente. Passava horas penteando os seus cabelos ruivos, anelados e finos de lustro macio e espessura abundante, fantasiando penteados, ensaiando laços, cuias arrebitadas, vaidadezinhas de criança. Outras vezes amanhecia preocupada, taciturna, nervosa, salivando pelos cantos; fazia o almoço muito cedo. O João ainda ficava às vezes na cama; ela ia devagarinho olhá-lo; aproximava-se curiosa, absorta no vulto do aprendiz que arfava sob as roupas mornas. E cheia de vertigens, de subitâneas paixões que rebentavam do seu temperamento em espirais de desejos, lançava-se a ele, abraçando-o como doida, fazendo as protestações mais vivas e os amuos mais doces, tentando vendar-se sob uma face nova, inventando mesmo ardores, manias e excêntricos frenesis inexplicáveis. No meio de tudo isto, e afora estes arrulhos, o seu desarranjo era o mesmo; não lhe passava pela cabeça que cativaria o seu homem tornando-lhe o lar alegre, limpo, fresco, fazendo luzir a boa ordem, a boa administração e o decoro nos mais simples pormenores da residência. Fora do pecado mortal, não tinha préstimo, nem imaginação, nem propósito. 

E neste meio o seu corpo desenvolvera-se um pouco; os seios ampliaram-se numa curva graciosa, de contorno quase casto; e esmaltado de palidez mórbida, lasciva e um pouco cismadora, o seu rosto era doce, de uma harmonia dolente, como certas pinturas de virgens mártires que oram em atitudes pias, no fundo das capelas da arte gótica.

Um dia o João achou-a fétida, cheirando a saias velhas; nunca mais lhe saiu esta ideia da mente; entrou a achá-la esquelética e cansada; ao deitar-se fazia um esforço para não parecer saciado, mas os seus beijos eram frios, convencionais, espaçados. Ela reclamava, cobrindo-o da sua paixão como de um cáustico, querendo reapoderar-se de um amor que lhe sentia fugir e padecendo, embalde, ciúmes de todo o mundo. E começou a desconfiar, a seguir o João à oficina, a furtar-lhe as voltas. Nas menores palavras que ele dizia encontrava dois sentidos, o aparente e o oculto, que parecia envolver sempre um sarcasmo, uma ameaça, um insulto. Foi uma luta tremenda; a sós falava alto, altercava consigo mesma, dizia pragas, arquitetando projetos de vingança e planos de sedução.

Havia horas em que a sua vontade era morrer, tomar qualquer corrosivo, precipitar-se da muralha de São Pedro de Alcântara; outras vezes estalava de aflições, contorcia-se em desvairamentos supremos, querendo chorar, soluçar, pôr em evidência a sua sorte. Quando ele vinha, afetava rosto sereno, uma certa despreocupação feliz; mas a sua gana era apertar-lhes as goelas, para que outra o não gozasse. Enquanto o João comia, ela, encostada à porta da cozinha punha-se a fitá-lo do fundo da sua paixão danada, cheia de ideias trágicas. Uma noite agarrou-o pela cintura, os olhos envidraçados: 

— Tinha mesmo vontade de te matar! — disse, sôfrega. O João riu-se olhando-a; mas ficou logo todo sério, abrasado naquela ânsia, e uma corrente galvânica percorria-o, nascida no olhar dela, sequioso e feroz, cheio de gula e de fel. 

Vieram então as pequenas especulações, as pequenas ciladas sujeitas todas a um plano geral de má índole, de reserva e de ciúme — da parte de Carolina. Umas vezes era o jantar que não estava pronto a horas, outras reclamava bugigangas de adorno, fitinhas, meias de riscas escarlates.

O João satisfazia tudo, ouvia tudo, mas era-lhe indiferente esta ou aquela deliberação; tudo achava capaz, assisado, justo.

Já não era o mesmo. Emagrecera nas faces e andava pálido, com os olhos fundos de cansaço. Tinha agora para mirar as mulheres uma atenção persistente, uma fixidez de olhar que as percorria todas, desde os cabelos até aos pés. E muitas vezes na rua voltava-se para trás, seguindo as que lhe passavam perto. As suas predileções eram todas para as roliças, e sentia furores pelas trigueiras, em cujo lábio superior via ensombrar-se a penugenzinha de um boço, donativo de vivacidade de temperamento e escandecências do sangue.

