Romantismo e Tradição
Texto escrito publicado em 1924. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica é de Iba Mendes (2017)
Texto escrito publicado em 1924. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica é de Iba Mendes (2017)
O volume de Pierre Lasserre sobre o romantismo francês, constituiu durante muito tempo o manancial mais autorizado de todo um grupo de críticos e pensadores, para os quais uma revisão completa dos valores do último século parecia mais que indispensável, da maior urgência. Para esses críticos e para esses pensadores não havia fugir à tese defendida pelo autor do Le Romantisme Français. Nela era sustentada sobretudo a necessidade de um retorno à tradição clássica. Mas a dificuldade para a aplicação de suas conclusões, decorria precisamente dessa afirmação, que é a sua razão de ser. Ninguém se entendia sobre o significado real da palavra classicismo. Essa palavra foi o ponto de discordância dos críticos que aceitaram de bom grado a excomunhão do "estúpido século". Cada qual era clássico à sua maneira, a reação clássica chegou mesmo a ser moda em Paris, essa terra que bem podia se chamar o Planalto de Pamir de todas as modas. Mas o móvel primitivo dessa reação, não tardou a perder-se e desaparecendo o ponto de partida que era a consciência da necessidade de uma revisão total de valores de um século, tal reação perdia por isso mesmo toda a sua significação, — os críticos já haviam tentado, e com sucesso, essa revisão de valores. Passou-se então a proceder, não já a uma revisão de valores, mas à negação completa dos valores do século passado. A tese antirromântica comportava desde o princípio uma série de antíteses. Perdida agora a sua maior força, a sua razão de ser, as antíteses ganharam adeptos e o propósito inicial voltou a preocupar os espíritos. A tese de Lasserre não continha tudo o que se poderia dizer sobre o assunto. Além disso, o positivismo mal disfarçado ou mesmo abertamente confessado, o doutrinarismo excessivo, a injustiça até e a estreiteza do dogma não convinham a certos espíritos ansiosos por encontrar um ponto de vista mais amplo, onde pudessem se mover com uma liberdade que não oferecia a tese. A reação contra o antirromantismo é ainda bem recente, mas os seus aspectos não deixam de ser mais variados e sobretudo menos estreitos que os da teoria de Lasserre. A convicção de que o romantismo não é somente um dos seus momentos e que, ao contrário, tem subsistido através de todos os séculos ao lado ou como intermitente de uma tradição clássica, uma tradição romântica, não menos respeitável, é um dos fortes argumentos com que conta a nova reação. O século passado não creia, antes continua uma tradição.
Para a
vitória desse ponto de vista, uma das contribuições mais interessantes que
ultimamente foram trazidas, é a recente polêmica entre os dois críticos ingleses
T. S. Elliot e J. Middleton Murry, iniciada no ano passado na revista londrina The Adelphi e prosseguida com ó artigo
deste último no número de abril deste ano de The Criterion. É fácil calcular a importância da contribuição dessa
polêmica no movimento moderno das ideias, pelo valor inegável dos dois
espíritos que nela se empenharam. Estética que apesar de mover-se por um
impulso nitidamente nacional, e talvez por isso mesmo procurará dar aos seus
leitores uma resenha de todas as tendências modernas do pensamento, lamenta não
poder transcrever por inteiro o notável artigo de Middleton Murry limitando-se
a dar um ligeiro resumo.
A convicção
profunda do autor de The Problem of Style
é que a tradição do romantismo é tão elevada e tão sublime com a tradição do
classicismo e que na presente condição da consciência europeia "é de uma
importância mais imediata para nós." Para mim, diz ele, a questão de
fundamental importância é a questão da relação entre a literatura e a religião.
E é em torno dessa questão que gira todo o seu artigo do Criterion. O crítico chega a supor entretanto que o esplendor do
espírito religioso, no sentido dogmático, não coincide com o esplendor de uma
literatura e que a contrário, um está na razão inversa do outro. É possível
mesmo que a decadência da religião dogmática, devida à impossibilidade de
exprimir uma realidade religiosa e de satisfazer aos impulsos religiosos do
espírito, seja uma condição indispensável para que a literatura venha a
florescer. É possível que chegue uma época em que os espíritos mais subtis
sejam levados a ser da Igreja, mas sem pertencer a ela: precisamente pelo fato
de serem profundamente religiosos, trabalham em completa independência do que
passa por religião em sua época. O romantismo é para ele alguma coisa que
sucedeu à alma europeia depois do Renascimento, e o fato essencial do
Renascimento é que o homem afirmou a sua completa independência de uma
autoridade espiritual externa.
