14 de Julho na roça
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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14 de julho é a grande data. Ecoa na história com as mesmas vibrações que deve proferir sobre o mundo a trombeta de Josafá, em plena consumação dos séculos.
A Marselhesa é o gemido humano chamado às armas.
A queda da Bastilha é o pavoroso esboroamento do passado, batido pelo futuro.
A pirâmide da opressão tinha por base o grande cárcere e por vértice a coroa do rei; o povo devasta a pirâmide de alto a baixo; arrasa o alicerce, aniquila o píncaro.
Cai a Bastilha, morre Luís XVI.
Do cataclisma ergueu-se sangrenta a grande mão do direito humano saciado, e abriu os dedos sobre aquele caos, como as irradiações de uma estrela grandiosa e serena.
À luz deste sol, começou a desfilar a procissão dos séculos...
Curvado um dia sobre essas páginas épicas da lenda das gerações, inclinado à beira vertiginosa do báratro onde revoluteiam os fantasmas indistintos e medonhos daquele terremoto social, refletindo na humanidade e nos seus destinos, foi assim que o Dr. Salustiano da Cunha descobriu que era republicano.
Muito republicano; republicano de coração. De coração e de cérebro.
Um homem da época.
Na qualidade de Campineiro abastado e farto, tinha por si a força do ouro: o elemento moderno do poderio. No século XIX, mais do que nunca, o ouro é o metal dos cetros e das alavancas: só existe para o mando e para a força...
Ia-lhe próspera a fazenda. As suas vastíssimas terras sumiam-se, sob as ramas escuras dos cafezais, plantados em linha, através de infinitas colinas.
As canas formavam-se por milheiros ao longo das várzeas, imitando tudo respeitáveis fileiras de incógnita milícia. As folhas do canavial refletiam o sol, como se fosse o aço de cem mil baionetas; as plantações de milho sacudiam belicosamente os penachos roxos, como as insígnias gloriosas de um imenso estado-maior
Tudo ali estava perfilado e firme, como se faltasse apenas o grito de marcha, para os batalhões precipitarem-se...
O Dr. Salustiano, com as mãos nas cadeiras, por baixo do pala de brim, contemplava, ufano, aquele exército fantástico que tinha sob o seu comando absoluto e despótico.
O próprio céu parecia fugir para cima, com o seu azul e com as suas estrelas, amedrontado por aquelas hostes, mais arrogantes, sem dúvida, que as dos bárbaros do norte, que tinham lanças para escorar o próprio firmamento.
Era um homem forte, portanto, o nosso doutor.
Podia soltar gargalhadas às barbas da prepotência corruptora do rei; podia rebelar-se, como Lúcifer, e rir do paraíso perdido; podia gritar que viesse abaixo a tirania, e recusar um arqueamento da espinha à majestade sagrada do direito divino.
Viva a República!
A santa causa encontrava nele um pulso valente para o combate.
Cada golpe da sua durindana democrática e demolátrica seria uma vitória para o grande partido dos direitos do homem canonizados!
O Dr. Salustiano era entusiasta. Estava disposto a declarar guerra a tudo que não fosse democracia republicana. Só curvaria a fronte ante a aristocracia do talento.
Para isso verdejavam-lhe os cafezais pingues; para isso, o canavial afiava as folhas umas nas outras, como espadas, e o milho cabeceava empenachado como um marechal.
Daí vinha-lhe a força.
Não havia pois motivo para espanto, quando, por uma bela manhã, saindo o doutor a passeio, montado, como um príncipe, no soberbo alazão, foi impressionado por um fenômeno estranho.
Lembrava-se que a aurora fora mais rubra naquela madrugada; o sol nascera vitorioso no meio de uma explosão de sangue e de fogo; as nuvens se lhe haviam figurado momentos desmoronando-se. Todo o oriente parecera vibrar, abalado por uma tragédia titânica...
Agora, fato interessante, perscrutando os cantares do bosque, parecia-lhe que, das folhas frementes, choviam as notas aclarinadas da Marselhesa.