— Mulher que se sinta nas mãos! — notava ele rudemente. 

Esta transição demarcava o homem feito e precocemente liberto das últimas infantilidades, homem com características de apetite, frenesis e vacilações de caráter. 

A cara emborbulhara-se-lhe de barba, tinha-lhe engrossado a voz e acentuava-se um cunho imperioso no seu modo de dizer.

Na oficina, quando de manhã aparecia em algum daqueles desalentos profundos, nascidos da desordem das noites, os colegas riam-se, cobrindo-o de chufas e apoquentando-o com perguntinhas velhacas. Do seu banco, o Ferreira não dava palavra, mas de vez em quando saía-lhe um canto nasal, espaçado por grandes silêncios, que era a sua fórmula de raiva brusca, recalcada por sessenta anos de prudência. Os íntimos porém queriam da boca do João saber por força como tinha sido, se adormecera tarde e se a lua-de-mel continuava. Entre risadas apupavam-no dos bancos de trabalho: 

— É o mês dos gatos, não admira — diziam. 

Ele dava cavaco em ouvindo estes dichotes. Ficara mal com os dois ou três mais atrevidos, jurando que faria alguma ainda. O seu gênio concentrava-se num silêncio reflexivo, quase triste. Era muito exato às horas de trabalho, pacientíssimo aos ralhos da rapariga, vivia pouco em casa, recolhia tarde. Ela uma vez observou-lhe:

— Tu já não és o mesmo rapaz, João! 

— Aí vens com tolices — disse ele. 

Carolina invadia-se de um terror desconhecido, toda entregue a uma desconsolação. 

Uma tarde a Marcelina apareceu: 

— Adeus, filha, adeus. — E notando a cômoda, as cadeiras: — Viva! Isto é que é! isto é que é... Viu-se tafularia maior? — E mirando Carolina: 

— Que senhoraça, que senhoraça! Toda no chefe. A sua espiguilha no casibeque, sua cruz ao pescoço!... Ai! quem tem homem não sabe o que tem. Vejam como tudo está mudado. — E baixo: — Quanto custou cada metro? — Apalpava a fazenda do vestido, esfregando-a, estudando a espessura. E expluiu logo em narrativas, que a mulata tornara para o hospital, e morrera! — Minhas ricas quatro moedas, que fiquei a ver navios. — E azorragando os caloteiros abria a caixa de tartaruga, tomava rapé com os dedos em leque, sorvendo com grande delícia, o olhar piedoso.

— Como te vais dando com ele? — inquiriu passado tempo.

— Bem; então como? É muito bom rapaz, lá isso sempre o direi.

— Bom gênio, hem?

— Bom gênio... — E vencendo uma repugnância, afetando grande franqueza para com a velhona: — Olhe, todos nós temos as nossas coisas, percebe? 

— Está visto, está visto. Que bom só Deus.

Fizeram um silêncio beato. A Marcelina desconfiava já que tinha havido mocada. Interrogou cheia de curiosidade:

— Mas houve alguma coisa? 

— Não. O que havia de haver? Hoje em dia, uma mulher precisa saber de tudo. Eu confesso a verdade: de engomados não sei. Quem é pobre não usa certas coisas.

— Nisso foi eu sempre com a primeira. Não é por me gabar. Que engomo encanudados ainda hoje, como poucas. — E explícita: — E que é uma das coisas mais custosas de fazer, o engomado!... Só o polimento!...

— É verdade, é verdade — dizia Carolina.

— Mas o quê? Ele disse alguma piada por isso? 

— Estranhou. Ele nunca se zanga. — Armava no rosto uma soberania indomável. — Zangar-se? Oh!... tenho-o aqui fechado — e estendia o punho — mas...

— Ora diz a verdade: tu queres contar-me alguma. C'os diabos! Bem sabes como eu sou. Fala à vontade. Se eu te puder valer... p'rás amigas estou às ardes. 

