Eça de Queirós: “O Primo Basílio”
Crítica escrita por Machado de Assis em 1878, sobre a obra "O Primo Basílio de Eça de Queirós". Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Sob a
epígrafe Literatura realista,
encontra-se no Cruzeiro, desta
Capital, número 105, de 16 de abril de 1878, um longo artigo de crítica ao Primo Basílio, de Eça de Queirós.
Firma-o ELEAZAR, antigo pseudônimo de um dos mais notáveis prosadores da nossa
língua e que é, hoje, o humorista original e justamente querido de tantos
livros excelentes.
É tão raro
atacar, mesmo de passagem, a obra do inesquecível autor português, que bem vale
a pena reproduzir, nesta seção dos Annaes,
essa curiosíssima página esquecida.
Logo às
primeiras linhas, o leitor encontrará, sobre o Crime do Padre Amaro, o trecho a que Eça de Queiroz respondeu em
nota à segunda edição desse romance.
***
Um dos bons
e vivazes talentos da atual geração portuguesa, o Sr. Eça de Queirós, acaba de
publicar o seu segundo romance, o Primo
Basílio. O primeiro, O Crime do Padre
Amaro, não foi decerto a sua estreia literária. De ambos os lados do
Atlântico, apreciávamos há muito o estilo vigoroso e brilhante do colaborador
do Sr. Ramalho Ortigão, naquelas agudas Farpas, em que aliás os dois notáveis
escritores formaram um só. Foi a estreia no romance, e tão ruidosa estreia, que
a crítica e o público, de mãos dadas, puseram desde logo o nome do autor na
primeira galeria dos contemporâneos. Estava obrigado a prosseguir na carreira
encetada; digamos melhor, a colher a palma do triunfo. Que é, e completo e
incontestável.
Mas esse triunfo é somente devido ao trabalho
real do autor? O Crime do Padre Amaro
revelou desde logo as tendências literárias do Sr. Eça de Queirós e a escola a
que abertamente se filiava. O Sr. Eça de Queirós é um fiel e aspérrimo
discípulo do realismo propagado pelo autor do Assommoir. Se fora simples
copista, o dever da crítica era deixá-lo, sem defesa, nas mãos do entusiasmo
cego, que acabaria por matá-lo; mas é homem de talento, transpôs ainda há pouco
as portas da oficina literária; e eu, que lhe não nego a minha admiração, tomo
a peito dizer-lhe francamente o que penso, já da obra em si, já das doutrinas e
práticas, cujo iniciador é, na pátria de Alexandre Herculano e no idioma de
Gonçalves Dias.
Que o Sr.
Eça de Queirós é discípulo do autor do Assommoir, ninguém há que o não conheça.
O próprio O Crime do Padre Amaro é
imitação do romance de Zola, La Faute de
l'Abbé Mouret. Situação análoga, iguais tendências; diferença do meio;
diferença do desenlace; idêntico estilo; algumas reminiscências, como no
capítulo da missa, e outras; enfim, o mesmo título. Quem os leu a ambos, não
contestou decerto a originalidade do Sr. Eça de Queirós, porque ele tinha, e
tem, e a manifesta de modo afirmativo; creio até que essa mesma originalidade
deu motivo ao maior defeito na concepção de O
Crime do Padre Amaro. O Sr. Eça de Queirós alterou naturalmente as
circunstâncias que rodeavam o Padre Mouret, administrador espiritual de uma
paróquia rústica, flanqueado de um padre austero e ríspido; o Padre Amaro vive
numa cidade de província, no meio de mulheres, ao lado de outros que do
sacerdócio só têm a batina e as propinas; vê-os concupiscentes e maritalmente
estabelecidos, sem perderem um só átomo de influência e consideração.
Sendo assim, não se compreende o terror do
Padre Amaro, no dia em que do seu erro lhe nasce um filho, e muito menos se
compreende que o mate. Das duas forças que lutam na alma do Padre Amaro, uma é
real e efetiva — o sentimento da paternidade; a outra é quimérica e impossível
— o terror da opinião, que ele tem visto tolerante e cúmplice no desvio dos
seus confrades; e não obstante, é esta a força que triunfa. Haverá aí alguma
verdade moral?
