Escrito por Mário de Alencar e publicado no ano de 1921. Pesquisa, transcrição
e atualização ortográfica de Iba Mendes
(2017)
Em 1888, quando me acheguei ao grupo, com uma timidez que se me afigura hoje ousadia, Bilac era o mais recente dos habituados: Patrocínio, o maioral da família boêmia; e os outros eram já para mim grandes nomes: Murat, Coelho Neto, Porapea, Aloísio e Artur de Azevedo, Pardal Mallet, Guimarães Passos, Paula Ney e Alcindo Guanabara. Só Artur Azevedo tinha posição, segura; dos outros, um Aloísio era exclusivamente escritor de livro, Murat iniciava advocacia, os mais flutuavam no jornalismo, colaboradores ou redatores, levados de esperanças ou de sonhos que não faziam sentir muito os apertos quotidianos. Entre todos, Bilac surgiu-me como uma alma escoteira, a carregar sobre si, física e espiritualmente, tudo o que era seu.
Escrevia crônicas
para “A Cidade do Rio”, onde Patrocínio pagava então os colaboradores
pontualmente com um farto almoço na própria casa do jornal e em promessas
infinitas, que eventualmente reduzia a dinheiro em horas incertas de fortuna e
prodigalidade. Bilac morava em casa de cômodos, como um pobre, ou menos que um
estudante, pois nem tinha livraria. Mas era dos mais lidos e cultos do grupo
boêmio; as suas leituras eram feitas em livros de empréstimo, ou nos volumes
pequeninos da “Bibliotheque Nationale”, que se vendiam naquele tempo a 300 réis
e cabiam sem constrangimento num bolso do paletó. Lia-os em bonde ou em casa; e
assim conheceu o que havia de maior e melhor na extensa biblioteca minúscula.
Lembro-me bem do exemplar de “Romeu e Julieta”, que o acompanhou alguns dias, e
sobre o qual ele traduziu com apaixonada vida a cena do balcão. Lido e às vezes
relido o volumezinho, perdia-se, e Bilac ia continuando escoteiro em seu
caminho boêmio, leve, despreocupado, m a s levando consigo um cabedal literário
que aumentava sem ele dar por isso e que podiam invejar outros pesadamente
instalados na vida e nas bibliotecas. Não pensava em alardear leitura, nem
sabedoria, nem coisa nenhuma. Era sempre como uma ave contente de cantar ao sol
e contente das outras. Por esse tempo, trabalhava Patrocínio num plano de levar
à Europa, em vapor especial fretado, os seus amigos de letras, da “Cidade do
Rio”, e os que a frequentavam. Iríamos todos, mas ao cabo só pode ele mandar
Bilac, em vapor comum, como correspondente da “Cidade do Rio”, em Paris; e ali
esteve enquanto durou a aura de caprichosa fortuna de Patrocínio. De volta da
Europa, Bilac era a mesma criatura, despreocupada, flutuante, simples, a viver
no seu mundo de sonho, de poesia e de espírito, alheio à revolução que se operava
em torno dele, menos no que podia converter-se em matéria de gracejo.
Entretanto, as circunstâncias fizeram dele vítima absurda da política rancorosa
daqueles tempos. Colaborador literário de “O Combate”, sofreu a culpa de ser
amigo de Pardal Mallet e pagou-a como imaginado cúmplice da conspiração numa
prisão da fortaleza da Lage.
Atribuíam-lhe
uns versos, de que era autor Guimarães Passos, e que celebravam, com as mesmas
rimas e fecho em todas as quadras, as atitudes do almirante Custódio de Mello.
Dizia a primeira das quadras:
Tipo serôdio
E amarelo
Quem é? Custódio
José de Mello.
Bilac desforrou-se com boemia, chacoteando em palestras: depois de solto, o ridículo dos fanfarrões do poder. A sua vingança não foi além do remoque e não assumiu a fôrma de rancor. A simples extravagância dessa prisão devia pô-lo a salvo da suspeita na revolta de 1893; pois ainda aí ele sofreu. No mesmo dia 6 de setembro, à tarde, encontrei-o em companhia de Guimarães Passos e de um moço, de nome creio que Freire, camarada recente dos dois. A nova da revolta surpreendia-nos a todos e fomos curiosamente observar o que se passava no largo do Paço. Assisti ao jantar dos três no Hotel Globos e todos comentávamos com espanto e galhofa o novo levante. Dias depois tive a notícia de que, denunciados por aquele Freire como partidários de Custódio, Guimarães Passos fora recrutado e Bilac fugira para Minas. Aquele Freire foi depois o emissário que levou para Paraná a ordem de fuzilamento de Serro Azul e outros revolucionários. Bilac permaneceu em Minas até passar a borrasca de delações e, chegando aqui tranquilamente, foi por maior precaução apresentar-se ao chefe de polícia, que era seu conhecido. Não o recebeu o chefe e reteve-o preso dois dias. Fui vê-lo e passei algumas horas ouvindo-o rir da sua própria ingenuidade e da estupidez medrosa do poder público. Suponho que entretanto a polícia revolvia o seu arquivo, à cata do libelo de culpa de Bilac, ou porventura maquinava na retenção do poeta um motivo de notoriedade do seu zelo pela salvação do Brasil. Bilac sorria surpreso da atribuição perigosa que davam à sua presença. Era como se a uma cigarra, que só se alimenta de orvalho e de sol, atribuíssem a ação rasteira e clandestina de uma saúva ou raivosa.
Mas enfim,
passaram as revoltas, e efeito da idade ou da cigarra aprendeu a ser também
formiga. Inspetor escolar, secretário da Prefeitura, secretário do Congresso
Internacional, Bilac foi modelar em diligência, exatidão e método de trabalho.
Trabalho administrativo, incumbência que tomasse a seu cargo, particular ou
pública, era desempenhada com a nitidez pontilhosa com que ele compunha os seu
versos. O artista desdobrou-se também num paciente construtor de dicionário, e
o orador acadêmico surgiu um dia construtor de civismo.
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