Vida e caráter de Camões
Ensaio escrito em 1924 pelo escritor Amadeu Amaral. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2016)
A
biografia de Camões está cheia de pontos obscuros e de falhas irremediáveis.
Uma multidão de pesquisadores tem procurado esclarecer esses pontos e suprir
essas falhas, já escavando todos os documentos que possam projetar algum fio de
luz sobre essa vida quase inteiramente soterrada, já buscando o resíduo de
verdade que exista nas tradições e nas lendas referentes ao poeta, já, enfim,
analisando e conferindo com outros elementos os traços respigados na própria
obra de Camões. Não há, porém, como nos iludirmos sobre o caráter conjectural
das reconstituições tentadas com esses materiais. São tão frágeis, que às vezes
nos dão a impressão de castelos de cartas habilidosamente arranjados.
Se,
entretanto, assim é com os fatos de que se teceu a biografia do poeta, já o
mesmo não se dá com a sua personalidade. Não há talvez elementos bastantes para
se fazer dela um retrato acabado, mas os elementos que há são suficientes para
um largo esboço, em que apareçam os traços essenciais. E sente-se que, por mais
que se amplie, se retifique e se aperfeiçoe a biografia, nada poderá resultar
que altere seriamente esses traços.
Camões,
segundo notícias geralmente aceitas, foi, na mocidade, indivíduo desempenado e
gentil. Estatura meã, louro, olhos chispantes, nariz "de cavalete",
era jovial e folgazão de seu natural.
Tudo
quanto sabemos e tudo quanto podemos depreender dos sucessos de sua vida, como
de seus atos e escritos, impõe-nos a visão de um temperamento rico e vibrátil e
de um caráter complexo e contraditório, — "má cabeça, bom coração"
Era homem de sentimentos vivos e acentuados, sem essas esfumaturas de
sensibilidade ou esses meios tons indefiníveis e fugitivos das almas
domesticadas e alisadas em épocas de pacífica sociabilidade e longa polícia:
sentimentos que iam de pressa dos ímpetos de clara alegria aos soluços de
amargura veemente, da grossa jovialidade burlesca às donosas gentilezas
palacianas, do arranco sensual ao rapto de misticismo.
Frequentou
breve tempo os paços da Ribeira, onde se fez valer pela sua cultura e pela
graça dos seus repentes e onde o encanto dos seus versos lhe mereceu os
cognomes de "Sereia do Paço" e "Cisne do Tejo". Cá fora, porém, era o rapaz insofrido e
brincalhão, o "Trinca-fortes", com laivos talvez do ânimo esperto e
prepotente da mocidade dourada do tempo e, ainda que altivo, não de todo isento
daquela estouvanice boêmia, com que já então alguns poetas faziam roçar a
clâmide da Musa pelas tavernas e calçadas da cidade.
Sobre
esses aspectos da sua vida, na juventude, formaram-se muitas lendas, como
sempre acontece, e segundo essas lendas o nosso futuro épico teria chegado a
ser, por um lado, um valentaço perigoso e, por outro lado, um repentista
pedinchão. Calúnias, sem dúvida. Parece averiguado, contudo, que não foi
propriamente um santo, mas viveu e saboreou a sua hora de mocidade e soltura.
Teve
relações com o patusco frade Ribeiro Chiado, com quem é fama que se mediu de
uma feita em ligeiro combate de improvisos, a ver quem ganhava uns melões
postos como prêmio por um fidalgo. O caso não se afigura impossível, porque
nisso de disputar pequenos benefícios o poeta não achava graves impedimentos. A
um outro fidalgo, que lhe prometera uma camisa e tardava com ela, não duvidou
desfechar uma cobrança em regra, por sinal que sob graciosíssima forma:
Quem no mundo
quiser ser
Havido por
singular,
Para mais se
engrandecer,
Há de trazer
sempre o dar
Nas ancas do
prometer.
E já que vossa
mercê
Largueza tem
por divisa,
Como o mundo
todo vê,
Há mister que
tanto dê,
Que venha a
dar a camisa.
Assim
como não tinha os requintes dos escrúpulos de uma austera concepção de
dignidade literária, que só viria muito depois, também não tinha as surdas
irritações desta sombria hipersensibilidade moral, tão encontradiça em nossos tempos
de exagerado e dolorido culto do Eu.
