Como toda comédia de Shakespeare, “As alegres senhoras
de Windsor” é o enquadramento perfeito da máxima latina “Ridendo castigat mores”:
instrui ao mesmo tempo em que diverte... A sagacidade das senhoras Ford e Page,
aliada à fútil ostentação de Sir John Falstaff é de fazer “rir até cuspir o
fígado”:
FALSTAFF —
Deixa de trocadilhos, Pistola! É verdade que tenho uma cintura de duas jardas;
mas neste momento não importa meu cinto, mas o que sinto. Em resumo, rapazes,
tenho em mente fazer a corte à mulher do Ford. Estou certo de que hei de
divertir-me bastante: conversa bem, é afável, sabe convidar a gente com o rabo
do olho. Interpreto perfeitamente o seu estilo familiar. Mas o mais renitente
trecho de sua conduta poderá ser traduzido da seguinte maneira: “Chamo-me sir
John Falstaff! / FALSTAFF — Tenho aqui comigo uma carta escrevi para mandar-lhe, e uma
outra para mulher de Page, que, faz pouco tempo, me lançou olhares animadores e
examinou o meu físico com miradas judiciosas, ora dourando-me os pés com raios
dos olhos, ora o ventre avantajado. / FALSTAFF
— Percorreu minhas formas exteriores com tão ávida curiosidade, que o apetite
de seus olhos parecia queimar-me como um espelho ustório. Esta carta aqui é
para lhe ser entregue. É ela, também, quem dirige a bolsa do casal; é um trecho
da Guiana, rica em ouro e liberalidades. Passarei a ser o coletor de ambas, e
elas o meu tesouro, as minhas Índias orientais e ocidentais, comerciando eu
pelos dois lados. Leva esta carta para a senhora Page, e tu, esta outra para a
senhora Ford. Vamos ficar ricos, rapazes! Vamos ficar ricos!
SENHORA FORD
— Como! Das cartas amorosas escapei no bom tempo de minha beleza, para
tornar-me agora assunto delas? Vejamos: “Não me pergunteis o motivo de vos
amar, porque embora o amor empregue a razão como seu médico, não a admite como
conselheira. Já não sois jovem, como eu também não o sou; tendes gênio alegre,
tal como eu, ah! ah! Para que maior simpatia? Gostais de xerez tanto quanto eu.
Poderíeis desejar maior afinidade? Em resumo, senhora Page, basta saberes — se
o amor de um soldado te for suficiente — que te amo. Não direi que te apiades
de mim, por não ser soldadesca semelhante frase. Direi apenas: ama-me! Do teu
cavaleiro que ao claro luzeiro do sol ou candeeiro por ti, prazenteiro, saudara
o coveiro, lutando primeiro com o mundo inteiro. John Falstaff.” Que Herodes da
Judeia será este? Oh mundo perverso! perverso! Um sujeito quase de todo roído
pela idade, e que se comporta como um moço conquistador! em nome do diabo, que
gesto refletido de minha parte poderá ter surpreendido esse bêbedo flamengo em
minhas conversações, para ousar assaltar-me por esse modo? Como! Não chegou a
conversar comigo nem três vezes! Que lhe poderia ter eu falado? De todas essas
vezes fui muito frugal com relação à minha alegria — o céu que me perdoe! — Ora
essa! Vou apresentar no parlamento uma lei para supressão de todos os homens. De
que modo poderei vingada hei de ser, tão certo como serem feitas de pudim as
minhas vísceras.
SENHORA PAGE
— Carta por carta, com a diferença de que onde uma traz o nome “Ford” a outra
mostra o nome “Page”. Para tranquilizar-te a respeito do mistério de tua má
reputação, aqui tens a irmã gêmea de tua carta. Mas que fique a herança para a
tua, porque posso assegurar-te que a minha jamais a reclamará. Aposto como ele
tem um milheiro dessas cartas, com o lugar para o nome. E mais: que estas já
estão em segunda edição. Sem dúvida alguma, vai publicá-las, porque para ele
pouco importa o texto, contanto que o nosso nome esteja no meio. Eu preferia
ver-me transformada em um dos gigantes e ficar debaixo do monte Pélion. Pelo
que vejo, é mais fácil encontrar vinte rolinhas lascivas do que um homem casto.