— Olhe, é verdade. O João, nos primeiros dias, eram excessos que nem eu sei. Andávamos sempre aos abraços, às festinhas, nunca nos separávamos. Mas há uns dias que o vejo apoquentado, metido consigo; come e vai-se com Deus; hoje não gostou do jantar; passa as noites fora, recolhe-se altas horas; a minha desgraça!

A velha pasmava. 

— Pois olha, fartou-se cedo, o melro. Então será de má boca? Mas não desconfias de nada? Não lhe deste tu motivo?

— Que eu saiba não. Talvez se aborreça por eu não saber bem governar a casa. Sempre disse: nunca Deus me dará fortuna em coisa nenhuma! 

A Marcelina refletia. E dali a pouco: 

— Queres tu experimentar as cartas? A ver o que dizem. — Carolina estremeceu. 

— Credo! Tenho medo. — E mais baixo: — Dizem que aparece o diabo!... 

Ficaram caladas. E depois. 

— A mim ninguém me tira da cabeça que o João anda de olho com alguma gaja!

Puseram-se a falar no tempo. Marcelina ergueu-se para sair. 

— Se ele te não quiser, filha, não morrerás de fome por isso. Graças a Deus, enquanto houver homens, qualquer mulher se governa. Tive muito disso, tive. Ai!... Tomara-me nesse tempo! 

Desceu a escada. À porta observou, piscando maganamente o olho: 

— Não fui das que gozei menos, não. Que até condes beijaram este palminho de cara. Ai! Bom tempo! — E serviçal: — eu indagarei, eu indagarei a coisa. 

A rapariga não dormiu nessa noite. Ergueu-se ainda lusco-fusco, cabeça pesada, uma fadiga enorme nos ombros. Sentia que a sua vida oscilava na notícia que a Marcelina trouxesse, como num fulcro de aço uma agulha magnética. Ao meio-dia, de feito, a velha voltou, olho arregalado, agilidade de alcoviteira no andar, rebolando-se, com as barbicas assanhadas.

— Sabes tu, sabes tu? Vai todas as noites ao Moinho de Vento palestrar com uma sirigaita do primeiro andar, mesmo à esquina do pátio, por cima da loja de louça. Está ali horas ao relento, a tomar gargarejos: só uma carga de pau!

— Por isso ele vem tarde!...

— Vejam as habilidades do Santo Antoninho de quinta, hem? Aí está para que ele se empenhou tanto comigo, para chegar à tua fala; vês tu? — Atafulhava as ventas de simonte. Carolina ficara morta de surpresa, de terrores, e desesperação.

— A minha desgraça! — repetia. — A minha desgraça!... 

— Quem me contou tudo foi a Matildes, uma que engoma para fora; eu estava mesmo parvinha de todo, nem o queria crer, vê tu lá. A gente vê caras, não vê corações: é certo. E para mais é todo amigalhaço do irmão da dita pessoa; andam sempre de súcia, grandes chalaças, sim senhor; franquezas de tabaco; para onde quer que vão, vá de vinhaça, comes e bebes, com toda a grandeza! Ai! hoje presentemente, minha rica, nem uma criatura sabe para o que está guardada. Algum dia, em acontecendo uma destas, parece que até ia tudo raso. Havia justiças, muita obediência; então com quem brincavam eles?

Hoje... Eu até fiquei sem vontade de comer; tarrenego! e depois veio-me a dor. — Dava um estalo com a língua. — Mas deixa estar que to cantarei. 

Carolina nem ouvia. 

— E agora? — disse ela com um gemido, atirando-se com uma grande angústia sobre os colchões, miserável na sua deceção.

A Marcelina tentava fazê-la sentar, compondo um rosto compungido. E dizia a espaços:

—Ó filha, pelo amor de Deus! Isso não é agora morte de homem. Há muitos modos de governo. Estávamos servidas se fôssemos agora a morrer por todos os malandros que se raspam, em nos apanhando. 

E, como achando o modo de tudo resolver, enquanto a outra chorava: 

— Olha, podes-te empregar na fábrica, dois tostões por dia: leva-se lanche. — E muito baixo: — Para quem quer reinar, nada melhor. — Piscava o olho: — Percebes, percebes? — E desenvolvia projetos, propunha expedientes. 

