Um livro anotado pelo Sr. D. Pedro II
Publicado em 1905, de autoria de Alencar. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
A propósito da morte do sr. Garcia Merou, publicamos abaixo uma carta que a esse escritor e diplomata argentino escreveu, há anos, o Sr. Barão de Alencar, dando conta de umas anotações do Imperador a um livro do pranteado publicista platino.
Publicado em 1905, de autoria de Alencar. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
A propósito da morte do sr. Garcia Merou, publicamos abaixo uma carta que a esse escritor e diplomata argentino escreveu, há anos, o Sr. Barão de Alencar, dando conta de umas anotações do Imperador a um livro do pranteado publicista platino.
Meu caro
colega.
Tenho em meu
poder um exemplar do seu livro Perfiles y
Miniaturas, anotado pelo Sr. D. Pedro II, de tão saudosa e venerável
memória.
É o mesmo
exemplar que me fez o favor de oferecer em Buenos Ayres a 19 de junho de 1889,
quando acabava de publicar o volume em que recolheu os artigos avulsos a que
deu aquele título e que se me proporcionou, mais tarde, a ocasião de remeter a
sua majestade, entre outras obras de escritores argentinos.
Devo a
distinção desse depósito literário a Sua Alteza imperial a Sra. D. Isabel,
condessa d'Eu, que me o confiou pouco tempo depois do falecimento de seu
augusto pai; e se para mim, essa circunstância significa o, testemunho
espontâneo e generoso com que me favoreceu, quem melhor podia dá-lo, da estima
que me tinha o Imperador, — para o autor dos Perfiles y Miniaturas, reúne à honra que mereceu de sua majestade
uma prova manifesta de apreço da ilustre princesa.
O ilustre Sr.
D. Pedro II, meu caro colega, leu seu livro em Vichy, na segunda quinzena de
agosto de 1891, — quatro meses escassos antes de seu infausto passamento,
ocorrido, como sabe, era Paris, na madrugada do dia 5 de dezembro do mesmo ano.
Já estava bem doente e talvez fosse um dos últimos livros que lera.
O volume
conclui com esta citação melancólica de Schiller: “He naufragado en ei tempestuoso mar dei mundo; he visto Ias
esperanzas de mi vida sumerjirse eu ei abismo; no me queda ya sino el recuerdo
desgarrador de su perdida y este recuerdo me enloqueceria, si no tratara de
ahogarlo, dando otra direccion a mi actividad.”
O Imperador
marcou o grito d'alma do poeta, e escreveu por baixo, terminando a leitura do
livro, as seguintes palavras, que transcrevo textualmente:
— Há muito
não leio escrito que tanto me atraísse. — É sobretudo notável estilista. —
Vichy, 26 de agosto de 1891.
São estas
palavras que me levam a dirigir-lhe a presente carta pela imprensa, e escolho
para esse fim, por dever de cortesia, um dos principais diários do seu país.
Elias lhe pertencem e eu me julgo tão obrigado a dá-los à publicidade como se
tivesse recebido a incumbência de fazê-lo, quer pela satisfação que lhe isso há
de causar, quer pelo bem que lhe pôde advir da divulgação do juízo invejável
que obteve do espírito superior e culto daquele que foi denominado em vida — o
Protetor das letras.
Com efeito,
a admiração que o Sr. D. Pedro II tributava ao talento só era nele igual ao
apreço que lhe inspiravam os homens de bem. Aos grandes poetas, especialmente,
rendia o preito de sua alta e competente autoridade era matéria literária. Ele
não perdia ensejo de manifestar o domínio que a poesia exercia sobre a sua alma
contemplativa e que se revelavam nesse olhar de vidente que iluminava o seu
semblante nas longas horas do exílio. É conhecida a sua entrevista cora Victor
Hugo, e ainda nos seus derradeiros dias escrevia no álbum de um distinta
senhora da sociedade parisiense, estas linhas que o comprovam: “l’arbre de Ia vie porte deux fruits
savoureux: — La jouissance de La poésie et le commerce avec les bons.
O Imperador
começou a leitura dos Perfiles y
Miniaturas com a imparcialidade do crítico. Era a primeira vez que se lhe
deparara, meu distinto amigo, um escrito seu e queria julgar o escritor.
Parece, porém, pelas notas esparsas de certo ponto em diante, que uma vez
formada a sua opinião a esse respeito, o seu livro converteu-se em uma espécie
de interlocutor íntimo, que lhe recordava a cada passo o nome de um autor e de
um artista ou o título de uma obra, que lhe eram familiares, avivando-lhe
reminiscências até da juventude.
Assim, a
propósito de sua citação de Crébillon, cujos excelentes dramas são tão pouco
conhecidos, lembrou-se de ter traduzido em verso, na sua mocidade, o Idomenée desse autor.