Temas comuns em Shakespeare norteia toda à peça, como
o ciúme, algo muito bem realçado em Ford, o gentil-homem de Windsor, que chega
a se disfarçar com o intuito de trazer á tona a suposta perfídia de sua esposa
e a canalhice de Falstaff:
FORD — Muito
embora Page seja um imbecil pachorrento e confie demais na fragilidade de sua
mulher, não porei de lado minhas desconfianças assim com facilidade. Ela esteve
com Falstaff em casa de Page, não sabendo eu o que fizeram por lá. Muito bem;
vou estudar o caso mais de perto. Tenho um disfarce para sondá-lo. Se eu
verificar que ela é honesta, não darei por perdido o trabalho. Caso contrário,
foi muito bem empregado. / FORD — Que epicúrico amaldiçoado é este
miserável! Sinto o coração partir-se-me de impaciência. E ainda haverá quem me
venha dizer que o meu ciúme é intempestivo? Minha mulher lhe mandou recado; a
hora está marcada; é negócio feito. Alguém poderia pensar em semelhante coisa?
Vede que inferno é possuir uma mulher falsa. Vou ficar com o leito poluído, os
cofres saqueados, a reputação estraçalhada. E não somente terei de suportar
todos esses ultrajes, como ainda serei forçado a ouvir os mais abomináveis
qualificativos, da boca, justamente, de quem me lança todo esse opróbrio. Que
qualificativos? Que nomes? Arnaimom soa bem; Lúcifer, bem; Barbason, bem. No
entanto são qualificativos do diabo, nomes do demônio. Mas cornudo, cabrão,
chifrudo! Nem o próprio diabo tem esses nomes. Page é um asno, um asno
sossegado; confia na mulher, não sente ciúmes. Eu preferira entregar toda minha
manteiga a um holandês, meu queijo ao pastor Hugo, o galense, minha garrafa de
aguardente a qualquer irlandês, ou o meu cavalo castrado a um ladrão, para dar
um passeio nele, a deixar minha mulher com ela própria. Ela enreda, rumina e
trama; o que as mulheres resolvem no coração tem de ser levado a cabo; ainda
que se lhes parta o coração, têm de ir até ao fim. Louvado seja Deus por causa
do meu ciúme. Onze horas é a hora combinada. Vou impedir isso, surpreender em
flagrante minha mulher, vingar-me de Falstaff e zombar de Page. Não perderei
tempo. Melhor chegar três horas mais cedo do que atrasado de um minuto. Sim,
senhor! Sim, senhor! Cabrão! Cabrão! Cabrão!
A senhora Quickly, que diz detestar mexericos, é a
típica expressão de uma astuta alcoviteira. Aliás, outro tema comum, não apenas
em Shakespeare, como na dramaturgia universal ao longo de sua história. Vemos
isso de modo destacado em Gil Vicente, na pessoa de Brísida Vaz, na peça “Auto
da Barca do Inferno”. Quickly, como uma boa agenciadora de casamentos, sempre
sabe satisfazer seus “clientes”:
QUICKLY —
Está bem. Mas ainda tenho outro recado para Vossa Senhoria: a senhora Page
também se recomenda de coração a Vossa Senhoria. E permiti que vos diga ao ouvido:
ela é fartuosa como o pode ser uma mulher civil e honesta, uma mulher, posso
asseverar-vos, que nem de manhã nem de tarde deixa de dizer as suas orações,
tão bem como qualquer mulher de Windsor, seja ela quem for. Pediu-me que
dissesse a Vossa Senhoria que o marido dela raramente para fora de casa, mas
que ela espera que não há de faltar ocasião. Nunca vi uma mulher tão obcecada
por alguém. Só parece que tendes feitiço, não? É pura verdade. / QUICKLY —
Oh, senhor! Ela lamenta o que aconteceu; se a vísseis, ficaríeis comovido. O
marido dela vai caçar passarinhos esta manhã. Ela pede que a vades ver hoje,
entre as oito e as nove. Terei de levar-lhe a resposta com a maior urgência
possível. Ela vos apresentará desculpas, posso asseverar-vos.
Shakespeare não é apenas recomendado como leitura, mas
asseverado como obrigatório, pelo menos para quem deseja algo mais do que o
simples entretenimento.
É isso!
Iba Mendes
São Paulo, 2013.
São Paulo, 2013.
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