Ora bem,
compreende-se a ruidosa aceitação de O
Crime do Padre Amaro. Era realismo implacável, consequente, lógico, levado
à puerilidade e à obscuridade. Víamos aparecer na nossa língua um realista sem
rebuço, sem atenuações, sem melindres, resoluto a vibrar o camartelo no mármore
da outra escola, que aos olhos do Sr. Eça de Queirós parecia uma simples ruína,
uma tradição acabada. Não se conhecia no nosso idioma aquela reprodução
fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis. Pela primeira vez, aparecia
um livro em que o escuso e o — digamos o próprio termo, pois tratamos de
repelir a doutrina, não o talento, e menos o homem, — em que o escuso e o torpe
eram tratados com um carinho minucioso e relacionados com uma exação de
inventário. A gente de gosto leu com prazer alguns quadros, excelentemente
acabados, em que o Sr. Eça de Queirós esquecia por minutos as preocupações da
escola; e, ainda nos quadros que lhe destoavam, achou mais de um rasgo feliz,
mais de uma expressão verdadeira; a maioria, porém, atirou-se ao inventário.
Pois que havia de fazer a maioria, senão admirar a fidelidade de um autor, que
não esquece nada, e não oculta nada? Porque a nova poética é isto, e só chegará
à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe
um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha. Quanto à ação em si, e os
episódios que a esmaltam, foram um dos atrativos de O Crime do Padre Amaro, e o maior deles; tinham o mérito do pomo
defeso. E tudo isso, saindo das mãos de um homem de talento, produziu o sucesso
da obra.
Certo da
vitória, o Sr. Eça de Queirós reincidiu no gênero, e trouxe-nos O Primo Basílio, cujo êxito é
evidentemente maior que o do primeiro romance, sem que, aliás, a ação seja mais
intensa, mais interessante ou vivaz nem mais perfeito o estilo. A que atribuir
a maior aceitação deste livro? Ao próprio fato da reincidência, e, outrossim,
ao requinte de certos lances, que não destoaram do paladar público. Talvez o
autor se enganou em um ponto. Uma das passagens que maior impressão fizeram, no
O Crime do Padre Amaro, foi a palavra
de calculado cinismo, dita pelo herói. O herói de O Primo Basílio remata o livro com um dito análogo; e, se no
primeiro romance é ele característico e novo, no segundo é já rebuscado, tem um
ar de cliché; enfastia. Excluído esse lugar, a reprodução dos lances e do estilo
é feita com o artifício necessário, para lhes dar novo aspecto e igual
impressão.
Vejamos o
que é O Primo Basílio e comecemos por
uma palavra que há nele. Um dos personagens, Sebastião, conta a outro o caso de
Basílio, que, tendo namorado Luísa em solteira, estivera para casar com ela;
mas falindo o pai, veio para o Brasil, donde escreveu desfazendo o casamento.
—Mas é a Eugênia Grandet! exclama o
outro. O Sr. Eça de Queirós incumbiu-se de nos dar o fio da sua concepção.
Disse talvez consigo: —Balzac separa os dois primos, depois de um beijo (aliás,
o mais casto dos beijos). Carlos vai para a América; a outra fica, e fica
solteira. Se a casássemos com outro, qual seria o resultado do encontro dos
dois na Europa? — Se tal foi a reflexão do autor, devo dizer, desde já que de
nenhum modo plagiou os personagens de Balzac. A Eugênia deste, a provinciana
singela e boa, cujo corpo, aliás robusto, encerra uma alma apaixonada e
sublime, nada tem com a Luísa do Sr. Eça de Queirós.
Na Eugênia,
há uma personalidade acentuada, uma figura moral, que por isso mesmo nos
interessa e prende; a Luísa — força é dizê-lo — a Luísa é um caráter negativo,
e no meio da ação ideada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral.
Repito, é um
títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo outra
coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência.
Casada com
Jorge, faz este uma viagem ao Alentejo, ficando ela sozinha em Lisboa;
aparece-lhe o primo Basílio, que a amou em solteira. Ela já o não ama; quando
leu a notícia da chegada dele, doze dias antes, ficou muito
"admirada"; depois foi cuidar dos coletes do marido. Agora, que o vê,
começa por ficar nervosa; ele lhe fala das viagens, do patriarca de Jerusalém,
do papa, das luvas de oito botões, de um rosário e dos namoros de outro tempo;
diz-lhe que estimara ter vindo justamente na ocasião de estar o marido ausente.
Era uma
injúria: Luísa fez-se escarlate; mas à despedida dá-lhe a mão a beijar, dá-lhe
até entender que o espera no dia seguinte. Ele sai; Luísa sente-se
"afogueada, cansada”, vai despir-se diante de um espelho, "olhando-se
muito, gostando de se ver branca". A tarde e a noite gasta-as a pensar ora no
primo, ora no marido. Tal é o introito, de uma queda, que nenhuma razão moral
explica, nenhuma paixão, sublime ou subalterna, nenhum amor, nenhum despeito,
nenhuma perversão sequer. Luísa resvala no lodo, sem vontade, sem repulsa, sem
consciência; Basílio não faz mais do que empuxá-la, como matéria inerte, que é.
