9/21/2017

14 de Julho na roça (Conto), de Raul Pompeia


14 de Julho na roça


Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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14 de julho é a grande data. Ecoa na história com as mesmas vibrações que deve proferir sobre o mundo a trombeta de Josafá, em plena consumação dos séculos.

A Marselhesa é o gemido humano chamado às armas.

A queda da Bastilha é o pavoroso esboroamento do passado, batido pelo futuro.

A pirâmide da opressão tinha por base o grande cárcere e por vértice a coroa do rei; o povo devasta a pirâmide de alto a baixo; arrasa o alicerce, aniquila o píncaro.

Cai a Bastilha, morre Luís XVI.

Do cataclisma ergueu-se sangrenta a grande mão do direito humano saciado, e abriu os dedos sobre aquele caos, como as irradiações de uma estrela grandiosa e serena.

À luz deste sol, começou a desfilar a procissão dos séculos...

Curvado um dia sobre essas páginas épicas da lenda das gerações, inclinado à beira vertiginosa do báratro onde revoluteiam os fantasmas indistintos e medonhos daquele terremoto social, refletindo na humanidade e nos seus destinos, foi assim que o Dr. Salustiano da Cunha descobriu que era republicano.

Muito republicano; republicano de coração. De coração e de cérebro.

Um homem da época.

Na qualidade de Campineiro abastado e farto, tinha por si a força do ouro: o elemento moderno do poderio. No século XIX, mais do que nunca, o ouro é o metal dos cetros e das alavancas: só existe para o mando e para a força...

Ia-lhe próspera a fazenda. As suas vastíssimas terras sumiam-se, sob as ramas escuras dos cafezais, plantados em linha, através de infinitas colinas.

As canas formavam-se por milheiros ao longo das várzeas, imitando tudo respeitáveis fileiras de incógnita milícia. As folhas do canavial refletiam o sol, como se fosse o aço de cem mil baionetas; as plantações de milho sacudiam belicosamente os penachos roxos, como as insígnias gloriosas de um imenso estado-maior

Tudo ali estava perfilado e firme, como se faltasse apenas o grito de marcha, para os batalhões precipitarem-se...

O Dr. Salustiano, com as mãos nas cadeiras, por baixo do pala de brim, contemplava, ufano, aquele exército fantástico que tinha sob o seu comando absoluto e despótico.

O próprio céu parecia fugir para cima, com o seu azul e com as suas estrelas, amedrontado por aquelas hostes, mais arrogantes, sem dúvida, que as dos bárbaros do norte, que tinham lanças para escorar o próprio firmamento.

Era um homem forte, portanto, o nosso doutor.

Podia soltar gargalhadas às barbas da prepotência corruptora do rei; podia rebelar-se, como Lúcifer, e rir do paraíso perdido; podia gritar que viesse abaixo a tirania, e recusar um arqueamento da espinha à majestade sagrada do direito divino.

Viva a República!

A santa causa encontrava nele um pulso valente para o combate.

Cada golpe da sua durindana democrática e demolátrica seria uma vitória para o grande partido dos direitos do homem canonizados!

O Dr. Salustiano era entusiasta. Estava disposto a declarar guerra a tudo que não fosse democracia republicana. Só curvaria a fronte ante a aristocracia do talento.

Para isso verdejavam-lhe os cafezais pingues; para isso, o canavial afiava as folhas umas nas outras, como espadas, e o milho cabeceava empenachado como um marechal.

Daí vinha-lhe a força.

Não havia pois motivo para espanto, quando, por uma bela manhã, saindo o doutor a passeio, montado, como um príncipe, no soberbo alazão, foi impressionado por um fenômeno estranho.

Lembrava-se que a aurora fora mais rubra naquela madrugada; o sol nascera vitorioso no meio de uma explosão de sangue e de fogo; as nuvens se lhe haviam figurado momentos desmoronando-se. Todo o oriente parecera vibrar, abalado por uma tragédia titânica...

Agora, fato interessante, perscrutando os cantares do bosque, parecia-lhe que, das folhas frementes, choviam as notas aclarinadas da Marselhesa.