Depois
que esteve a servir em Ceuta, onde lhe ficou o olho direito numa refrega,
pareceria, a julgarmos pela nossa experiência atual, que viesse de lá cheio de
orgulho e devorado de melancolia. Moço galanteador e mundano, estuante de
aspirações que não eram apenas de glória póstuma, aquele olho perdido parece
que lhe devia ter levado metade da luz de sua alma, deixando-lhe o coração todo
recozido em sangrentas angústias. A verdade é que, reatando a vida que antes
levava em Lisboa, continuou a despender-se em galanteios e chalaças e brincos;
e — o que é mais — tendo-lhe uma senhora chamado "cara sem olhos"
longe de se doer da impiedosa grosseria, retribuiu-a com outro e desanuviado
galanteio, todo entretecido de trocadilhos:
Sem olhos vi o
mal claro,
Que dos olhos
se seguiu:
Pois cara sem
olhos viu
Olhos que lhe
custam caro.
D'olhos não
faço menção,
Pois quereis
que olhos não sejam;
Vendo-vos,
olhos sobejam;
Não vos vendo,
olhos não são.
Houve
ainda uma senhora, por nome "Foã dos Anjos", que lhe chamou diabo. A
essa, igualmente, retrucou numa desenfarruscada série de redondilhas não menos
engraçadas, nem menos corteses:
Quem quer que
viu, ou que leu,
Terá por novo
e moderno,
Ter quem vive
no inferno
O pensamento
no Céu.
Mas, se a vós
vos pareceu
Que me estava
bem tal nome,
Esse diabo vos
tome.
Esse
gênio folgazão e despreocupado continua a manifestar-se mais tarde, na Índia,
depois de tantos sucessos tormentosos, — o olho perdido, os serviços em Ceuta
sem recompensa, a briga no dia da procissão de "Corpus Christi",
seguida de muitos meses de cárcere, o embarque forçado como simples soldado
raso, a dura viagem de seis meses salteada de tempestades, e enfim o
apartamento de tudo quanto amava. De Goa escrevia ele a um amigo, dando novas
de si e da terra em tom de chança: "vivo mais venerado que os touros da
Merceana e mais quieto que a cela de um frade pregador". Lá mesmo, compôs
a sátira dos "Disparates da Índia", recheada de mordacidades e de
gracejos fortes, e lá mesmo ofereceu aos amigos aquele almoço original, em que
os pratos, em vez de comida, continham cópias espirituosas.
A
história de seus amores, como os mais acontecimentos importantes de sua vida,
anda muito romanceada de lendas antigas e de conjecturas e imaginações antigas
e novas.
Segundo
Teófilo Braga, teve três inclinações sérias em sua existência: a primeira, por
uma prima, em Coimbra, quando estudante: a Belisa que aparece em algumas de
suas poesias; a segunda, pela excelsa dona Francisca de Aragão, dama da rainha;
e a terceira, a mais célebre, por uma das várias Catarinas de Ataíde que então
viviam no paço, formosa vergôntea da estirpe fidalga dos Limas. A todas dedicou
versos repassados ao fogo de uma paixão "decisiva" A que realmente
lhe ficou na alma para o resto da vida, — parece verificado — foi a última.
Contudo,
nos intervalos desses amores, ou durante eles, não desdenhou as graças nem
sempre inocentes de outras senhoras; e na Índia, apesar de todos os revezes e
de todas as saudades, ainda encontrou mulher ou mulheres em quer empregasse as
largas sobras da sua abundante afetividade. Na sua obra lírica perpassa toda
uma teoria de fidalgas, burguesas e plebeias, solteiras e casadas, brancas,
morenas, louras e trigueirinhas, mais ou menos tenebrosas.
No
meio dessa exuberância e dessa versatilidade de um temperamento pouco dado a
saborear a volúpia da tristeza e mal talhado para os longos êxtases
contemplativos, salteavam-no vagalhões de dor e de desespero. A esses devem-se
alguns dos relanços mais comovedores da poesia lírica.
