9/28/2017

3-37 (Conto), de Medeiros e Albuquerque


3-75

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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O grande edifício da penitenciária, uma das maiores prisões nacionais, levantava-se em um descampado.

Era uma construção sem elegância: um cubo enorme de tijolos vermelhos. Quatro andares. Absolutamente isolado.

Quando quiseram construir a casa na cidade, os habitantes protestaram e o Governo acabou por achar valia mais apena ficar o edifício, mesmo assim, longe de qualquer centro populoso.

Havia lá mais de mil presos.

Quando o n° 3-75 (pois todos só eram conhecidos por números) foi recolhido, trataram-no com deferência pouco habitual.

Deram-lhe uma célula grande e clara no primeiro andar. Fizeram mesmo um pouco mais: escolheram para seu companheiro um moço também fino e educado, condenado por ter praticado uma pequena e desculpável falcatrua comercial.

Os dois rapidamente se ajeitaram à vida comum. O 3-75 quase não falava. Só o fazia quando o outro o interpelava diretamente e era forçado a responder.

O processo do qual resultará a condenação do 3-75 fora dos mais ruidosos e estranhos. Tratava-se de um assassinato. O criminoso matara a mulher. Como e porque — ninguém sabia. A polícia foi um dia chamada por este recado telefônico:

— Fala aqui Dr. Simões Gerifalte (e deu o endereço exato) — Acabo de matar minha mulher. Venham prender-me.

No primeiro momento, a polícia acreditou fosse um gracejo de mau gosto, mas tocou para o endereço indicado e teve a confirmação do fato.

Encontraram a vítima no seu leito, assassinada com um tiro no coração, e o assassino corretamente vestido pronto para seguir.

No momento de partir, ele beijou a testa da mulher sem dizer uma palavra e acompanhou as autoridades.

O processo foi curioso. O acusado respondeu apenas às perguntas sobre a sua identidade. Interrogado acerca das causas do crime, fez uma declaração formal. Dela não se apartou posteriormente; disse que não responderia a mais nenhuma pergunta:

— O importante para a justiça é conhecer o autor do crime. Sou eu. Não houve nenhum cúmplice. Se eu quisesse defender-me, minhas respostas serviriam para indicar atenuantes. Não sei de nenhuma. Feita esta confissão, sem restrição alguma, não estou disposto a satisfazer curiosidades.

Houve necessidade de dar-lhe um advogado ex-oficio, porque ele não quisera indicar nenhum. Quem escolher, à altura do criminoso? Isto se simplificou, porque o grande e eloquente advogado Bastos Queirós inscreveu-se precipitadamente como membro da Assistência Judiciária, só para que o juiz o nomeasse advogado do réu, de quem era velho amigo. Nas entrevistas com ele nada, porém adiantou. O acusado lhe disse firmemente estar disposto a não ministrar elemento algum de defesa. E manteve-se assim até o dia do julgamento.

Neste, o advogado fez uma oração brilhante, de rara eloquência. Pintou a carreira triunfal do médico ilustre, cheio de serviços à ciência, professor, tido como notável mesmo em países estrangeiros, bom, caridoso, ativo, gastando todo o seu tempo em obras de ciência e de beneficência.

A sala arfava de emoção. Ela estava aliás cheia de médicos e de jovens alunos do acusado, seus ardentes admiradores. Havia uma larga parte da sua clientela feminina. O advogado mostrou apenas ao júri como um homem em tais condições não podia cometer o crime, senão por estar fora de si, ou por profundas razões.

O réu, vencido, baixara a cabeça e chorava, soluçando baixinho, — tão baixinho que ninguém o ouvia — com o rosto oculto entre as mãos. Via-se-lhe apenas o sacudir do corpo. Em certa ocasião, porém, o advogado quis pô-lo em contraste com a mulher assassinada. Mal anunciou a primeira acusação: "uma mulher leviana”, o réu ergueu-se de um salto do seu banco de infâmia e, a fisionomia transfigurada, levantando a mão aberta, gritou com uma ameaça temível na voz:

— Não! Isso não! Nem uma palavra contra ela!

Todos arquejavam de emoção, assombrados.

— O criminoso sou eu, só eu, não há ninguém mais a quem acusar.

O promotor para agravar-lhe a culpabilidade, tinha feito o contrário: pintara o retrato da morta como um modelo de bondade, de beleza, de todas as qualidades. E ele ouvira em silêncio.

O advogado da defesa pouco mais pode dizer.