Ora o sabiá entoava heroicamente o solo do Allons enfants... ora o coro da passarinhada replicava em tom de guerra: Aux armes citoyens!...

Recomeçava o solo pungente do sabiá.

As árvores estremeciam.

As nuvens paravam para escutar.

Recomeçava o coro imponente. Parece que então a natureza inteira abria a boca para cantar. As notas graves vinham do horizonte, nascidas nas grotas ao longe, e vazadas sonoramente através de gargantas de pedra.

Que solenidade naquele conjunto! O alazão marchava como se cadenciasse o passo pela vasta orquestração da natureza.

O doutor extasiava-se.

Caminhava para diante, sorrindo e surpreso. A grande música seguia-o como um préstito invisível de sons guerreiros e formidáveis.

O Dr. Salustiano quase erguia-se sobre os estribos, para descobrir-se e urrar:

— Viva a República!

O coração pulava-lhe! O homem sentia que uma força, esquisita levantava-o acima da cavalgadura...

Vinte vezes quis soltar o brado; mas tinha medo.

Podia não ser entendido pela natureza e ficar sem resposta.

Quis entrar no coro. Já não se continha mais.

No primeiro aux armes citoyens!... ele meteu-se, e fez coro com os estranhos cantores daquela maravilhosa manhã.

Ainda estava pedindo, com voz atroadora, o sangue impuro dos tiranos, quando sentiu estacar o alazão, forçando o cavaleiro a debruçar-se-lhe sobre as crinas.

Um grupo de pessoas aparecera na estrada. Três escravos e um feitor mal encarado.

Tinham a cara espantada, e pareciam perguntar se o matutino passeador endoidecera.

— O que temos? indagou bruscamente o doutor, engolindo um resto de Marselhesa.

— Venho comunicar ao senhor, respondeu o feitor, que o Emídio fugiu...

— Terceira vez!... o cão... Há de pagar! Hum!... Desta vez eu o ensino, se o pego.

— Havemos de pegá-lo hoje mesmo, garantiu resolutamente o feitor.

— Peguem-no... peguem-no, que havemos de ver para que se inventou o viramundo...

E o alazão continuou a marchar pela estrada adiante, deixando ficar o grupo que interrompera-lhe os passos.

Com o sacudir da andadura, acomodaram-se no espírito do doutor as ideias momentaneamente desarranjadas pela brusca notícia da fuga do Emídio. Tendo o espírito mais calmo, observou que a orquestração da natureza, subitamente suspensa, recomeçava em surdina, e zunia-lhe ao ouvido como se longínquas fanfarras eólicas começassem a ressoar.

Recomeçava a canção de Marselha. O doutor tornava a achar tudo vermelho e belicoso. Volviam-lhe à imaginação os seus ardores republicanos.

Nessa ocasião um grito chamou-o à distância:

— Cidadão!...

O doutor não voltou-se. Era incrível! Reconhecia a voz de Danton...

— Cidadão! repetiam.

Não! Era talvez Desmoulins, Robespierre, Marat... com os diabos!... Seria sonho?...

— Cidadão!

Segui-lo-ia porventura a coorte dos homens fantásticos do Terror?...

— Cidadão Salustiano! Doutor!

Ah! o doutor logo vira... Era o compadre... vizinho ali de algumas léguas, um companheiro fazendeiro, apatacado e gordo, e, mais que tudo, republicano.

Vinha a cavalo, em busca de Salustiano. Havia uma grande festa em casa dele. Um aniversário. Celebrava-se pomposamente a queda da Bastilha, a hecatombe das tiranias. Em vez de reis e tiranos, degolara-se para a solenidade uma infinidade de leitões e patos. Lucullo ia festejar a trucidação da realeza!...

Um banquete digno de servir-se através das páginas da Ilíada.

14 de julho!

Estava explicado o sonho harmonioso do Dr. Salustiano: esplêndida miragem acústica, que pintara-lhe aos ouvidos todo o panorama canoro de oitenta e nove!

Aquela manhã era a gloriosa manhã do grande dia.