— Encontras logo arranjo; nas fábricas então é como passastes. Conheço lá muitas que andam ali mais estimadas, que eu sei; elas bem vestidas, bem doiradas, arranjo de seu, ali o jantarinho de carne todos os dias... 

— Gente sem vergonha! — comentou Carolina, com voz cantada pelo pranto.

— Ora, histórias, filha, histórias! — E sentenciosa: — Que nisto de vergonha, cada qual toma da que gosta. Em se evitando falas do povo, deixa andar. Dois dias que a gente anda por cá... — E generalizando a doutrina que pregara: — Se vamos assim, então não há ninguém de vergonha no mundo. — Carolina abanava a cabeça. A velha, com ademanes de mestra, cuspia-lhe no ânimo a sua piedade de estafermo. 

— Ainda estás muito verde, minha rica! — dizia. 

Caíram em silêncio. Às vezes soluços fundos estrangulavam a garganta da rapariga?

— E eu que cri em tudo! — lamentava ela. 

— E não querer ver? Eu iria pôr a mão nos livros sagrados. 

Mão me salve, se julguei que sucederia isto. — E com voz cantada: — Vamos nós agora ver o fio da meada. Como diabo sairá ele desta? 

— Como sairá? Casando com a outra. Vejam como. Lá tem o irmão que a defenda. Só eu não tive quem me aconselhasse. — E desfazia-se num choro íntimo, dizendo a sua infelicidade. — Morre quem faz falta, só Deus me não chama pra si...

Havia tempo que homens altercavam na rua, entre sons de guitarra. De repente, uma voz avinhada disse um fado choroso, em que se despediam almas e se davam facadas, em verso. Rameiras de grandes caudas de goma riam com estrépito, dizendo doçuras roucas, de uma vadiagem canalha. Carolina gemera: 

— Ai vida, vida! Só aquelas nunca estão tristes! 

A velha tinha-se erguido, interessada na algazarra da rua, curiosa de espreitar a pândega como um antigo comensal expulso. A voz dizia: 

Pobres donzelas honradas. 
Quanto de vós tenho dó!...

Carolina, de cabeça um pouco erguida, tinha ficado a escutar; toda a gente ria quando ela chorava!... Em que coração acharia interesse? — E via de pé a sua desdita envolta em fumos negros, olhá-la cheia de rancor inquebrantável. Queria recordar-se da sua meninice, como quem se refugia, mas diante dela desfilavam recordações lúgubres, surgiam grupos de mortos, filas de ciprestes, um coveiro encanecido que erguia a enxada, cantando. 

Não tinha a menor ideia do que fosse ter mãe ou ter amigos. No seu contato com a gente, entrevira apenas o tenebroso fundo da bestialidade que referve em cada homem, com um fragor de luxúria cruel. Vivera sempre em si própria, sem a reminiscência de um carinho que alma piedosa lhe houvesse prodigalizado. Quantos beijos deixara roubar aos moços do cemitério e quantas palavras tinha merecido aos gatos-pingados, todas vinham ervadas da mesma ideia e o mesmo intento. E assim crescera naquela incultura de espírito sem guia, sentindo dentro avigorentar-se-lhe apenas uma tendência — a de cadela fértil, que vai entregar-se. Através da sensação rudemente nascida olhara o mundo, esfaimada e torpe como se fora um verme descomunal das sepulturas, incapaz, pelos desolados cenários que tinha contemplado nos seus dias de criança, de dar acesso na sua alma às multíplices emoções e suscetibilidades histéricas, que fazem da mulher o precioso receptor das coisas mais sutis que a língua não exprime e os olhos mal sabem formular. 

Tinha-se dado ao primeiro que chegara, e sem receios de pudor. Fora a Marcelina a causa de tudo. Para que lhe viera contar de padres babosos e varinas amancebadas? 

E detida, cônscia de um desalento mortal, sentia na penumbra os olhos de Marcelina caídos sobre a sua cabeça com um brilho fatídico. Fora, riam com estrépito no meio de disputas sórdidas. A velha tomou-lhe a mão, aproximaram-se ambas da janela. 