Houve uma coisa interessante: esse réu confesso, mal defendido por não ter dado elementos para isso, esteve quase a ver-se absolvido. Houve contra ele apenas a maioria de um voto. O movimento da opinião era a seu favor: se tivesse havido qualquer apelação, os juízes achariam meio de facilitá-la. Mas ele se opôs formalmente. Aceitou a condenação.

Todos sentiam qual devia ter sido a verdade: a mulher decerto o traíra. Vários depoimentos feitos perante a justiça haviam indicado esse fato. Ele nem o confirmou, nem o negou.

Na enorme penitenciária, o 3-75 era um preso modelo. Sombrio, silencioso, vivia decerto em uma tortura interior, pois ficava horas a fio, com os olhos fixos, como hipnotizado por alguma visão.

O Diretor algumas vezes, nas visitas aos prisioneiros, demorava-se na célula dele e conversava um pouco. O prisioneiro se humanizava lentamente.

Um dia nomearam médico da Penitenciária o Dr. Castro um dos seus antigos — antigos e prediletos discípulos. Quando o moço, aberta a porta da célula, lhe dirigiu a palavra, chamando-lhe "Mestre"! ele hesitou em estender-lhe a mão, mal a afastando do corpo:

— Não me chame mestre. Hoje, isso o deslustraria.

Mas o jovem médico não teve dúvida: adiantou bruscamente as duas mãos e agarrando a dele beijou-a, protestando:

— Mestre, sim, tão mestre no esplendor da prosperidade, como no infortúnio.

E 3-75 atraído aos braços do seu antigo aluno, chorou de emoção.

Daí por diante, o Dr. Castro não deixava de vir falar-lhe. Certa vez quis conversar sobre acontecimentos do dia, mas o preso pediu-lhe que o não fizesse.

— Não sei nem quero saber a marcha do mundo lá por fora.

E a partir de então conversaram apenas sobre casos de medicina e cirurgia, passados na penitenciária. O amor à antiga profissão subsistia intacto. Começou mesmo a aceitar livros e revistas profissionais, levados pelo discípulo. Sobre eles discutiam interessadamente.

Certo dia, em uma oficina da prisão, houve uma rixa e um dos sentenciados ficou gravemente ferido. Havia necessidade de uma operação delicada e imediata. O médico da penitenciária, desajudado, não a poderia fazer. Solicitado embora por telefone da cidade vizinha algum colega, se viesse, chegaria provavelmente muito tarde. O Dr. Castro pediu então ao diretor da prisão licença para isso e suplicou ao mestre que o ajudasse. Ele acedeu prontamente. Disse apenas: "E eu ainda sei?" Mas foi.

Ajudar? Qual ajudar? Ele tomou a direção do caso e com a sua mestria habitual fez tudo.

O discípulo, a princípio, hesitante — e diante da gravidade do caso raros deixariam de hesitar — ofereceu-lhe o bisturi e, sem dar por isso, instintivamente, como se estivesse em aula dos alunos, o grande Mestre cortou com toda a segurança, serrou, ligou, costurou, levou a termo a intervenção delicada.

Terminado o caso, o discípulo lhe disse a sua gratidão. Ele lhe perguntou:

— E se eu lhe pedir uma prova dessa gratidão, você a dará?

Pelo espírito do moço passou a ideia de seu mestre desejar talvez fugir. Mas por isso mesmo, não teve uma dúvida:

— Legal ou ilegal, tudo quanto quiser, Mestre.

— Pois bem: no relato que fizer da operação não aluda à minha intervenção. Nem uma palavra.

O moço resistiu, mas não conseguiu demovê-lo. Teve de cumprir a sua palavra. Ficou apenas nos registros da prisão uma frase vaga do médico: "Eficazmente auxiliado, consegui operar o ferido."

Sem a assistência do 3-75 era certa a morte da íntima. Praticamente o auxiliar — e de bem pouca eficácia — tinha sido o médico da prisão.

Ultimamente já o 3-75 havia tomado o hábito de falar um pouco mais longamente com o seu companheiro de célula. A ideia de conversar não o seduzia, mas sentia como a mudez pesava ao pobre rapaz. Ele era aliás infinitamente delicado.

O médico deixava-o, sobretudo, falar. Dava-lhe, porém, atenção e fazia, de tempos a tempos, breves considerações. Esse pobre moço viera ali parar por um caso simples. Fora, sobretudo, uma imprudência.

