Uma viagem musical de Mário de Andrade
Texto publicado em 1929. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Texto publicado em 1929. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Compêndio de
História da Música é o novo livro de Mário de Andrade. Grande formato, com os
subtítulos em cotas à margem. Numa história da música, a primeira coisa que
interessa é o método e a coordenação entre os assuntos, o tempo e o espaço.
Mário de Andrade tomou-os em ordem cronológica, se assim podemos dizer, e
tratou-os em conjunto, nas diversas manifestações nos vários países. Por
exemplo, vejamos o classicismo. Depois de mostrar o precário dos qualificativos
históricos e de dar o conceito "clássico" da música, estuda a
ópera-cômica e bufa, Scarlatti, o virtuosismo italiano, a reforma da ópera,
Gluck, os napolitanos discípulos de Scarlatti, a eclosão de Rameau,
"genializando a tradição nacional do melodrama francês", a luta dos
bufões, gluckistas e piccinistas. Passa depois para o mundo germânico, onde, no
tempo, também prevalecia a influência itálica. Aparece depois a música
instrumental fascinando a invenção germânica. Surgem Haydn e Mozart, a quem
chama "o protótipo da musicalidade humana. Faz a crítica do espírito
musical clássico e mostra como vem despontando o valor individual, que iria
prevalecer no romantismo. Refere a decadência da música religiosa e por fim
fala das fôrmas principais que o classicismo fixou: a sonata, a ária, a
abertura e o recitativo acompanhado.
Por esse
resumo de um capítulo, queremos mostrar que Mário de Andrade resolveu do melhor
modo o seu método, permitindo uma visão segura do conjunto, sem seccioná-lo de
país a país, ou de orientação a orientação. Naturalmente que isso faz com que
certos pontos sejam tratados muito por alto, o que talvez seja insuficiente
para os que não são versados na matéria. Mas o valor de um trabalho desses não
está no pormenor (claro está que esse deve ser sempre certo, como acontece
aqui) mas na vista-geral do fenômeno musical. É o que Mário de Andrade realiza
magnificamente, num traçado de linhas mestras, que não é esboço, mas schema. O fato musical aparece em si,
sem comparações nem explicações fora da música, salvo as referências de todo
imprescindíveis, não traz outra finalidade senão a da própria música. Para um
trabalho das proporções do Compêndio o sistema é seguro e justo. Todas as
expressões são fixadas, rápidas que sejam, e se o traço em si pôde ser
impreciso, tem o vigor necessário no conjunto.
Merece uma
especialíssima referência o último capítulo sobre a atualidade musical. Todas
as fôrmas e tentativas de variação harmônica ou melódica, todo
"experimentalismo instrumental, todas as insatisfações sonoras, toda essa
aparente desordem da música moderna, Mário de Andrade fixa, ponto por ponto,
batendo sempre justo, embora dele se possa discordar em generalizações.
Esta
notícia, não se escreve para louvar, mas, para coisa mais útil do que o desvalorizado
elogio, para divulgar o novo livro desse trabalhador infatigável, que é Mário
de Andrade, cuja ação intelectual cresce dia para dia. A ele havemos de voltar,
numa análise mais demorada. Vamos, agora, transcrever o trecho final do último
capítulo do Compêndio, para dar ao leitor vontade de lê-lo todo.
"A
música moderna se prende a revelar o movimento sonoro que passa. Só o presente
e o futuro são realmente tempo. O passado, por causa de ser fixo, imutável, é
muito mais espacial que temporal. O passarinho bonito enquanto vive é tempo.
Morto, empalhado, ele ocupa um lugar na vitrina do museu: é espaço. A Música de
agora baseia a sua rezão-de-ser no que está soando no momento e adquire a sua
compreensibilidade pelo que virá depois. O que passou: passou. O momento que
passa, o presente, não justifica o que passou. É o passado que justifica o
presente. Da mesma forma o presente justifica o que tem de vir. O crítico
musical russo Boris de Schloezer chamou a música de Strawinsky de
"objetivismo dinâmico"... Os músicos e literatos muitas vezes repetem
e generalizam hoje essa expressão que me parece estreita (Objetivismo) e falsa
(Dinamismo, por Cinematismo, movimento). Movimento sonoro, é o conceito da
música atual — única arte que realiza o Movimento Puro, desinteressado,
ininteligível, em toda a extensão dele. Este me parece o sentido estético,
técnico e, meu Deus!... profético da música da Atualidade.
"Alfredo
Lorenz no livrinho que está fazendo tanta sensação ("Musikgeschichte in Rhythmus
der Generationen”, Ed. Max Hesses, Berlim, 1928) conclui exatamente o
contrário: que a música moderna é polifônica e portanto espacial. Esse livro
aliás tem sido mais atacado que louvado... O defeito principal dele é ter uma
tese preestabelecida que a cultura do autor se esforçou por justificar. Alfredo
Lorenz acha que o movimento das gerações humanas obriga a Música a mudar de
conceito de 3 em 3 séculos: respectivamente Polifonia (Música-Espaço) e
Harmonia (Música-Tempo). Segundo o ritmo trissecular consecutivo de Música-espaço
e Música-tempo, calhou prá fase contemporânea os termos Música-espaço; e pela
fatalidade da tese o escritor foi obrigado a ver espaço na música de hoje. Deus
me livre de negar preocupação polifônica aos contemporâneos. Porém não tenho
tese e não posso aceitar a de Alfredo Lorenz. Existe polifonia como existe
harmonia, como existe melodia, como existe... tudo na música de agora. É a
fusão absoluta disso tudo, a "maior intimidade entre forma e
conteúdo", para me utilizar da frase de Wellesz, que implica a destruição
de espaço e das suas principais circunstâncias e fenômenos, e faz da música
atual nas suas manifestações mais características o livre jorro sonoro no tempo
que julgo ver nela e por onde a compreendo e quero bem.
"Como é
difícil explicar... Na verdade eu não pretendo ter descoberto a pólvora e sei
que qualquer mal-intencionado pode me contradizer falando que toda música é
tempo etc. Mas também é bobagem a gente pretender explicar pra
mal-intencionados... Sejamos desinteressados, isto é, sejamos artistas!..."
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...