— Queres um conselho mesmo cá de dentro, queres?

— Que é? — fez a rapariga. 

A outra estendeu o braço na direção das janelas de tabuinhas, e o seu dedo engelhado apontou as cabeças de altos penteados que destacavam com relevo negro no tom vermelho dos quartos iluminados da casa caraira.

— Olha — disse ela. E com gesto de quem se impõe, de quem se mete por uma pessoa dentro: — Lembra-te do que te digo hoje. — A sua voz insistia, escolhendo os tons persuasivos, doces, sinceros, e ao mesmo tempo as suas palavras discretas, ditas no fundo de um segredo, vinham com uma intenção pérfida, cheia de depravação. Carolina ficou hirta perante aquelas insinuações, olhando com os seus olhos cheios de febre a cara franzida, esperta, dessa megera que dominara o seu destino impelindo-a na perdição e apontando-lhe como um fim lógico, consequente e feliz. Grandes desvairamentos pulavam-lhe no crânio, exagerando-lhe os sons, tornando-lhe as figuras sarcásticas e as sombras lúgubres. E as fontes pulavam-lhe, como molas premidas que reagem; e o seu espírito dilacerado de aflições saturava-se de alguma coisa estranha, como o indiferentismo ou a idiotice. 

Nessa noite o João entrou a desoras; cambaleava de bêbedo, cantarolando todo cheio de terra, como quem tivesse caído pelas ruas, à porta das tabernas. Ela viu-o chegar sem se mostrar surpresa, como quem esperava mais. Mas disse, ao meter-se na cama, estas palavras sem nexo: 

— A fábrica...

E com um movimento imperceptível de lábios: 

— O colégio... 

E ficou a pensar, imóvel, com os olhos fitos na luz.

Estas duas palavras representaram dali em diante o seu destino, guiaram-na por um caminho espinhoso que sonhara ridente, em horas de contemplação e plenitude.

Ao João era manifesto o tédio daquela vida e o mal-estar daquela união. Pouco a pouco, com transições insensíveis, as palavras dele adquiriam notas ásperas, grandes frenesis inesperados, uma taciturnidade crescente, moedora e constante. Ela experimentava pelo seu turno uma altivez ferida e rebelde de mulher espezinhada e esquecida por outra; em certos dias estrangulava de raivas surdas, em que resfolegava, a espaços, a ânsia de humilhar, infamar, perder alguém; fazia árias estrondosas pela casa fora, garganteando pelintramente como no teatro; mas a noite vinha gradual; ficava logo invadida mortalmente de uma grande tristeza, de uma inexplicável passibilidade indiferente ao estímulo, dominada de pressentimentos e arquitetando toda trêmula futuros famintos, esfarrapados e enfermos. Não passava uma tarde sem ver a Marcelina; juntas parolavam durante horas, desenrolando planos misteriosos e discutindo futuros. A velha revelava pormenores do ofício, as sutilezas de que lançam mãos certas mulheres, o segredo de provocar, chamar, sorrir, andar na rua, mostrar as riquezas do busto, conservar a face rosada, mesmo depois de uma noite de orgia. Carolina reagia com monossílabos apenas, a esta insinuação torpe; mas abandonada pelo João, a falar a verdade, que faria? Foi assim que ela determinou entrar na fábrica, em Alcântara. O João não opôs resistência; via o meio de afastar aquela rapariga importuna que o estorvava nos seus projetos, nos seus namoros. Ia todas as manhãs muito cedo, com o seu passo miúdo e rápido, saracoteada e risonha, com a sua manta de borlas, uma capa de escocês verde, saia de folhos, o lanche num cabazinho da Ilha. No caminho encontrava as companheiras, moças alegres e desembaraçadas, cheias de risos, largando chalaças de mordacidade equívoca. E iam todas por ali fora. Os merceeiros dirigiam-lhes afagos pérfidos, apupavam-nas os galegos sujos, os estudantes e os soldados. Que pândega! Respondiam a tudo com grandes risadas bêbedas. Uma então, a Jerônima, trigueira, a face picada de bexigas, até dava encontrões nos polícias, piscando os olhos: e todas se divertiam a valer. À entrada da fábrica, os operários davam-lhes abraços, com grande intimidade; tratavam-se todos por tu, como uma algazarra incorrigível, até que o fiscal, de barba branca, o seu casacão amarelo, um cachimbo preto de nogueira, abria as portas da oficina. No corredor, os operários dividiam-se em turmas; uns iam para o empalamento dos cigarros; outros iam picar o tabaco; alguns cortavam rótulos para as caixas de charutos. Se o burburinho crescia em torno das longas mesas de trabalho, o fiscal erguia a voz: 