Ao ler a sua
referência ao Asno de Ouro, de
Apuleo, lembrou-se também de ter começado a sua tradução, e acrescentou: Vale a pena conhecer o original.
Mais
adiante, concordando com a sua opinião sobre Eurípides, que fixou a língua da
tragédia grega, escreveu ao lado:
Traduzi-o quase todo o mais perto da letra
possível, para bem senti-lo. Há pouco, achou-se um trecho desconhecido dele, e
creio que Weil escreveu um artigo sobre esse achado.
Não há
capítulo em que não se veja à margem uma observação de seu punho ou traço
sublinhando palavras, frases e mesmo períodos inteiros, — o que mostra que sua
majestade leu os 23 artigos do seu livro, página por página.
Não me
atrevo a afirmar-lhe, e isso para não faltar à lógica dos reparos expressos era
algumas notas, que todos os termos e trechos sublinhados tivessem a aceitação
do Sr. D. Pedro II; mas, em geral, o traço contínuo e insistente deixa supor
uma plena aprovação.
Na
impossibilidade de dar-lhe uma ideia perfeita da significação das sublinhas,
limitar-me-ei a reproduzir as anotações principais da parte crítica, que
encerra benévolos conselhos.
Ao primeiro
artigo, que tem por título: Sinfonia de
Verano, o Imperador observou: É
bonito, mas afetado. A afetação levou-o mesmo ao emprego de expressões
arriscadas.
Artigo 4º: Fantasia Noturna. Nota do Sr. D. Pedro
II: Não está má esta pintura, às vezes
algum tanto extravagante, do cólera. Que diferença da bela simplicidade de
Tucídides na peste de Atenas!
Artigo 7º: Música Ambulante. Sua majestade escreveu
no fim: Que riqueza de expressão!
Artigo 9º: Uma Limosna. Esse artigo valeu-lhe o
maior elogio que se pôde fazer à pena de um escritor, ou, antes, um verdadeiro
triunfo, nestas significativas palavras do augusto leitor: — Sinto não conhecer o Sr. Merou.
Artigo 11º: No mas feretros — Nota do Sr. D. Pedro
II: Quereria que não abusasse tanto da forma;
porém tem muito talento.
Artigo 16º: Sobre un poeta. O poeta de que se trata
é d. Rafael Nuñes, então presidente dos Estados Unidos de Colômbia. O Imperador
declarou que não conhecia as suas poesias, e ao ler as que menciona o seu
artigo como magistrais e que têm por título — Que sais-je! e Ideales, classificou-as de belíssimas, chamando a
atenção para as duas seguintes estrofes da primeira:
De Ia vida entera
Uma hilacion latente sobrevive,
Cuyo lejano punto de partida
Fué tal vez anterior a Ia actual
vida.
................................................................
— Por Ia luz dei recuerdo
Tal vez citando inclinados
recorremos
De desierta Necrópolis Ias
ruinas,
Nos sentimos viver a una
distancia
Remota mucho mas que nuestra infancia.
Artigos 17º
a 21º: Sarah Bernard. O primeiro, em
francês, sobre a pessoa e vida da artista, e os outros intitulados Fedora, Frou-fron, La dama de Ias Camelias,
e Phedra. O Sr. D. Pedro II não pôde
evadir-se a reconhecer que havia razão nos que lhe exprobraram de dar a essa
artista, embora notável, mais importância que a que tinha, e disse com
franqueza que a achava inferior à Desclée em Frou-fron e em Phedra à
Ristori, no seu belo movimento de
repulsão involuntária.
Há nesse
capítulo uma comparação entusiasta entre Sarah Bernard, no desempenho de seu
papel de Fedra, e Emma Bovary. Lê-se à margem a seguinte anotação de sua
majestade:
— “Com efeito, é um dos melhores romances de
Gustavo Flaubert; mas a fria sensualidade da sua heroína desperta considerações
que não caberiam em uma ligeira nota.”
Já antes, a
propósito de Margarita Gauthier — a Dama
das Camélias, discordara o Sr. D. Pedro II de sua apreciação, de que não se
havia ainda escrito nada mais humano do que essa história de um amor que teve
por desenlace a morte. Escreveu o Imperador: — Não penso assim.
Deixo de
copiar, para não alongar em demasia esta carta, várias outras notas com que o Sr.
D. Pedro II enriqueceu ainda mais os seus eruditos artigos, sobretudo quanto à
literatura grega. Creio que as que transcrevi são suficientes para o fim que
teve em vista, que foi unicamente tornar público o juízo, que o autor desse
livro mereceu como escritor e literato, do sempre lembrado imperador do Brasil,
membro do Instituto de Franca.
Fui parco e
chão talvez demais, porém fui sincero, obedecendo com escrupuloso cuidado à
antiga máxima latina: Cuique sua.
Pagando-lhe
por essa fôrma umas velhas dívidas literárias, sou com a mais distinta
consideração e particular estima,
Alencar.
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