Uma vez rolada ao erro, como nenhuma flama espiritual a alenta, não acha ali a
saciedade das grandes paixões criminosas: rebolca-se simplesmente.
Assim, essa
ligação de algumas semanas, que é o fato inicial e essencial da ação, não passa
de um incidente erótico, sem relevo, repugnante, vulgar. Que tem o leitor do
livro com essas duas criaturas sem ocupação nem sentimentos? Positivamente
nada.
E aqui
chegamos ao defeito capital da concepção do Sr. Eça de Queirós. A situação
tende a acabar, porque o marido está prestes a voltar do Alentejo, e Basílio
começa a enfastiar-se, e, já por isso já porque o instiga um companheiro seu,
não tardará a trasladar-se a Paris. Interveio, neste ponto, uma criada.
Juliana, o caráter mais completo e verdadeiro do livro; Juliana está enfadada
de servir; espreita um meio de enriquecer depressa; logra apoderar-se de quatro
cartas; é o triunfo, é a opulência. Um dia em que a ama lhe ralha com aspereza,
Juliana denuncia as armas que possui. Luísa resolve fugir com o primo; prepara
um saco de viagem, mete dentro alguns objetos, entre eles um retrato do marido.
Ignoro inteiramente a razão fisiológica ou psicológica desta precaução de
ternura conjugal: deve haver alguma; em todo caso, não é aparente. Não se
efetua a fuga, porque o primo rejeita essa complicação; limita-se a oferecer o
dinheiro para reaver as cartas, — dinheiro que a prima recusa — despede-se e
retira-se de Lisboa. Daí em diante o cordel que move a alma inerte de Luísa
passa das mãos de Basílio para as da criada. Juliana, com a ameaça nas mãos,
obtém de Luísa tudo, que lhe dê roupa, que lhe troque a alcova, que lha forre
de palhinha, que a dispense de trabalhar. Faz mais: obriga-a a varrer, a
engomar, a desempenhar outros misteres imundos. Um dia Luísa não se contém;
confia tudo a um amigo de casa, que ameaça a criada com a polícia e a prisão, e
obtém assim as fatais letras. Juliana sucumbe a um aneurisma; Luísa, que já
padecia com a longa ameaça e perpétua humilhação, expira alguns dias depois.
Um leitor
perspicaz terá já visto a incongruência da concepção do Sr. Eça de Queirós, e a
inanidade do caráter da heroína. Suponhamos que tais cartas não eram
descobertas, ou que Juliana não tinha a malícia de as procurar, ou enfim que
não havia semelhante fâmula em casa, nem outra da mesma índole. Estava acabado
o romance, porque o primo enfastiado seguiria para França, e Jorge regressaria
do Alentejo; os dois esposos voltavam à vida anterior. Para obviar a esse
inconveniente, o autor inventou a criada e o episódio das cartas, as ameaças,
as humilhações, as angústias e logo a doença, e a morte da heroína. Como é que
um espírito tão esclarecido, como o do autor, não viu que semelhante concepção
era a coisa menos congruente e interessante do mundo? Que temos nós com essa
luta intestina entre a ama e a criada, e em que nos pode interessar a doença de
uma e a morte de ambas? Cá fora, uma senhora que sucumbisse às hostilidades de
pessoas de seu serviço, em consequência de cartas extraviadas, despertaria
certamente grande interesse, e imensa curiosidade; e, ou a condenássemos, ou
lhe perdoássemos, era sempre um caso digno de lástima. No livro é outra coisa.
Para que Luísa me atraia e me prenda, é preciso que as tribulações que a
afligem venham dela mesma; seja uma rebelde ou uma arrependida; tenha remorsos
ou imprecações; mas, por Deus! dê-me a sua pessoa moral. Gastar o aço da
paciência a fazer tapar a boca de uma cobiça subalterna, a substituí-la nos
misteres ínfimos, a defendê-la dos ralhos do marido, é cortar todo o vínculo
moral entre ela e nós. Já nenhum há, quando Luísa adoece e morre. Por quê?
porque sabemos que a catástrofe é o resultado de uma circunstância fortuita, e
nada mais; e consequentemente por esta razão capital: Luísa não tem remorsos,
tem medo.
