A paixão
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Daquela
varanda ela assistia perfeitamente às cerimônias. É verdade que ali, por ser
mui alto, sentia-se toda aquela calidez incômoda todos aqueles eflúvios do
corpo humano viciando o ar e subindo invisivelmente a enrubescer-lhe a tez e a
perseguir-lhe o nariguinho afilado; mas por isso o mesmo estava constantemente
a agitar o seu grande leque de seda, que afastava-se e aproximava-se do seu
coração como uma enorme borboleta negra.
Havia
claridade pouca, suficiente porém para o livro da semana santa poder
espelhar-se no olhar calmo e profundo e inocente, as carreirinhas de tipos
muito negrinhos no papel branco.
Todavia,
a falar verdade, aquelas palavras não podiam despertar-lhe ideia alguma, visto
como em um só peito não se podem abrigar dois amores ao mesmo tempo, pela lei
física da impenetrabilidade.
E
assim, descansava o olhar, que era o veículo por onde o seu espírito mais se
impressionava, percorrendo vagamente o grande todo do templo. Tudo era vendado.
A
vidraçaria pintada do coro impregnava de palor os lados do imenso vulto escuro
do órgão. Os cantores, de preto, arrumavam-se entre os fiéis que invadiam o
recinto a eles reservado, e nem o pavilhão do oficlide brilhava com o seu reflexo de arame.
De
um lado, ali no coro, muito no sombrio, aglomeravam-se em ordem as educandas
do colégio, e via-se o chapéu das irmãs de caridade, como grandes aves que
querem voar. A ordem superior de varandas, bilateralmente, estava repleta; e a
inferior, com os seus balaústres brancos e o seu coreto de linhas de cadeiras
ascendentes.
Era
como num teatro em que houvesse enchente à cunha.
As
grossas colunas da nave pareciam caçapar-se ao peso das paredes altíssimas.
Grandes
véus negros encobriam as duas capelas colaterais. Nas aras ardiam velas de cera
de um amarelo sombrio e cru, em castiçais pretos, e cada nicho estava
transformado numa janela escura.
O
doirado das obras de talha destacava-se apenas, bordando o custoso
emolduramento dos altares, como uns longínquos luzimentos mundanos.
Lá
dentro da capela-mor as janelas de varandas auribrancas estavam penumbreadas.
Do enorme pano que tocava no teto e erguia-se ao fundo do templo sentia-se
baforar toda aquela escuridão que se equilibrava no ar, e dilatava-se por
todos os cantos. O mármore róseo do arco da capela-mor abria um íris sobre
aquela nuvem negra; e lá no tapete multicolorido, os padres, uns de batina e
sobrepeliz de rendas, outros de alva e casulas cor do sol, diziam segredos em
voz alta, ora paravam, ora iam, ora vinham, ora assentavam, misteriosos,
vagarosamente, lendo em grandes livros, queimando incenso, e soltando para o
espaço, como aves negras, umas após outras, as notas tristes do cantochão. A
fumaçinha como prateada do incenso perdia-se logo.
Algumas
vezes punham a mitra, depois de beijá-la, sobre a fronte encanecida do
diocesano, e este levantava-se com o seu rico cajado de ouro. Aparecia, às
vezes, com o seu roquete de finíssimo bordado, com a batina roxa, e a sua murça
que lhe dava uns ares reverentes, e o grosso trancelim com a cruz cravejada
caindo sobre o peito e o seu anel de esposo da igreja; às vezes com pesadas
capas de rei, com púrpura e arminhos; às vezes com a longa santidade das
vestimentas pontifícias.
Mas
o sentimento dos fiéis não estava geralmente para esse recinto dos sanctus sanctorum, para o simbólico
erudito das cerimônias, para a piedade do ato. Dentre aquela multidão a mais
não poder, com o espírito lia-se os espíritos na direção ou no vago das
pupilas, na atitude dos ouvidos, nos lábios em sorriso, em conversação, ou em
recolhimento, na fronte, no porte, no todo compungido ou disfarçado, religioso
ou mundano.
Da
capela do Sacramento ouvia-se o bater de um martelo, ensurdecido, acolchoado
e, de quando em vez, a rangedeira abafada de uns passos cautelosos.
Naturalmente, preparos de novas cerimônias.
Grunhiam
os pesados gonzos de uma larga porta sumida num dos corredores, entrando ou
saindo alguém, e um jato de claridade franca e diurna despejava-se pela igreja.
Depois voltava o escuro.
Nas
altíssimas janelas da nave, que dão para cima dos telhados, o dia salpicava
apenas pela fímbria dos tristes véus pretos, e ornava de estrelas os
buraquinhos do pano. Pedacinhos de claridade caíam esfarinhados na parede. O
órgão às vezes mugia, às vezes balava ou soluçava e gemia, acompanhado pelo
violoncelo, pelo oficlide, pela flauta e pelo delgado violino penetrante sob o
grosso esvoaçar das vozes dos cantores.