Não
há fiar muito na realidade vivida de todos os casos íntimos que parecem
memorados na obra dos poetas. Todos eles pagam o seu tributo à literatura, e
nós sabemos que Camões o pagou. Leitor fervente de Sannazaro e Petrarca, de
Garcilaso e Boscan, apaixonado de cultura, sacrificando mesmo largamente à
erudição imitando o cantor de Laura
nos sonetos, imitando a outros antigos e modernos, é claro que nem todos os
seus versos lhe brotaram inteiramente do íntimo, embora sempre pusesse nesses
lavores de arte estudiosa ao menos uma vibração de sua rica sentimentalidade
própria. Entretanto, há trechos, da sua obra lírica onde o grito de alma resáe da contextura dos versos,
pungente, inconfundível, com esse tom cavo e dorido da voz molhada de lágrimas,
e onde o vinco da sinceridade profunda — e digo profunda porque há também uma
sinceridade superficial, como há emoções superficiais — é confirmado pela
ocasião, pelas circunstâncias e pelos antecedentes que explicam a crise
emocional do poeta.
Esses
gritos de alma encontram-se espalhados por toda a obra, nos sonetos, nas
redondilhas, nas canções, nos "Lusíadas". Eis como soa, por exemplo,
a Canção X, escrita numa hora de solidão amargurada, lá nos confins do mundo,
num recanto inóspito e triste da Ásia, onde o poeta fora ter, como um farrapo
levado pelo vento, depois de ter esvoaçado e rolado por longos mares e desvaira
das terras e nações:
...Aqui a alma
cativa,
Chagada toda,
estava em carne viva.
De dores
rodeada e de pesares,
Desamparada e
descoberta aos tiros
Da soberba
Fortuna;
Soberba,
inexorável e importuna.
Não tinha
parte donde se deitasse,
Nem esperança
alguma, onde a cabeça
Um pouco
reclinasse por descanso:
Tudo dor lhe
era e causa que padeça,
Mas que pereça
não; porque passasse
O que quis o
destino nunca manso.
Oh que este
irado mar gemendo amanso!
Estes ventos,
da voz importunados,
Parece que se
enfreiam:
Somente o Céu
severo,
As estrelas e
o fado sempre fero
Com meu
perpétuo dano se recreiam,
Mostrando-se
potentes e indignados
Contra um
corpo terreno,
Bicho da terra
vil e tão pequeno...
Tocamos
no lado sério, refletido e elevado dessa alma complexa. Quando vamos penetrando
um pouco além das primeiras aparências e dos possíveis, rápidos desvios, logo
descobrimos sem dificuldade um caráter sólido e magnânimo.
Teve
inimigos e rivais literários e mundanos, pérfidos e maldosos, mas não se queixa
nominalmente de ninguém: não há em toda a sua obra um vestígio de rancor ou de
vingança.
Quando,
na procissão de "Corpus Christi", desembainhou a sua espada para
ferir no toutiço um criado do paço, em defesa de dois amigos, sabia
naturalmente da gravidade do seu crime, que atingia a própria pessoa do rei:
traço de valentia generosa. Depois, preso, processado, metido em dura enxovia,
sob a ameaça de severíssima sentença, não denunciou os cúmplices, que haviam
escapado à ação da justiça, protegidos pela máscara que traziam e ao favor do
reboliço que se seguira ao incidente: traço de cavalheirismo inflexível.
Nem
sempre soube ter diante dos grandes aquelas atenções e resguardos que favorecem
os ambiciosos e protegem os tímidos, e isto sem dúvida contribuiu para as suas
desgraças. Num tempo em que a Inquisição pesava sobre os espíritos, e em que os
jesuítas desfrutavam todos os favores do paço, ele manifestava abertamente a
sua antipatia pelos "franchinotes", como se vê das suas cartas e de
alusões contidas nos "Lusíadas".
Outro
fato, indicativo da sua "imprudência": a comédia de "El-Rei
Seleuco" é tecida sobre a imaginária história de um soberano que cede sua
esposa ao filho, mortalmente enfermo de paixão pela madrasta; ora, entre dom
Manuel e seu filho o príncipe dom João houvera também uma comédia de amor e
casamento, ainda fresca na memória das gentes. Aqui, a situação dos personagens
era a inversa: dom Manuel, em vez de ceder a mulher amada, casara-se com a
princesa que o filho adorava. Mas nem por isso a peça deixaria de se prestar a
interpretações maliciosas: podia parecer, por exemplo, que, trocando as
posições, e fazendo o rei da comédia sacrificar o seu amor de esposo ao seu
amor de pai, autor quisesse sugerir o como dom Manuel devera ter procedido.
Visivelmente, Camões não tinha qualidades de diplomata.