Se o autor,
visto que o Realismo também inculca
vocação social e apostólica, intentou dar no seu romance algum ensinamento ou
demonstrar com ele alguma tese, força é confessar que o não conseguiu, a menos
de supor que a tese ou ensinamento seja isto: — A boa escolha dos fâmulos é uma
condição de paz no adultério. A um escritor esclarecido e de boa fé, como o Sr.
Eça de Queirós, não seria lícito contestar que, por mais singular que pareça a
conclusão, não há outra no seu livro. Mas o autor poderia retorquir: — Não, não
quis formular nenhuma lição social ou moral; quis somente escrever uma
hipótese; adoto o realismo, porque é a verdadeira forma da arte e a única
própria do nosso tempo e adiantamento mental; mas não me proponho a lecionar ou
curar; exerço a patologia, não a terapêutica. A isso responderia eu com
vantagem: — Se escreveis uma hipótese dai-me a hipótese lógica, humana,
verdadeira. Sabemos todos que é aflitivo o espetáculo de uma grande dor física;
e, não obstante, é máxima corrente em arte, que semelhante espetáculo, no
teatro, não comove a ninguém; ali vale somente a dor moral. Ora bem; aplicai
esta máxima ao vosso realismo, e sobretudo proporcionai o efeito à causa, e não
exijais a minha comoção a troco de um equívoco.
E passemos
agora ao mais grave, ao gravíssimo.
Parece que o
Sr. Eça de Queirós quis dar-nos na heroína um produto da educação frívola e da
vida ociosa; não obstante, há aí traços que fazem supor, à primeira vista, uma
vocação sensual. A razão disso é a fatalidade das obras do Sr. Eça de Queirós —
ou, noutros termos, do seu realismo sem condescendência: é a sensação física.
Os exemplos acumulam-se de página a página; apontá-los, seria reuni-los e
agravar o que há neles desvendado e cru. Os que de boa fé supõem defender o
livro, dizendo que podia ser expurgado de algumas cenas, para só ficar o
pensamento moral ou social que o engendrou, esquecem ou não reparam que isso é
justamente a medula da composição. Há episódios mais crus do que outros. Que
importa eliminá-los? Não poderíamos eliminar o tom do livro. Ora, o tom é o espetáculo
dos ardores, exigências e perversões físicas. Quando o fato lhe não parece
bastante caracterizado com o termo próprio, o autor acrescenta-lhe outro
impróprio. De uma carvoeira, à porta da loja, diz ele que apresentava a
"gravidez bestial". Bestial por quê? Naturalmente, porque o adjetivo
avolume o substantivo e o autor não vê ali o sinal da maternidade humana; vê um
fenômeno animal, nada mais.
Com tais
preocupações de escola, não admira que a pena do autor chegue ao extremo de
correr o reposteiro conjugal; que nos talhe as suas mulheres pelos aspectos e
trejeitos da concupiscência; que escreva reminiscências e alusões de um
erotismo, que Proudhon chamaria onissexual e onímodo; que no meio das
tribulações que assaltam a heroína, não lhe infunda no coração, em relação ao
esposo, as esperanças de um sentimento superior, mas somente os cálculos da
sensualidade e os "ímpetos de concubina"; que nos dê as cenas
repugnantes do Paraíso; que não esqueça sequer os desenhos torpes de um
corredor de teatro. Não admira; é fatal; tão fatal como a outra preocupação
correlativa. Ruim moléstia é o catarro; mas por que hão de padecer dela os
personagens do Sr. Eça de Queirós? Em O
Crime do Padre Amaro há bastantes afetados de tal achaque; em O Primo Basílio fala-se apenas de um
caso: um indivíduo que morreu de catarro na bexiga. Em compensação há infinitos
"jactos escuros de saliva". Quanto à preocupação constante do
acessório, bastará citar as confidências de Sebastião a Juliana, feitas
casualmente à porta e dentro de uma confeitaria, para termos ocasião de ver
reproduzidos o mostrador e as suas pirâmides de doces, os bancos, as mesas, um
sujeito que lê um jornal e cospe a miúdo, o choque das bolas de bilhar, uma
rixa interior, e outro sujeito que sai a vociferar contra o parceiro; bastará
citar o longo jantar do Conselheiro Acácio (transcrição do personagem de Henri
Monier); finalmente, o capítulo do Teatro de São Carlos, quase no fim do livro.
Quando todo o interesse se concentra em casa de Luísa, onde Sebastião trata de
reaver as cartas subtraídas pela criada, descreve-nos o autor uma noite inteira
de espetáculos, a plateia, os camarotes, a cena, uma altercação de
espectadores.
Que os três
quadros estão acabados com muita arte, sobretudo o primeiro, é coisa que a
crítica imparcial deve reconhecer; mas por que avolumar tais acessórios até o
ponto de abafar o principal?