Era
uma provocação desabrida para as lágrimas.
E,
enfim, no púlpito suspenso na parede, cujo caiamento parecia repassado do
esfuminho, apareceu o padre, um rapaz gordo, alvo, risonho, fazendo muito por
tornar-se carrancudo, com as largas mangas de seu roquete caindo sobre a toalha
que arrodeava o corpo da tribuna.
Virou-se
para o santuário e persignou-se largamente.
E,
depois, com as duas mãos nas bordas do púlpito, debruçando-se para o auditório,
começou, alto e pausado e vibrante:
— Et
inclinato capite... tradidit spiritum!...
E
toda aquela multidão distribuída e apinhada pelos corredores, pelas varandas,
pelo coro, pelo corpo da igreja, pelo pé dos altares, por todos os cantos,
prestou olhos e ouvidos.
O
pregador se destacava bem. Um pouco acima de seus cabelos crespos ficava o alto
da porta, ornado de um frontão que despedia uma auréola, como um sol
desabrolhando. O corpo da tribuna findava em uma maçaneta, para baixo, como um
cacho de uvas de ouro atado à ponta de uma cortina. E todos olhavam para cima,
e o padre continuava na placidez da sagrada eloquência.
De
quando em vez saía-lhe como um raio trêmulo, como uma faísca elétrica entre os
rebordos das nuvens aclarados e escurecidos momentaneamente.
E
prosseguia a chuva abundante da palavra de Deus.
Como
a terra ensopa com o inverno e faz nascerem as sementes no agreste, assim as
almas estremunhavam, acordavam e, metidas no sombrio, na luz coada, no morno,
despertavam da carne pecaminosa e esterilizada...
Em
dado momento, apareceu nas mãos do pregador uma tela pendurada, um lençol
branco e nele estampada a imagem de um homem despido, com uma toalha nos rins.
E,
em lágrimas, num trêmulo crescente, a mão vacilante, cheio de dor, o padre
murmurava choroso:
—
"Ei-lo, ei-lo, o vosso pai, o vosso amigo, o vosso irmão, o vosso Jesus...
ei-lo... assim maltratado, assim golpeado... Esta cabeça cheia de ciência,
rasgada por uma coroa de espinhos; este coração fonte do amor, atravessado por
uma lança; estes joelhos, que só se dobraram para levantar os mortos e curar os
enfermos, descarnados até os ossos; estas mãos repassadas de divino eflúvio,
esmagadas barbaramente por duros cravos; estes pés, que palmilharam sobre as
ondas, conjuntamente arrepelados e arrebentados por um cravo dilacerante;
estes ombros... estes ombros, vede-os cristãos, vede-os, como ficaram no peso
da cruz... vede-os..."
E
a mor parte dos fiéis soluçava... Já não se via aquele contínuo e embastido
movimento de leques pela superfície da multidão. Ouvia-se um guincho de uma
mulher nervosa e o assoar do bendito muco do choro santo...
Sentia-se
uma consternação inexprimível.
Eu
ajoelhava prostrado ante a divina figura do Mestre e o meu olhar
trespassava-lhe também o coração fonte do amor. Mísero pecador, sumido na
multidão, quisera que me visse, que soubesse que eu lhe quero bem. E parecia-me
de seu peito cair o sangue tão puro e verdadeiramente como caiu no Calvário. Eu
tinha vontades de lhe gritar — Eu te amo porque tu sofres!
Entretanto,
senti que no coração dele também outro olhar estava abrigado, e que o meu
espírito, que lá estava, pergunta: — Que quereis? E quase o outro olhar me
pergunta o mesmo.
Inquirimo-nos,
entretanto, conjuntamente: — Aqui não é a fonte do amor?
E
as duas almas, feitas uma para a outra, encontradas lá dentro do coração de
Jesus, disseram-se: — Bebamos, pois, da fonte do amor!...
O
padre continuava, mas nós não entendíamos. O meu corpo inane caía cada vez mais
sobre os joelhos, numa adoração profundíssima. E do sudário desaparecera o
Jesus sanguinolento, para pintar-se ela com o seu vestidinho preto e as suas
pulseiras de ouro, a olhar-me para meu coração soluçante.
O
padre me apontava era para os lábios mudos de sentimento, e para sua fronte
livre de pesadumbres. E gritava-nos: — Amai, arrependei-vos do tempo perdido...
E
eu apertava o meu peito com as duas mãos.
E adormecido, entorpecido, ignorante, alheio, tomado de dor e de
ventura, ouvi as últimas palavras: et
tradidit spiritum... e entregou o seu espírito.
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