"Homens
que desde muito tempo se irritavam contra as contrições impostas por uma
religião estabelecida e onipotente, que perdera o contato com a alma
individual, pela mera magnitude de sua organização ganharam confiança nos seus
próprios impulsos, graças à revelação inesperada de uma época anterior à
sua." Época em que o espírito florescia livre daquelas contrições e em que
homens como eles viviam sem o terror constante da morte e da vida futura. Para
se avaliar o que significou para os homens o Renascimento, o crítico cita a
famosa estrofe de Villon, que é como que o grito profundo da humanidade nas
"épocas obscuras":
"Dites moi ou
nen quel pays
Est Flora Ia belle
Romaine
Arquipiada ni Thais
Qui fust sa cousine
germaine?"
Para aqueles homens, "Flora a bela romana" nem Arquipiada nunca tiveram uma existência real. "Nada havia para Villon além do presente, e das sombras da Igreja e da condenação da Igreja pairando sobre todas as coisas." O âmbito do espírito humano estava circunscrito.
Assim a
Renascença pareceu por um momento o fim do terror. "O indivíduo podia de
novo permanecer só, após mais de dez séculos. Galileu construiu o seu
telescópio e descobriu que a terra se movia em torno do sol. Foi essa a grande
descoberta simbólica da Renascença. E a obra de Shakespeare é a reação do
espírito profético diante da descoberta." A descoberta de Galileu era
apenas "o sinal visível e exterior de um acontecimento interior e
espiritual, acontecimento que naturalmente agiu sobre a alma de Shakespeare. O
Homem não era o centro do Universo e sentia-se isolado em face de seu destino.
A consciência moderna começava a pesar sobre os homens." A base da
consciência moderna está nisso, que o indivíduo se coloca aparte e isolado,
"sem o apoio de nenhuma autoridade, e procura julgar por si mesmo da vida
de que ele é uma parcela." A consciência moderna é em sua base uma
consciência de rebelião; ela começa com a exigência de que a vida deva
satisfazer o sentimento individual de justiça e de harmonia. A essa exigência
se opõe o cristianismo ortodoxo e dogmático, para o qual a injustiça e o terror
serão redimidos numa vida futura. A consciência moderna começa historicamente
com o repúdio do Cristianismo organizado; começa com o momento em que os homens
encontraram em si próprios a coragem para duvidarem da vida futura e para se
libertarem de suas ameaças, a fim de viver esta vida mais amplamente. O brasão
da consciência Ocidental desde a Renascença resume-se nestas palavras: "só
é verdadeiro aquilo que eu sei que é verdadeiro". As várias fases da
consciência moderna estão marcadas pelas respostas às perguntas: "para que
existo eu?" e "quais os objetos que pôde abranger o meu
conhecimento?”
Houve sempre
dois grandes tipos de respostas à última pergunta, e são: "conheço o mundo
exterior" e "conheço-me a mim mesmo". Em qualquer momento da
história da humanidade, uma ou outra costuma predominar. Porque elas
correspondem a duas espécies de conhecimento. O conhecimento do mundo exterior
é um conhecimento em que operam as leis de causa e efeito; é um conhecimento
racional de um mundo de necessidade, onde as condições totais em um dado
momento, são totalmente determinadas pelas condições totais no momento
imediatamente anterior. A liberdade está ausente nesse mundo e, de fato,
nenhuma liberdade é reconhecida. O conhecimento do "eu", por outro
lado, ou, como se pôde dizer por uma questão de simetria, o conhecimento do
mundo interior, não é dirigido pelas leis de causa e efeito, é um conhecimento
irracional, imediato, de um mundo de liberdade onde as condições totais em um
dado momento nunca são totalmente determinadas pelas condições totais no
momento anterior. A necessidade é uma ficção nesse mundo, e de fato, nenhuma
necessidade é reconhecida nesse mundo.