Talvez estes reparos sejam menos atendíveis, desde que o nosso ponto de vista é diferente. O Sr. Eça de Queirós não quer ser realista mitigado, mas intenso e completo; e daí vem que o tom carregado das tintas, que nos assusta, para ele é simplesmente o tom próprio. Dado, porém, que a doutrina do Sr. Eça de Queirós fosse verdadeira, ainda assim cumpria não acumular tanto as cores, nem acentuar tanto as linhas; e quem o diz é o próprio chefe da escola, de quem li, há pouco, e não sem pasmo, que o perigo do momento realista é haver quem suponha que o traço grosso é o traço exato. Digo isto no interesse do talento do Sr. Eça de Queirós, não no da doutrina que lhe é adversa; porque a esta o que mais importa é que o Sr. Eça de Queirós escreva outros livros como O Primo Basílio. Se tal suceder, o Realismo na nossa língua será estrangulado no berço; e a arte pura, apropriando-se do que ele contiver aproveitável (porque o há, quando se não despenha no excessivo, no tedioso, no obsceno, e até no ridículo), a arte pura, digo eu, voltará a beber aquelas águas sadias, de O Monge de Cister, de O Arco de Sant'Ana e de O Guarani.
Talvez estes reparos sejam menos atendíveis, desde que o nosso ponto de vista é diferente. O Sr. Eça de Queirós não quer ser realista mitigado, mas intenso e completo; e daí vem que o tom carregado das tintas, que nos assusta, para ele é simplesmente o tom próprio. Dado, porém, que a doutrina do Sr. Eça de Queirós fosse verdadeira, ainda assim cumpria não acumular tanto as cores, nem acentuar tanto as linhas; e quem o diz é o próprio chefe da escola, de quem li, há pouco, e não sem pasmo, que o perigo do momento realista é haver quem suponha que o traço grosso é o traço exato. Digo isto no interesse do talento do Sr. Eça de Queirós, não no da doutrina que lhe é adversa; porque a esta o que mais importa é que o Sr. Eça de Queirós escreva outros livros como O Primo Basílio. Se tal suceder, o Realismo na nossa língua será estrangulado no berço; e a arte pura, apropriando-se do que ele contiver aproveitável (porque o há, quando se não despenha no excessivo, no tedioso, no obsceno, e até no ridículo), a arte pura, digo eu, voltará a beber aquelas águas sadias, de O Monge de Cister, de O Arco de Sant'Ana e de O Guarani.
A atual literatura portuguesa é assaz rica de força e talento para podermos
afiançar que este resultado será certo, e que a herança de Garrett se
transmitirá intacta às mãos da geração vindoura.
Há quinze
dias, escrevi nestas colunas uma apreciação crítica do segundo romance do Sr.
Eça de Queirós, O Primo Basílio, e
daí para cá apareceram dois artigos em resposta ao meu, e porventura algum mais
em defesa do romance. Parece que a certa porção de leitores desagradou a
severidade da crítica. Não admira; nem a severidade está muito nos hábitos da
terra, nem a doutrina realista é tão nova que não conte já, entre nós, mais de
um férvido religionário. Criticar o livro, era muito; refutar a doutrina, era
demais. Urgia, portanto, destruir as objeções e aquietar os ânimos assustados;
foi o que se pretendeu fazer e foi o que se não fez.
Pela minha
parte, podia dispensar-me de voltar ao assunto. Volto (e pela última vez)
porque assim o merece a cortesia dos meus contendores; e, outrossim, porque não
fui entendido em uma das minhas objeções.
E antes de
ir adiante, convém retificar um ponto. Um dos meus contendores acusa-me de nada
achar bom em O Primo Basílio. Não
advertiu que, além de proclamar o talento do autor (seria pueril negar-lho) e
de lhe reconhecer o dom da observação, notei o esmero de algumas páginas e a
perfeição de um dos seus caracteres. Não me parece que isto seja negar tudo a
um livro, e a um segundo livro. Disse comigo: — Este homem tem faculdades de
artista, dispõe de um estilo de boa têmpera, tem observação; mas o seu livro
traz defeitos que me parecem graves, uns de concepção, outros da escola em que
o autor é aluno, e onde aspira a tornar-se mestre; digamos-lhe isto mesmo, com
a clareza e franqueza a que têm jus os espíritos de certa esfera. — E foi o que
fiz, preferindo às generalidades do diletantismo literário a análise sincera e
a reflexão paciente e longa. Censurei e louvei, crendo haver assim provado duas
coisas: a lealdade da minha crítica e a sinceridade da minha admiração.