Desejando obter a mão de uma moça compreendeu qual o motivo do tutor desta hesitai em dar-lha em casamento: ele não oferecia garantias de fortuna ou colocação, embora estivesse bem empregado. A moça era rica. Em determinada ocasião, o rapaz teve conhecimento de certo negócio, a exigir pequeno capital e oferecer um lucro enorme. Mas esse pequeno capital como obtê-lo? Aí foi o seu erro. Tomou-o ao banco onde estava empregado, de um modo fraudulento. Mal se casasse, dias após, poderia pedir a esse próprio banco a soma irregularmente retirada. Repô-la-ia sem ninguém se aperceber do fato. Mas infelizmente o caso foi descoberto, antes disso. E no entanto já o seu casamento estava marcado, em vésperas de realizar-se! Quinze dias após o da sua prisão, nada lhe teria acontecido. Não era um criminoso. Fora um imprudente. O seu companheiro de prisão sentiu como ainda fora dali poderia sem deslustre manter relações com ele.

O maravilhoso para o médico era observar o fato, notado por todos os diretores de prisões e penitenciárias, mesmo as sujeitas a regimes mais severos: os presos acabam por organizar uma espécie de maçonaria e ficar informados de quanto se passa dentro dos muros da prisão. Chegavam às vezes ao seu companheiro recadinhos escritos, alguns dos quais vinham até metidos dentro da comida. O guarda lhe transmitia outros. O preso da célula da direita tinha todo um sistema de telegrafia em pancadinhas na parede divisória.

O companheiro do 3-75 começou a ficar bruscamente muito excitado. Motivo para isso? Acabou por dizê-lo. Os presos tramavam uma grande revolta. Esperavam fugir em massa: não ficaria nenhum.

O Dr. Castro tinha pedido licença e partido para fora. Qual seria o procedimento do 3-75, se a revolta vencesse? nem ele mesmo sabia. No primeiro momento pareceu-lhe tão indiferente permanecer como fugir. Agradeceu entretanto ao companheiro a lealdade da sua comunicação.

— O Dr. fica ou foge? perguntou-lhe o moço.

Ele lhe respondeu: resolveria na ocasião.

E explicou-lhe bem não estar procurando esconder a sua resolução: era bem verdade nada ter decidido.

Noites depois, a revolta rebentou. Alguns presos cortaram os fios telefônicos, inutilizaram um pequeno posto de rádio da casa, houve mortes de uns e espancamentos de outros dos guardas da prisão. Um grupo passou pelo corredor onde ficava a célula do 3-75, abrindo todas as portas. O companheiro do médico apertou-lhe a mão, despedindo-se, e precipitou-se. De repente, ele se viu só, diante da porta escancarada.

Se todos saíam, como ficar? Adiantou-se pelo corredor, disposto a fugir também. Sentiu de repente um grande desejo de atirar-se por ali adiante. Todos os seus instintos recalcados de homem habituado à liberdade, gritaram: "Foge! Foge!" E ele precipitou-se, com ímpeto, por onde os outros tinham ido. Não havia mais obstáculo algum. Mas pouco adiante, encontrou caído um corpo, em uma poça de sangue. Reconheceu-o logo: o diretor da prisão. Estava com as roupas despedaçadas, cheio de contusões e, o mais grave, uma grande fratura do crânio. Era horrível.

O 3-75 não pode conter-se. Entre o cirurgião, cujo dever consistia em socorrer aquele desgraçado, e o preso, ávido de fugir, foi o cirurgião o vencedor. Abaixou-se, tomou o ferido nos braços e levou-o para a sala de operações. Ela ficava no mesmo andar, a pequena distância.

A partir desse momento, perdeu de todo a noção dos sucessos em torno dele. Lembrava-se bem do armário de ferros e do de medicamentos. Não havia chaves, nem tempo para procurá-las. Arrombou tudo. Deitou o doente sobre a mesa de operações e começou a agir.

O ferido estava inconsciente ou pelo menos parecia tal, mas quando a operação começasse, a dor poderia despertar e perturbar tudo. O 3-75 tomou o necessário de morfina e de escopolamina e injetou no paciente. Este abriu os olhos, olhou bem para o médico e pareceu então desmaiar. Mas o anestésico, dado aliás em dose fortíssima, fez o efeito desejado. E o médico, embora com a imensa dificuldade de estar sozinho, operou-o, brilhante e eficazmente. Feito isso, carregou-o para um quarto vizinho à sala e cobriu-o. Nesse momento — duas horas se tinham passado — olhando para fora viu como, a toda disparada, se aproximava número considerável de soldados do exército e provavelmente de Polícia e de Bombeiros. Só então tinham tido na cidade notícias do ocorrido. Estavam as forças de socorro a dois ou três minutos.