"Ambas
essas espécies de conhecimento são conhecimentos. É tão impossível para mim
negar que dois mais dois fazem quatro como negar que eu sou livre." Mas
são conhecimentos diferentes e mesmo irreconciliáveis. "Um procura se
completar pedindo que o mundo interior seja da mesma substância e sujeito às
mesmas leis que o mundo exterior, que a minha alma integral e inviolável seja
uma parte do mundo de necessidade, o que parece absurdo. O outro procura se
completar, pedindo que eu conheça o mundo exterior imediatamente como eu me
conheço a mim mesmo, o que parece impossível." É esse o grande paradoxo da
moderna consciência, paradoxo que é, de fato, muito mais antigo que o
Renascimento. "É universal e eterno no espírito humano." Neste
momento, depois de altos e baixos em que tem vivido a humanidade contemporânea,
"nós começamos a suspeitar que o paradoxo da consciência moderna chega à
sua lenta solução."
É preciso
todavia insistir nisto, que "em primeiro lugar esse paradoxo, constitui um
problema religioso, ou, mais exatamente, o problema religioso o único problema
religioso — e, em segundo lugar, que a moderna literatura, desde a Renascença
até hoje se têm ocupado sobretudo com ele."
Agora é
claro, devido à verdadeira natureza do paradoxo, que não é concebível nenhuma
solução intelectual. O fato primário é a consciência que o homem possui da sua
própria existência, seu conhecimento da sua própria liberdade, e esse
conhecimento é um conhecimento irracional. O homem não pôde negar nada do que
faz, simplesmente porque ele será obrigado a negar a sua própria negação. Não
pôde realmente se mecanizar e se tentar fazê-lo, ele se enganará a si próprio.
A tentativa para encontrar uma resolução no mundo esterno, sub specie necessitatis, é condenada ao insucesso. Portanto a
solução deve ser procurada no mundo interior, sub specie libertatis. Em outras palavras o homem é inevitavelmente
levado a procurar por uma compreensão não-racional do mundo. Ele não pôde se
socorrer a si mesmo; ele precisa encontrar a harmonia; ele não pôde viver em
rebelião; ele necessita reintegrar-se na vida. Desse modo vemo-lo prender-se na
literatura a esses momentos de profunda apreensão:
"When ali the burden and the mistery
Is lightened and.
We see into the light of things."
"A realidade de tais momentos de apreensão, é indiscutível para aquele que apreende; a qualidade de visão parece-lhe indubitável. Nesses momentos ele conhece o mundo tão claramente como a si mesmo."
Essa
apreensão pôde ser chamada apreensão mística, e não é um erro afirmar que a
característica realmente distintiva do "movimento romântico" é
precisamente essa solução mística do paradoxo. "Toda a obra de Rousseau
baseia-se nela, que constitui por outro lado o centro criador de Wordsworth, Shelley, Keats e Coleridge.
O mais verdadeiro e o mais profundo conhecimento que eles encontraram dentro de
si próprios realizou-se sempre em um momento de imediata apreensão da unidade
do mundo." Eles sentiam que o mundo exterior não era sujeito à lei
racional de necessidade; era um organismo que eles conheciam tal como conheciam
a vida existente nele. E há de parecer estranho, que a sua apreensão deva ser também
de certo modo, uma apreensão de necessidade: da necessidade de que aquilo que eles
vêm deva ser assim e não de outra fôrma. Mas isso só parecerá estranho porque
nós vivemos hipnotizados pelas palavras e parece-nos difícil imaginar que
existam duas necessidades assim como dois conhecimentos. Existe a necessidade
do mundo inanimado concebido pelo intelecto, que é a necessária dependência do
efeito com relação à causa, v existe a necessidade do organismo vivo,
apreendido imediatamente, uma tendência para seguir sua própria lei interior de
vida. A visão "mística" é uma visão de necessidade orgânica.
Semelhante
resolução do grande paradoxo é para Murry o característico essencial do chamado
movimento romântico. "Não é preciso dizer que constitui uma resposta
profundamente religiosa a uma questão também profundamente religiosa."
Quase todos os verdadeiros românticos formulam essa "percepção de
necessidade orgânica como uma percepção de Deus." Será pelo menos uma
anunciação do divino, supõe o articulista.
Toda a época
em que domina a chamada consciência moderna é, pode-se dizer, uma época
romântica. O curto per iodo a que geralmente damos esse nome, não é mais que um
pequeno segmento de uma grande curva: romantismo dentro do romantismo. O autor
do "Probleme of Style" cita
sobretudo Shakespeare como profeta da "moderna consciência". E diz:
"Antes de Shakespeare, a história espiritual do homem — refiro-me somente
ao Ocidente — está compreendida dentro da Igreja; com ele, transborda da
Igreja."
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