Venhamos
agora à concepção do Sr. Eça de Queirós, e tomemos a liberdade de mostrar aos
seus defensores como se deve ler e entender uma objeção. Tendo eu dito que, se
não houvesse o extravio das cartas, ou se Juliana fosse mulher de outra índole,
acabava o romance em meio, porque Basílio, enfastiado, segue para a França,
Jorge volta do Alentejo, e os dois esposos tornariam à vida antiga, replicam-me
os meus contendores de um modo, na verdade, singular. Um achou a objeção fútil
e até cômica; outro evocou os manes de Judas Macabeu, de Antíoco, e do elefante
de Antíoco. Sobre o elefante foi construída uma série de hipóteses destinadas a
provar a futilidade do meu argumento. Por que Herculano fez Eurico um presbítero? Se Hermengarda tem
casado com o gardingo logo no começo, haveria romance? Se o Sr. Eça de Queirós
não houvesse escrito O Primo Basílio,
estaríamos agora a analisá-lo? Tais são as hipóteses, as perguntas, as deduções
do meu argumento; e foi-me precisa toda a confiança que tenho na boa fé dos
defensores do livro, para não supor que estavam mofar de mim e do público.
Que não
entendessem, vá; não era um desastre irreparável. Mas uma vez que não
entendiam, podiam lançar mão de um destes dois meios: reler-me ou calar.
Preferiram atribuir-me um argumento de simplório; involuntariamente, creio;
mas, em suma, não me atribuíram outra coisa. Releiam-me; lá verão que, depois
de analisar o caráter de Luísa, de mostrar que ela cai sem repulsa nem vontade,
que nenhum amor nem ódio a abala, que o adultério é ali uma simples aventura
passageira, chego à conclusão de que, com tais caracteres como Luísa e Basílio,
uma vez separados os dois, e regressando o marido, não há meio de continuar o
romance, porque os heróis e a ação não dão mais nada de si, e o erro de Luísa
seria um simples parênteses no período conjugal. Voltariam todos ao primeiro
capítulo: Luísa tornava a pegar no Diário
de Notícias, naquela sala de jantar tão bem descrita pelo autor; Jorge ia
escrever os seus relatórios, os frequentadores da casa continuariam a ir ali
encher os serões. Que acontecimento, logicamente deduzido da situação moral dos
personagens, podia vir continuar uma ação extinta? Evidentemente nenhum.
Remorsos? Não há probabilidades deles; porque, ao anunciar-se a volta do
marido, Luísa, não obstante o extravio das cartas, esquece todas as
inquietações, "sob uma sensação de desejo que a inunda". Tirai o
extravio das cartas, a casa de Jorge passa a ser uma nesga do paraíso; sem essa
circunstância, inteiramente casual, acabaria o romance. Ora, a substituição do
principal pelo acessório, a ação transplantada dos caracteres e dos sentimentos
para o incidente, para o fortuito, eis o que me pareceu incongruente e
contrário às leis da arte.
Tal foi a
minha objeção. Se algum dos meus contendores chegar a demonstrar que a objeção
não é séria, terá cometido uma ação extraordinária. Até lá, ser-me-á lícito
conservar uma pontazinha de ceticismo.
Que o Sr.
Eça de Queirós podia lançar mão do extravio das cartas, não serei eu que o
conteste; era seu direito. No modo de exercer é que a crítica lhe toma contas.
O lenço de Desdêmona tem larga parte na sua morte; mas a alma ciosa e ardente
de Otelo, a perfídia de Iago e a inocência de Desdêmona, eis os elementos
principais da ação. O drama existe, porque está nos caracteres, nas paixões, na
situação moral dos personagens: o acessório não domina o absoluto; é como a
rima de Boileau: il ne doit qu'obéir.
Extraviem-se as cartas, faça uso delas Juliana; é um episódio como qualquer
outro. Mas o que, a meu ver, constitui o defeito da concepção do Sr. Eça de
Queirós, é que a ação, já despida de todo o interesse anedótico, adquire um
interesse de curiosidade. Luísa resgatará cartas? Eis o problema que o leitor
tem diante de si. A vida, os cuidados, os pensamentos da heroína não têm outro
objeto, senão esse. Há uma ocasião em que, não sabendo onde ir buscar o
dinheiro necessário ao resgate, Luísa compra umas cautelas de loteria; sai
branco. Suponhamos (ainda uma suposição) que o número saísse premiado; as
cartas eram entregues; e, visto que Luísa não tem mais do que medo, se lhe
restabelecia a paz do espírito, e com ela a paz doméstica. Indicar a
possibilidade desta conclusão é patentear o valor da minha crítica.