Fugir? Não era mais possível. O médico saiu rapidamente da sala de operações e voltando para a sua célula meteu-se na cama. Já os primeiros clamores dos invasores da prisão se ouviam claramente. Fingiu estar dormindo. Alguém o sacudiu brutalmente. Soldados de polícia o forçaram a pôr-se de pé, chalaceando:

— Este marau tem o sono duro.

Um oficial interrogou-o. Nada ouvira, disse ele.

Dos mil e tantos presos só tinham ficado uns 17. Os outros, porém, eram pobres diabos quase inválidos. Não haviam fugido por impossibilidade absoluta.

O velho médico, nomeado para substituir o impedimento do licenciado, fora encontrado morto, com uma paulada na cabeça.

O ódio dos prisioneiros em geral não escolhe: vai desde o diretor até o Ínfimo carcereiro. Os médicos entram no número. Todos são representantes do poder público e da Sociedade contra a qual os criminosos estão em luta.

O relatório oficial dos acontecimentos mencionou comovidamente ter o morto cumprido heroicamente o seu dever até o fim, mantendo-se no estabelecimento e operando o diretor. Alguém, decerto, o agredira quando se retirava, após ter feito isso. E apontava-se o seu procedimento como um nobre exemplo. O diretor fora levado para um hospital na cidade. Embora operado, estava em uma situação delicadíssima sem poder ser visto senão por algumas pessoas de sua família. Não lhe levavam notícias, não lhe permitiam conversas.

Quando pode receber visitas, uma das primeiras foi a do Dr. Castro. Chegara nesse mesmo dia.

Alguém lhe disse então o nobre procedimento do seu substituto. O moço teve uma expressão de verdadeiro assombro:

— Não é possível! gritou ele. O meu substituto não entendia nada de cirurgia: seria incapaz de pôr uma atadura, de colar uma tira de esparadrapo. Creio até que não saberia espremer uma espinha! exclamou, exagerando. Era um bom velho médico, capaz de receitar coisas triviais, mas incapaz, de operar fosse quem fosse, fosse do que fosse.

E voltando ao hospital, indagou do doente se não tinha alguma recordação de quem o operara. O Diretor mergulhou em uma meditação profunda. De repente, porém, sabendo só então qual a versão corrente sobre o seu caso, exclamou:

— Não é exato. Quem me operou foi o 3-75.

E recordou-se da sua última visão antes de cair na inconsciência do anestésico. Tinha do fato certeza absoluta.

O moço médico rejubilou. Sentiu como seria inútil ir buscar o depoimento do seu mestre para o fim desejado. Quis, porém, conversar com o companheiro de célula. Este fora recapturado, mas estava agora em outra prisão. O Dr. Castro ouviu-lhe a declaração de se ter despedido do médico, ao sair Deixara-o de pé perfeitamente acordado. A afirmação dele, garantindo nada ter ouvido por estar dormindo, era, portanto, absolutamente falsa.

Uma operação de cirurgia cerebral, como a efetuada no diretor, exigia uma habilidade possuída por pouquíssimos cirurgiões mesmo dos mais eminentes.

O Dr. Castro desdobrou-se em atividade. Só um homem podia ter operado o diretor da prisão — ele o provou.

O médico não quisera, de propósito, aparecer a seu mestre. Mas, de súbito, uma bela manhã lhe apareceu, à frente de um estranho grupo. Estranho, embora pouco numeroso, porque era apenas de três pessoas e uma delas, ia ainda carregada em uma maça de assistência: o diretor da prisão. O outro, além do Dr. Castro, era o Ministro do Interior. Ninguém, quando eles chegaram, compreendeu a significação daquilo.

Aberta a porta da prisão, o Dr. Castro se adiantou para o seu mestre. Prevendo-lhe a negativa, foi logo cortando-a:

— Não negue nada. É inútil. Desta vez não me acho ligado por nenhuma promessa. Aqui está o Sr. Ministro e aqui está o seu operado. Nunca se viu um ministro vir em pessoa dar o perdão a um preso. Quis, porém, sua excelência fazer hoje esta coisa excepcional para um caso também excepcional. Ele e o Sr. Diretor vieram trazer-lhe a liberdade e os seus agradecimentos.

O professor ilustre, apertando as mãos para ele estendidas, ainda tentou falar, gaguejando:

— Mas há engano. Há engano.

— Não, Mestre, é a verdade.

E abraçou-o, comovido, chorando de alegria.

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