À noite, a fazenda do compadre estava em festa.

Todos os republicanos de vinte léguas em roda concorreram entusiasmados.
Chamou-se de Campinas uma filarmônia particular, muito ensaiada em sonoridades rubras e gargalhadas de Offenbach.

Quando apareceu na estrada o Dr. Salustiano, a banda de música saudou-o com um Roger de l'Isle mais real que o da manhã e não menos ardente.

Os foguetes crepitavam no espaço, como a fuzilaria dos assaltantes da Bastilha.

A massa estúpida dos escravos alinhava-se em dois renques, ao longo da estrada, sustentando archotes na mão. Tinham a expressão besta de quem nada compreende do que vê. A luz dos archotes clareava-lhes os peitos hercúleos, onde, sobre o branco do algodão das camisas, brilhava o desenho encarnado de pequenos barretes frígidos sobrepostos ao número de cada um.

Salustiano pasmava diante daquele aparato.

Quando entrou no salão do festim, chegou mesmo a sentir no íntimo uma picada de inveja. Por que não se lembrara primeiro de levar a cabo aquela solenidade?... Ficaria para o ano...

Para o ano o 14 de julho seria dele.

O salão estava imponente. Uma extensa mesa, coberta de iguarias custosas e abundantes, desenrolava-se luxuosamente, com a carta geral da gastronomia. Por cima, cristais e flores, luzes e inações. Ao fundo do salão, quase à cabeceira da mesa, uma grande figura da Liberdade, em gesso, alçava, garbosa, uma lâmpada sobre o banquete.

Dir-se-ia o Anfitrião daquilo tudo.

Foram chegando os convidados, e abancando-se. Só homens.

Em pouco, a mesa regurgitava. Ao doutor coube um lugar aos pés da estátua.

O assalto aos manjares foi medonho. Os trinchantes desapareciam no bojo dos assados, como se fossem punhaladas raivosas. As garrafas estouravam, como fogo nutrido de atiradores destros.

Comia-se, como se ali só houvesse guisados bofes de monarcas; bebia-se, como se houvesse engarrafado o sangue das dinastias.

Pantagruel e Gargantua esgaçavam os lábios, como sansculottes embriagados.

Os garfos eram chuços, as facas eram espadas. A demagogia do ventre arremessava-se doidamente contra a imponência régia dos acepipes.

Enquanto a comida abarrotava as bocas, ia a música abarrotando os ouvidos.

Tudo em grosso, abundantemente, desvairadamente.

Em certa ocasião começaram os brindes.

Brindou-se a este, que era um dos mais puros advogados da causa republicana; a aquele, que defendera no parlamento provincial os sagrados direitos do povo (povo era com P grande); a aqueloutro, que constituía uma das mais legítimas esperanças do partido regenerador...

Houve uma pausa solene, no meio da qual uma voz trêmula e vibrante levantou-se:

— Cidadãos!

Uma agitação moveu o auditório, e o silêncio caiu cem graus abaixo de zero.

— Concidadãos!...

Falava um jovem ex-deputado, famoso pela violência com que usava agredir os tronos.
... É hoje o dia em que o mundo comemora um dos grandes acontecimentos da sua história...

(Alguns apoiados surdos.)

—...Na grande era revolucionária, foi no dia de hoje que o povo, compreendendo a grandeza da sua soberania, alçou alteroso o colo das suas iras, e resolveu afogar em sangue a tirania infame da torpe realeza!

(Muito bem, muito bem!)

—... Já era demais!... Por tantos séculos havia a pata da injustiça calcado o livro dos direitos do homem... a exploração dos fracos pelos potentados... o roubo iníquo do salário ao proletariado... a realeza usufruindo desaforadamente o suor do povo e sugando sofregamente, para a manutenção das suas orgias, o generoso sangue dos pobres, o sangue daqueles mesmos que sustentavam-lhe as indústrias do seu estado, daqueles mesmos que lavravam os campos da sua nação...

(Bravos! bravos!)

—... Já era demais... Tudo preparou o terrível desabamento social que se chama queda da Bastilha!...