Nem seria
para admirar o desenlace pela loteria, porque a loteria tem influência decisiva
em certo momento da aventura. Um dia, arrufada com o amante, Luísa fica incerta
se irá vê-lo ou não; atira ao ar uma moeda de cinco tostões; era cunho: devia
ir e foi. Esses traços de caráter é que me levaram a dizer, quando a comparei
com a Eugênia, de Balzac, que nenhuma semelhança havia entre as duas, porque
esta tinha uma forte acentuação moral, e aquela não passava de um títere.
Parece que a designação destoou no espírito dos meus contendores, e houve
esforço comum para demonstrar que a designação era uma calúnia ou uma
superfluidade. Disseram-me que, se Luísa era um títere, não podia ter músculos
e nervos, como não podia ter medo, porque os títeres não têm medo.
Supondo que
este trocadilho de idéias veio somente para desenfadar o estilo, me abstenho de
o considerar mais tempo; mas não irei adiante sem convidar os defensores a todo
transe a que releiam, com pausa, o livro do Sr. Eça de Queirós: é o melhor
método quando se procura penetrar a verdade de uma concepção. Não direi, com
Buffon, que o gênio é a paciência; mas creio poder afirmar que a paciência é a
metade da sagacidade: ao menos, na crítica.
Nem basta
ler; é preciso comparar, deduzir, aferir a verdade do autor. Assim é que,
estando Jorge de regresso e extinta a aventura do primo, Luísa cerca o marido
de todos os cuidados — "cuidados de mãe e ímpetos de concubina". Que
nos diz o autor nessa página? Que Luísa se envergonhava um pouco da maneira
"por que amava o marido; sentia vagamente que naquela violência amorosa
havia pouca dignidade conjugal. Parecia-lhe que tinha apenas um capricho".
Que horror!
Um capricho por um marido! Que lhe importaria, de resto? "Aquilo fazia-a
feliz". Não há absolutamente nenhum meio de atribuir a Luísa esse
escrúpulo de dignidade conjugal; está ali porque o autor no-lo diz; mas não
basta; toda a composição do caráter de Luísa é antinômica com semelhante
sentimento. A mesma coisa diria dos remorsos que o autor lhe atribui, se ele
não tivesse o cuidado de os definir (p. 440). Os remorsos de Luísa, permita-me
dizê-lo, não é a vergonha da consciência, é a vergonha dos sentidos; ou, como
diz o autor: "um gosto infeliz em cada beijo". Medo, sim; o que ela
tem é medo; disse-o eu e di-lo ela própria: "Que feliz seria, se não fosse
a infame!”
Sobre a
linguagem, alusões, episódios, e outras partes do livro, notadas por mim, como
menos próprias do decoro literário, um dos contendores confessa que os acha
excessivos, e podiam ser eliminados, ao passo que outro os aceita e justifica,
citando em defesa o exemplo de Salomão na poesia do Cântico do Cânticos:
On ne s’attendait guère
À voir la Bible en cette-affaire;
E menos ainda se podia esperar o que nos diz do livro bíblico. Ou recebeis o livro, como deve fazer um católico, isto é, em seu sentido místico e superior, e em tal caso não podeis chamar-lhe erótico; ou só o recebeis no sentido literário, e então nem é poesia, nem é de Salomão; é drama e de autor anônimo. Ainda, porém, que o aceiteis como um simples produto literário, o exemplo não serve de nada.
Nem era
preciso ir à Palestina. Tínheis a Lisístrata; e se a Lisístrata parecesse
obscena demais, podíeis argumentar com algumas frases de Shakespeare e certas
locuções de Gil Vicente e Camões. Mas o argumento, se tivesse diferente origem,
não teria diferente valor. Em relação a Shakespeare, que importam algumas
frases obscenas, em uma ou outra página, se a explicação de muitas delas está
no tempo, e se a respeito de todas nada há sistemático? Eliminai-as ou
modificai-as, nada tirareis ao criador das mais castas figuras do teatro, ao
pai de Imogene, de Miranda, de Viola, de Ofélia, eternas figuras, sobre as
quais hão de repousar eternamente os olhos dos homens. Demais, seria mal cabido
invocar o padrão do Romantismo para
defender os excessos do Realismo.