— Nada de algazarra! Parece que estamos nalguma feira! — E todos falavam baixo, contando histórias pagãs de gente sem vergonha, de uma sordidez de viela. Sem grande esforço Carolina aceitou estes hábitos que se lhe afiguravam de uma naturalidade legítima, tão sincera e tão cômoda. Afeiçoara-se à Jerônima, participando das suas opiniões, dos seus ditos, da sua fama. Ao escurecer o fiscal dizia, dando uma grande palmada na mesa: 

— Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo! — E todos largavam o trabalho, tomavam os seus chapéus, os seus xales, os seus capotes; na escuridão do corredor estalavam beijos, pares canalhas escorregavam nas escadas, havia gritos e a chusma em tumulto, numa desordem vadia, atulhava rapidamente o pátio, combinando ceias, encontros, relações impuras. Foi a vida melhor que Carolina viveu. Aquela grande liberdade infiltrara-lhe uma alegria espontânea, uma grande destreza, um vigor manifesto. Ganhava dinheiro, além disso; caída nas graças do fiscal, obtinha sempre uma féria bem favorecida, sua gorjeta para alfinetes. Teve a partir daqui, pelo menos, uma dúzia de amantes, amantes de uma semana, de um dia, preferidos à noite, esquecidos no dia seguinte, e concorrendo todos para a sustentação de um luxo que pouco a pouco se ia manifestando em Carolina. Um domingo apareceu em casa da alcoviteira, toda penteada à moda, com um chapelinho de fitas verdes, um casaco bordado de contas, meia de riscas, leque... A velha discutia com duas raparigas o preço de um vestido de fazenda, que mostrava com largos elogios. 

— É um ovo por um real, minha rica — dizia. — Um vestido como novo! 

— Mas seis mil réis é muito bom dinheiro, santinha!

— Pois olhem que da peça é o triplo do custo. Agora façam lá o que quiserem. — E voltada para Carolina:

— Viva o luxo! Viva o luxo! Vais observando que eu tinha razão no que dizia. — E com insistência: — Tendo tino não há coisa melhor, meu anjo. — E baixo, tomando-a de parte: — E ele? 

Carolina encolheu os ombros desdenhosa, um ar de desprezo. A velha disse-lhe ao ouvido: 

— Quem paga a renda da casa? 

— Meu pai. Há dois meses que o não vejo, por tal sinal. 

— Pois filha, se o João não te serve para nada, que se ponha ao fresco, quanto antes. Primeiro teu governo.

— Sim, sim — disse ela pensativa. 

E, dirigida pela alcoviteira, começou a viver só. 

Desde esse dia, as aventuras vieram-lhe por centenas. Conheceu todas as espécies de homens a quem se impingia às horas, por baixo preço. As gengivas tinham-se-lhe descarnado, pintava os beiços com carmim e para o giro da noite cobria-se toda de pó-de-arroz. Forçava-a a profissão a peque-nos sacrifícios, no intento de agradar aos que a buscavam. Comprimia os pés em sapatinhos altos, golpeados no peito para deixar ver a meia de cores.

Apertava a cintura e os flancos com espartilhos que a estrangulavam em duas metades, deixando-lhe o tórax afunilado e hirto, o fígado opresso e a respiração entrecortada. À hora dos teatros, quando nas ruas da cidade baixa fervilha inquieta a multidão dos que digerem, e giram buscando par os velhos viciosos e os rapazes definhados, ela descia do seu bairro obreiro mais Jerônima, paramentadas ambas de arrebiques pelintras — à pingadeira, como lhe chamavam. Tinham horror à polícia, procuravam as sombras da rua chegadas uma à outra, e olhando quem ia com o riso postiço das rameiras de profissão. A espaços, automaticamente quase, segredavam aos homens amabilidades sórdidas desenrolando toda a gíria do ofício. 