A onda popular rodeou espumante, etc., etc...

O eloquente tribuno orou por longo tempo, e concluiu em tom religioso, no meio das aclamações dos circunstantes:

—... Mas ainda não estão por terra todas as Bastilhas; ainda existem muitas realezas, e cada realeza é uma Bastilha temerosa...

Abaixo pois as realezas!...

Por terra as Bastilhas!...

Plante-se a bandeira republicana por todo o mundo!... Que o orbe terráqueo apareça aos olhos dos outros planetas com a forma cintilante de um barrete frígio!...

(Bravôh! bravôh!...)

... Expulsemos, pois, da nossa pátria o velho chaveco da monarquia, ainda que tenhamos de oferecer, para a sua retirada, um rio do nosso sangue rubro!...

(Bravôôôh!)

E saudemos agora, neste brinde, como a síntese dos nossos votos, das nossas aspirações, a próxima fundação da república brasileira!...

E um brinde estrondoso como um furacão, subiu daquela tempestade de aplausos e garrafas, para sujar de vinho a cara impassível das instituições...

Naquele momento mesmo, quem se afastasse da fazenda em festa, até meia distância da fazenda do Dr. Salustiano, ver-se-ia apertado num contraste pavoroso.

Atrás da escuridão dantesca de uma noite tempestuosa e feia, ouviam-se perfeitamente, de uma banda, rumores orgíacos, inextinguíveis, como os risos de Homero; de outra banda, lastimosos gritos cruciantes, que pareciam pedir socorro às feras da mata...

De um lado, 14 de julho; do outro, a punição de Emídio, o negro fugido...

Uma coruja passou... Se estivesse presente, o Dr. Salustiano perceberia que a coruja ia cantando a Marselhesa.

Sentia-se realmente nas trevas do ar o grande anjo da igualdade roçando com a ponta das asas brancas os dois extremos do horizonte.

Depois, do discurso, a festa do compadre continuou; o delírio do prazer recrudesceu.

As libações caíam em cascata sobre a toalha da mesa. As imaginações catavam estrelas para o símiles dos brindes, a retórica já não tinha mais tropos.

Quando ia falar o Dr. Salustiano, que, por uma especial consideração, fora encarregado de pôr o fecho de ouro ao banquete com o grande brinde à Liberdade, acercou-se dele um sujeito que entrara, havia pouco, e por trás da cadeira disse-lhe ao ouvido:

— O Emídio bateu a bota... não resistiu ao viramundo...

Era o feitor que conhecemos.

O doutor atirou-lhe enfadado as cinco letras de Cambrone, e tomou uma garrafa do melhor champagne.

Todos os convidados tinham o olhar sobre ele, e gritavam todos:

— O brinde à Liberdade! o brinde!

O doutor ergueu-se vagaroso, solene; segurou corretamente o fuste de cristal de uma taça finíssima que enchera.

A estátua de gesso, acima dele, com a cabeça inclinada e a lâmpada ao alto, fitava-o, parecendo esperar o brinde, espantada...

— Cidadãos!... O futuro... pertence à ideia republicana...

(Falava um profeta.)

—... Nós somos os sagrados preparadores do futuro. A pátria de amanhã é a concretização da nossa ideia.

A nossa missão não é a simples propaganda de um partido: é o desempenho heroico de um sacerdócio.

Às armas! A nossa existência de cidadãos deve ter este programa: Às armas!...

E neste momento, que nos reunimos todos para solenizar o grande dia republicano, neste momento, mais do que nunca, os nossos entusiasmos de pontífices da liberdade devem fundir-se em uma saudação que seja mais um pacto de aliança para as nossas lutas!...

Um brinde à liberdade!...

O salão estourou, como se uma vasta explosão de picrato o tivesse arremessado às nuvens; estourou ao brado de duzentas goelas de bronze, aclamando a Liberdade...

Circunstância mínima:

O doutor, arroubado de entusiasmo, levara tão alto o seu brinde, que partira o cristal nas faces da estátua.

O vinho caíra-lhe pelos seios abaixo, prostituindo a casta brancura impoluta do gesso.

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