A Pátria
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
O pai, velho soldado que a vida das guerras alquebrara, gostava de lembrar, à noite, quando toda família se reunia na sala de jantar em roda da grande mesa antiga, os episódios das campanhas que vira.
A mulher não ouvia com prazer aquelas
histórias de cargas de cavalaria, de emboscadas, de assaltos, tão cheias de
sangue e de horror. Quando o velho recordava aquele tempo, com os cotovelos na
mesa e o cigarro no canto da boa, — ela revivia a angústia dos dias passados na
solidão, sem notícias do marido que lá andava no Paraguai. Via toda a agonia
daqueles seis anos de sobressalto e choro, daquelas noites em que não podia
dormir sem ver em sonhos o marido estendido, retalhado de golpes, numa poça de
sangue, sem confissão e sem um carinho, entre os montões de cadáveres, sobre os
quais passavam, sem respeito, as patas dos cavalos, no ardor da batalha.
Lembrava-se da ansiedade e do medo com que esperava o correio, naquelas
amaldiçoadas tardes de desespero. Quando não vinham cartas, logo a sua alma
adivinhava desgraças. Imaginava o marido prisioneiro, entre os paraguaios,
sofrendo tratos duros, chorando lágrimas de vergonha e de raiva. Quando o
carteiro lhe entregava um envelope fechado, — quantos minutos ficava ela a
mirar e a revolver nas mãos aquele pedaço de papel que vinha do querido
ausente, e que tinha recebido os seus beijos e as suas lágrimas de saudade!
Por fim abria a carta. A princípio não
podia ler.
As letras se baralhavam, atrapalhadas.
Tremia-lhe nos dedos o papel. Tinha de repousar um pouco: e, quando conseguia
terminar a leitura, ficava abatida e sem consolo diante daquelas notícias que
não variavam nunca. Era sempre a mesma coisa: não se sabia quando acabaria a
guerra; mas Deus velava por ele; era preciso assegurar, conquistando um bom
posto, um futuro feliz para os filhos; além disso a Pátria estava acima de
tudo...
Ela amarrotava a carta... a Pátria! Que
era a Pátria, para valer mais do que ela, mais do que aquelas duas crianças,
que dormiam ali, estreitamente unidas, num só berço pequeno, — pobres inocentes
que talvez a essa mesma hora já estivessem sem pai? Ia então contemplar os
filhos, e ali ficava chorando, horas inteiras...
Quando o pai voltou da guerra, vinha
major. Fora ferido. Perdera uma perna. A mulher abençoou essa desgraça. Ao
menos, assim mutilado, ficava ele posto à margem, dispensado de voltar à mesma
existência de perigos e canseiras. Podiam viver modestamente com seu soldo.
Qualquer outro trabalho leve de que se pudesse encarregar, dar-lhe-ia o
suficiente para educar os filhos. Carlos, o mais velho, preparar-se-ia para
qualquer profissão honrosa e tranquila (nunca a profissão do pai): — e Alice, a
mais moça, casaria, seria feliz... e a boa mãe já sorria, prevendo para sua
velhice essa felicidade absoluta: toda família reunida, calma e livre de
desgostos, numa vida sem luxos mas sem privações...
Agora, porém, quando o velho major,
durante os serões domésticos, começava a contar os seus episódios de campanha,
a mulher estremecia. Recordava-se dos sofrimentos passados, e ansiosamente
olhava o filho, Carlos, já mocinho de anos, que escutava o pai, abrindo muito
os olhos, em que o prazer de ouvir aquelas façanhas acendia um brilho de febre.
O velho falava. Contava como, um dia,
surpreendidos por mais de cem paraguaios em uma emboscada, ele e mais dezenove
brasileiros se tinham defendido como leões, conseguindo, por um milagre de
intrepidez e de calma, destroçar os inimigos. No entusiasmo da narração, o
velho transfigurava-se. O seu braço, estendido no ar, indicava os golpes de
espada. A sua voz imitava, ora o ruído contínuo e seco da fuzilaria, ora o
estrondo rouco dos canhoneiros. Diante dele, Carlos, também transfigurado,
bebia as suas palavras, com inveja, respirando a custo, agitando-se na cadeira.
Alice, que tinha então dez anos, admirava o pai e o irmão: e os seus olhos
espantados, dilatados pelo medo que lhe faziam essas coisas de guerra, iam do
velho ao menino e do menino ao velho. E a mãe quase rebentava em soluços, vendo
a alegria do filho.
Era aquele, há muito tempo, o seu maior
receio... Pobre mãe! Desde o tempo em que, o pequenino, Carlos, como as outras
crianças, apenas devia pensar em bonecos, — o menino manifestava uma grande
predileção pelas coisas da vida militar.
Ficava horas inteiras contemplando as
fardas do pai: e, à noite, deixando de estudar, fechando sobre a mesa as suas
gramáticas e os seus dicionários, era ele o primeiro a pedir ao velho mais uma
daquelas narrações que o embriagavam. Às vezes ia a mãe surpreendê-lo, na sala
de visitas, extasiado diante do pequeno armário envidraçado, onde o major
guardava as relíquias de sua glória: a espada, as dragonas, as medalhas de
outro e bronze, as condecorações esmaltadas, e, entre esses atestados da sua
coragem, a bala que lhe atravessara a perna, no combate de Humaitá.
Quando foi preciso escolher uma
carreira, Carlos, sem hesitação, declarou que queria ir para a Escola Militar.
O velho exultou. A mulher, resignada, não teve protesto.
Os anos correram. Alice, já moça, casou
com um militar. E a boa senhora viu assim toda sua família submetida àquela
existência que odiava.
Uma noite, conversavam os dois velhos,
sós, naquela mesma sala de jantar em que tinham feito explosão os primeiros
entusiasmos de Carlos. Falavam do filho. — Não te aflijas, mulher! — dizia o
major. — Hoje, anda tudo em paz. O Brasil nunca mais terá guerras: isto é uma
geração de molengas. Que perigo corre o nosso rapaz? Formar-se-á em engenharia
militar, terá bons empregos, e morrerá de velhice. Não te aflijas, que o Brasil
nunca mais terá guerras!
Neste momento, bateram à porta. Vinham
dizer à família que Carlos morrera, vítima de um desastre, na Escola.
Experimentava uma espingarda. Puxou o gatilho, julgando que a arma estivesse
descarregada. Havia dentro uma bala, que lhe varou o peito.
O major sobreviveu pouco a esse
desastre. Morreu um ano depois. E a viúva concentrou toda a sua afeição num
neto, filho de Alice. E um dia, vendo esse pequenino brincar, fingindo de
soldado, com uma barretina de papel e uma espada de pau, a velha murmurou:
— Também este ama a vida de soldado!...
Será o que Deus quiser!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...