E ao pararem para apertar as mãos dos cocheiros e dos trolhas circunvagavam a vista de um modo inquieto a ver se — andava algum.

As noites assim passeadas até desoras fatigavam-nas de morte. De manhã nem se podiam mexer, uma paralisia de músculos, as articulações endurecidas, um travor na boca saburrosa, das más digestões desordenadas. Sucedia por vezes amanhecer-lhes pelas escadas no outro extremo da cidade, ou nas hospedeiras de má nota onde vão anichar-se as últimas escoriações da torpeza. Expulsavam-nas então com o nojo que nasce da saciedade, escada abaixo, sem lhes pagarem muitas vezes.

Se retrucavam, era sempre a mesma ameaça que as ia fazer calar — a polícia e o livrete. Aquelas duas palavras punham-lhes baques nas fontes, suores de rins e um calafrio mortal pelo dorso. 

Na rua, os dichotes dos vendilhões e dos galegos cuspiam-lhes na face obscenidades de tremer. Riam-se, retrucando algumas vezes. Mas a humilhação era frisante e seguiam sempre sob o terror da chacota ou da prisão. A indolência de Carolina era agora mais refinada que nunca, deixou de ir à fábrica, passava os dias na enxerga da pocilga, dormitando. 

E de uma vez teve fome, sábado por sinal. Contraíra já os últimos vícios suplementares da devassidão, fumava, bebia, e nas tavernas, em estando bêbeda, punha-se a dizer com voz rouca fados ignóbeis, no meio dos cocheiros excitados e ao som dorido da guitarra.

Os velhos apeteciam-na de preferência, pelo seu ar moço e pelos seus cabelos ruivos. Havia um coronel reformado que lhe dava dinheiro para sapatos catitas. Era um velho gordo, de óculos, todo grave na sua sobrecasaca preta. Gostava delas bem calçadinhas, meia esticada, e começava sempre pelo pé, acariciando-o de diminutivos ternos.

Era o seu melhor amigo, aquele senhor tolerante, e de uma vez desaparecera. Vieram os maus dias então, a polícia vigiava as casas de má nota, e prendera a Jerônima uma noite...

Carolina lembrou-se de voltar à fábrica. Sentia-se doente, fatigada daquela vida de acaso que lhe não tinha dado senão fomes, maus tratos e terrores. Mas encontrou já ocupado o lugar que deixara na oficina. Quando descia ao pátio, deu com o fiscal, que se pôs a olhar para ela muito tempo. E dali a nada lhe disse, voltando a cabeça:

— Como você anda já... 

Aquela comiseração afligiu-a cruelmente, e chorou todo o dia, mirando no espelho a cara chupada e amarela, onde entre círculos roxos luziam dois olhos febris. Dias depois, a polícia, que a espreitava, conseguiu surpreendê-la em flagrante, é dali a nada era inscrita no livro de cinco mil nomes, uma das glórias, já hoje, desta florescente cidade que passa os seus dias enchendo de moeda falsa os Brasis, e servindo óleo de bacalhau ao melhor de cem mil tuberculosos. 

Datam daqui todos os episódios da existência que teve o seu epílogo há três dias, numa das camas da enfermeira de Santa Ana, no Desterro. Foi o tio Farrusco quem cobriu de terra, sem comoção nem saudade, o corpo, espedaçado pelo seu escalpelo, da rapariga corroída de podridões sinistras, abandonada do berço ao túmulo, e pasto unicamente de desejos infames e de desvairamentos vis. Tenho sobre a minha banca neste momento a sua caveira fria, limpa de películas e cartilagens, branca e escarninha, cujas maxilas escancaram diante de mim, numa careta trágica, a sua concavidade cheia de sombra. Este despojo inerte, rendilhado e esponjoso pelos estragos do hidrargírio, embalde interroga a meditação que me abisma, sobre as causas prováveis da grande desmoralização atual.

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