Gil Vicente
usa locuções que ninguém hoje escreveria, e menos ainda faria repetir no
teatro; e não obstante as comédias desse grande engenho eram representadas na
corte de D. Manuel e D. João III. Camões, em suas comédias, também deixou
palavras hoje condenadas. Qualquer dos velhos cronistas portugueses emprega,
por exemplo, o verbo próprio, quando trata do ato, que hoje designamos com a
expressão dar à luz, o verbo era então polido; tempo virá em que dar à luz seja
substituída por outra expressão; e nenhum jornal, nenhum teatro a imprimirá ou
declamará como fazemos hoje.
A razão
disto, se não fosse óbvia, podíamos apadrinhá-la com Macaulay: é que há termos
delicados num século e grosseiros no século seguinte. Acrescentarei que noutros
casos a razão pode ser simplesmente tolerância do gosto.
Que há,
pois, comum entre exemplos dessa ordem e a escola de que tratamos? Em que pode
um drama de Israel, uma comédia de Atenas, uma locução de Shakespeare ou de Gil
Vicente justificar a obscenidade sistemática do Realismo? Diferente coisa é a indecência relativa de uma locução, e
a constância de um sistema que, usando aliás de relativa decência nas palavras,
acumula e mescla toda a sorte de ideias e sensações lascivas; que, no desenho e
colorido de uma mulher, por exemplo, vai direito às indicações sensuais.
Não peço,
decerto, os estafados retratos do Romantismo
decadente; pelo contrário, alguma coisa há no Realismo que pode ser colhido, em proveito da imaginação e da arte.
Mas sair de um excesso para cair em outro, não é regenerar nada; é trocar o
agente da corrupção.
Um dos meus
contendores persuade-se que o livro podia ser expurgado de alguns traços mais
grossos; persuasão, que no primeiro artigo disse eu que era ilusória, e por
quê. Há quem vá adiante e creia que, não obstante as partes condenadas, o livro
tem um grande efeito moral. Essa persuasão não é menos ilusória que a primeira;
a impressão moral de um livro não se faz por silogismo, e se assim fosse, já
ficou dito também no outro artigo qual a conclusão deste. Se eu tivesse de
julgar o livro pelo lado da influência moral, diria que, qualquer que seja o
ensinamento, se algum tem, qualquer que seja a extensão da catástrofe, uma e
outra coisa são inteiramente destruídas pela viva pintura dos fatos viciosos:
essa pintura, esse aroma de alcova, essa descrição minuciosa, quase técnica, das
relações adúlteras, eis o mal. A castidade inadvertida que ler o livro chegará
à última página, sem fechá-lo, e tornará atrás para reler outras.
Mas não
trato disso agora; não posso sequer tratar mais nada; foge-me o espaço.
Resta-me concluir, e concluir aconselhando aos jovens talentos de ambas as
terras da nossa língua, que não se deixem seduzir por uma doutrina caduca,
embora no verdor dos anos. Este messianismo literário não tem a torça da
universalidade nem da vitalidade; traz consigo a decrepitude. Influi, decerto,
em bom sentido e até certo ponto, não para substituir as doutrinas aceitas, mas
corrigir o excesso de sua aplicação. Nada mais. Voltemos os olhos para a
realidade, mas excluamos o Realismo,
assim não sacrificaremos a verdade estética.
Um dos meus
contendores louva o livro do Sr. Eça de Queirós, por dizer a verdade, e atribui
a algum hipócrita a máxima de que nem todas as verdades se dizem. Vejo que
confunde a arte com a moral; vejo mais que se combate a si próprio. Se todas as
verdades se dizem, por que excluir algumas?
Ora, o
realismo dos senhores Zola e Eça de Queirós, apesar de tudo, ainda não esgotou
todos os aspectos da realidade. Há atos íntimos e ínfimos, vícios ocultos,
secreções sociais que não podem ser preteridas nessa exposição de todas as
coisas. Se são naturais para que escondê-los? Ocorre-me que Voltaire, cuja
eterna mofa é a consolação de bom senso (quando não transcende o humano
limite), a Voltaire se atribui uma resposta, da qual apenas citarei metade: Très naturel aussi, mais je porte des
culottes.
Quanto ao
Sr. Eça de Queirós e aos seus amigos deste lado do Atlântico, repetirei que o
autor de O Primo Basílio tem em mim
um admirador de seus talentos, adversário de suas doutrinas, desejoso de o ver
aplicar, por modo diferente, as fortes qualidades que possui; que, se admiro
também muitos dotes do seu estilo, faço restrições à linguagem; que o seu dom
de observação, aliás pujante, é complacente em demasia; sobretudo, é exterior,
é superficial. O fervor dos amigos pode estranhar este modo de sentir e a
franqueza de o dizer. Mas então o que seria a crítica?
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