Ora o sabiá entoava heroicamente o solo do Allons enfants... ora o coro da passarinhada replicava em tom de guerra: Aux armes citoyens!...
Recomeçava o solo pungente do sabiá.
As árvores estremeciam.
As nuvens paravam para escutar.
Recomeçava o coro imponente. Parece que então a natureza inteira abria a boca para cantar. As notas graves vinham do horizonte, nascidas nas grotas ao longe, e vazadas sonoramente através de gargantas de pedra.
Que solenidade naquele conjunto! O alazão marchava como se cadenciasse o passo pela vasta orquestração da natureza.
O doutor extasiava-se.
Caminhava para diante, sorrindo e surpreso. A grande música seguia-o como um préstito invisível de sons guerreiros e formidáveis.
O Dr. Salustiano quase erguia-se sobre os estribos, para descobrir-se e urrar:
— Viva a República!
O coração pulava-lhe! O homem sentia que uma força, esquisita levantava-o acima da cavalgadura...
Vinte vezes quis soltar o brado; mas tinha medo.
Podia não ser entendido pela natureza e ficar sem resposta.
Quis entrar no coro. Já não se continha mais.
No primeiro aux armes citoyens!... ele meteu-se, e fez coro com os estranhos cantores daquela maravilhosa manhã.
Ainda estava pedindo, com voz atroadora, o sangue impuro dos tiranos, quando sentiu estacar o alazão, forçando o cavaleiro a debruçar-se-lhe sobre as crinas.
Um grupo de pessoas aparecera na estrada. Três escravos e um feitor mal encarado.
Tinham a cara espantada, e pareciam perguntar se o matutino passeador endoidecera.
— O que temos? indagou bruscamente o doutor, engolindo um resto de Marselhesa.
— Venho comunicar ao senhor, respondeu o feitor, que o Emídio fugiu...
— Terceira vez!... o cão... Há de pagar! Hum!... Desta vez eu o ensino, se o pego.
— Havemos de pegá-lo hoje mesmo, garantiu resolutamente o feitor.
— Peguem-no... peguem-no, que havemos de ver para que se inventou o viramundo...
E o alazão continuou a marchar pela estrada adiante, deixando ficar o grupo que interrompera-lhe os passos.
Com o sacudir da andadura, acomodaram-se no espírito do doutor as ideias momentaneamente desarranjadas pela brusca notícia da fuga do Emídio. Tendo o espírito mais calmo, observou que a orquestração da natureza, subitamente suspensa, recomeçava em surdina, e zunia-lhe ao ouvido como se longínquas fanfarras eólicas começassem a ressoar.
Recomeçava a canção de Marselha. O doutor tornava a achar tudo vermelho e belicoso. Volviam-lhe à imaginação os seus ardores republicanos.
Nessa ocasião um grito chamou-o à distância:
— Cidadão!...
O doutor não voltou-se. Era incrível! Reconhecia a voz de Danton...
— Cidadão! repetiam.
Não! Era talvez Desmoulins, Robespierre, Marat... com os diabos!... Seria sonho?...
— Cidadão!
Segui-lo-ia porventura a coorte dos homens fantásticos do Terror?...
— Cidadão Salustiano! Doutor!
Ah! o doutor logo vira... Era o compadre... vizinho ali de algumas léguas, um companheiro fazendeiro, apatacado e gordo, e, mais que tudo, republicano.
Vinha a cavalo, em busca de Salustiano. Havia uma grande festa em casa dele. Um aniversário. Celebrava-se pomposamente a queda da Bastilha, a hecatombe das tiranias. Em vez de reis e tiranos, degolara-se para a solenidade uma infinidade de leitões e patos. Lucullo ia festejar a trucidação da realeza!...
Um banquete digno de servir-se através das páginas da Ilíada.
14 de julho!
Estava explicado o sonho harmonioso do Dr. Salustiano: esplêndida miragem acústica, que pintara-lhe aos ouvidos todo o panorama canoro de oitenta e nove!
Aquela manhã era a gloriosa manhã do grande dia.
À noite, a fazenda do compadre estava em festa.