Aliás,
em parte alguma o seu feitio aparece melhor do que nos seus verbos, e,
sobretudo, nos "Lusíadas". A unidade moral do poema, o seu ar de
espontaneidade viva e corrente, o constante vigor e nitidez dos sentimentos, a
correspondência dos traços psicológicos entre si e sua harmonia com o ambiente da
época tudo denota que esses cantos jorraram em largos jatos, dos veios
profundos de uma personalidade máscula, segura de si, sem sinuosidades e sem
hesitações.
Camões
aí está como ele era. Aí está o seu gosto da valentia e do gesto cavalheiroso,
como no episódio dos doze de Inglaterra e numa quantidade de pequenos passos
espalhados pelos mais cantos. Aí está o seu gênio um pouco fanfarrão, sob a
forma de cândidos raptos de patriótica ufania, como quando põe nos lábios de
Baco esta hiperbólica referência aos portugueses:
Temo que do
mar e do céu em poucos anos
Venham deuses
a ser, e nós humanos.
Aí
está o seu orgulho, como quando de clara a dom Sebastião nas últimas estrofes:
Nem me falta
na vida honesto estudo,
Com longa
experiência mistura do,
Nem engenho,
que aqui vereis presente,
Coisas que
juntas se acham raramente.
Aí
está a sua severa lealdade de soldado e cavalheiro, como nos conselhos que dá
ao jovem rei, no Canto X. Aí está o seu espírito de retidão e de justiça,
quando rijamente profliga a crueldade do seu admirado herói Afonso de
Albuquerque para com a desgraça do Rui Dias, a quem mandou matar por andar de
amores com uma rapariga do seu séquito; quando condena a ingratidão de dom
Manuel para com o bravo e honrado Duarte Pacheco; quando despreza e vergasta os
ambiciosos, os aduladores, os que vexam e espoliam o povo; e quando declara,
dizendo a verdade, que não dará jamais o seu louvor a quem não o mereça.
Aí
está, enfim, o seu radical pendor para a clareza e a decisão, visível em todo o
fundo moral e mesmo na composição e forma dos seus versos.
Vejamos,
para terminar, um novo aspecto desta individualidade frondosa. Aqui encontramos
o maior dos seus contrastes.
Sabemo-lo
galanteador, expansivo, inquieto, folgazão — e desventurado. Vem de Coimbra
para Lisboa após os estudos; entra no paço; é desterrado para o Ribatejo; volta
e segue a servir em Ceuta por dois anos; tenta partir para a Índia e a nau que
o leva torna atrás batida por uma tempestade; demora-se em Lisboa; jaz por oito
meses na prisão do Tronco; parte para a índia, sob o humilde gorro de soldado
raso; passa dezesseis anos entre a África, o Indostão, o Mar Vermelho, as
Molucas e a China, em viagens, tormentas, combates, amores, intrigas, prisões,
misérias, raivas, desesperos e saudades. Contudo, não só teve tempo para formar
uma ilustração fora do comum, como o teve para realizar uma obra literária composta
de três comédias, cerca de três centenas de sonetos, uma opulenta coleção de
églogas, oitavas, canções, odes, epístolas, endechas, glosas, e enfim um poema
épico em dez cantos, com 1.102 estrofes — fora as cartas e fora os ensaios que
inutilizou e as coisas que se perderam.
Essa
obra resume de certa forma o saber e as ideias do tempo. Está inçada de imagens
clássicas, de referências mitológicas, geográficas, históricas, astronômicas,
de comparações eruditas, de nomes e fatos, de mil coisas, enfim, que parecem
supor o manuseio constante de livros — se bem que devamos fazer largo crédito a
uma fenomenal memória, tratando-se de uma época em que os livros não podiam ser
adquiridos facilmente, e tratando-se de um homem cuja vida, como ele mesmo
disse, andou "por o mundo em pedaços repartida".
Temos,
pois, que ver, embora custe, ao lado do Camões irrequieto e derramado, um Camões
recolhido e meditativo, homem de letras completo, homem preparado, estudioso,
paciente, grande devorador de obras de todo o gênero, enfim, um tipo
disciplinado, assentado, literalizado, tradicionalista, que se nos afigura
exatamente o oposto do homem de ação, de iniciativa e de vida intensa.
Mas,
aqui, já passamos do tempera mento e do caráter nativo do poeta para a
brilhante e redundante figura social e literária do homem da Renascença e do
Portugal do século XVI, do homem representativo de um momento da civilização e
de um momento da história portuguesa.
AMADEU
AMARAL
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