Todos os republicanos de vinte léguas em roda concorreram entusiasmados.
Chamou-se de Campinas uma filarmônia particular, muito ensaiada em sonoridades rubras e gargalhadas de Offenbach.
Quando apareceu na estrada o Dr. Salustiano, a banda de música saudou-o com um Roger de l'Isle mais real que o da manhã e não menos ardente.
Os foguetes crepitavam no espaço, como a fuzilaria dos assaltantes da Bastilha.
A massa estúpida dos escravos alinhava-se em dois renques, ao longo da estrada, sustentando archotes na mão. Tinham a expressão besta de quem nada compreende do que vê. A luz dos archotes clareava-lhes os peitos hercúleos, onde, sobre o branco do algodão das camisas, brilhava o desenho encarnado de pequenos barretes frígidos sobrepostos ao número de cada um.
Salustiano pasmava diante daquele aparato.
Quando entrou no salão do festim, chegou mesmo a sentir no íntimo uma picada de inveja. Por que não se lembrara primeiro de levar a cabo aquela solenidade?... Ficaria para o ano...
Para o ano o 14 de julho seria dele.
O salão estava imponente. Uma extensa mesa, coberta de iguarias custosas e abundantes, desenrolava-se luxuosamente, com a carta geral da gastronomia. Por cima, cristais e flores, luzes e inações. Ao fundo do salão, quase à cabeceira da mesa, uma grande figura da Liberdade, em gesso, alçava, garbosa, uma lâmpada sobre o banquete.
Dir-se-ia o Anfitrião daquilo tudo.
Foram chegando os convidados, e abancando-se. Só homens.
Em pouco, a mesa regurgitava. Ao doutor coube um lugar aos pés da estátua.
O assalto aos manjares foi medonho. Os trinchantes desapareciam no bojo dos assados, como se fossem punhaladas raivosas. As garrafas estouravam, como fogo nutrido de atiradores destros.
Comia-se, como se ali só houvesse guisados bofes de monarcas; bebia-se, como se houvesse engarrafado o sangue das dinastias.
Pantagruel e Gargantua esgaçavam os lábios, como sansculottes embriagados.
Os garfos eram chuços, as facas eram espadas. A demagogia do ventre arremessava-se doidamente contra a imponência régia dos acepipes.
Enquanto a comida abarrotava as bocas, ia a música abarrotando os ouvidos.
Tudo em grosso, abundantemente, desvairadamente.
Em certa ocasião começaram os brindes.
Brindou-se a este, que era um dos mais puros advogados da causa republicana; a aquele, que defendera no parlamento provincial os sagrados direitos do povo (povo era com P grande); a aqueloutro, que constituía uma das mais legítimas esperanças do partido regenerador...
Houve uma pausa solene, no meio da qual uma voz trêmula e vibrante levantou-se:
— Cidadãos!
Uma agitação moveu o auditório, e o silêncio caiu cem graus abaixo de zero.
— Concidadãos!...
Falava um jovem ex-deputado, famoso pela violência com que usava agredir os tronos.
... É hoje o dia em que o mundo comemora um dos grandes acontecimentos da sua história...
(Alguns apoiados surdos.)
—...Na grande era revolucionária, foi no dia de hoje que o povo, compreendendo a grandeza da sua soberania, alçou alteroso o colo das suas iras, e resolveu afogar em sangue a tirania infame da torpe realeza!
(Muito bem, muito bem!)
—... Já era demais!... Por tantos séculos havia a pata da injustiça calcado o livro dos direitos do homem... a exploração dos fracos pelos potentados... o roubo iníquo do salário ao proletariado... a realeza usufruindo desaforadamente o suor do povo e sugando sofregamente, para a manutenção das suas orgias, o generoso sangue dos pobres, o sangue daqueles mesmos que sustentavam-lhe as indústrias do seu estado, daqueles mesmos que lavravam os campos da sua nação...
(Bravos! bravos!)
—... Já era demais... Tudo preparou o terrível desabamento social que se chama queda da Bastilha!...
A onda popular rodeou espumante, etc., etc...
O eloquente tribuno orou por longo tempo, e concluiu em tom religioso, no meio das aclamações dos circunstantes:
—... Mas ainda não estão por terra todas as Bastilhas; ainda existem muitas realezas, e cada realeza é uma Bastilha temerosa...
Abaixo pois as realezas!...
Por terra as Bastilhas!...
Plante-se a bandeira republicana por todo o mundo!... Que o orbe terráqueo apareça aos olhos dos outros planetas com a forma cintilante de um barrete frígio!...
(Bravôh! bravôh!...)
... Expulsemos, pois, da nossa pátria o velho chaveco da monarquia, ainda que tenhamos de oferecer, para a sua retirada, um rio do nosso sangue rubro!...
(Bravôôôh!)
E saudemos agora, neste brinde, como a síntese dos nossos votos, das nossas aspirações, a próxima fundação da república brasileira!...
E um brinde estrondoso como um furacão, subiu daquela tempestade de aplausos e garrafas, para sujar de vinho a cara impassível das instituições...
Naquele momento mesmo, quem se afastasse da fazenda em festa, até meia distância da fazenda do Dr. Salustiano, ver-se-ia apertado num contraste pavoroso.
Atrás da escuridão dantesca de uma noite tempestuosa e feia, ouviam-se perfeitamente, de uma banda, rumores orgíacos, inextinguíveis, como os risos de Homero; de outra banda, lastimosos gritos cruciantes, que pareciam pedir socorro às feras da mata...
De um lado, 14 de julho; do outro, a punição de Emídio, o negro fugido...
Uma coruja passou... Se estivesse presente, o Dr. Salustiano perceberia que a coruja ia cantando a Marselhesa.
Sentia-se realmente nas trevas do ar o grande anjo da igualdade roçando com a ponta das asas brancas os dois extremos do horizonte.
Depois, do discurso, a festa do compadre continuou; o delírio do prazer recrudesceu.
As libações caíam em cascata sobre a toalha da mesa. As imaginações catavam estrelas para o símiles dos brindes, a retórica já não tinha mais tropos.
Quando ia falar o Dr. Salustiano, que, por uma especial consideração, fora encarregado de pôr o fecho de ouro ao banquete com o grande brinde à Liberdade, acercou-se dele um sujeito que entrara, havia pouco, e por trás da cadeira disse-lhe ao ouvido:
— O Emídio bateu a bota... não resistiu ao viramundo...
Era o feitor que conhecemos.
O doutor atirou-lhe enfadado as cinco letras de Cambrone, e tomou uma garrafa do melhor champagne.
Todos os convidados tinham o olhar sobre ele, e gritavam todos:
— O brinde à Liberdade! o brinde!
O doutor ergueu-se vagaroso, solene; segurou corretamente o fuste de cristal de uma taça finíssima que enchera.
A estátua de gesso, acima dele, com a cabeça inclinada e a lâmpada ao alto, fitava-o, parecendo esperar o brinde, espantada...
— Cidadãos!... O futuro... pertence à ideia republicana...
(Falava um profeta.)
—... Nós somos os sagrados preparadores do futuro. A pátria de amanhã é a concretização da nossa ideia.
A nossa missão não é a simples propaganda de um partido: é o desempenho heroico de um sacerdócio.
Às armas! A nossa existência de cidadãos deve ter este programa: Às armas!...
E neste momento, que nos reunimos todos para solenizar o grande dia republicano, neste momento, mais do que nunca, os nossos entusiasmos de pontífices da liberdade devem fundir-se em uma saudação que seja mais um pacto de aliança para as nossas lutas!...
Um brinde à liberdade!...
O salão estourou, como se uma vasta explosão de picrato o tivesse arremessado às nuvens; estourou ao brado de duzentas goelas de bronze, aclamando a Liberdade...
Circunstância mínima:
O doutor, arroubado de entusiasmo, levara tão alto o seu brinde, que partira o cristal nas faces da estátua.
O vinho caíra-lhe pelos seios abaixo, prostituindo a casta brancura impoluta do gesso.
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